Se entendermos a religiosidade como autêntica dimensão
humana, cujo cultivo é necessário para a plena realização
do homem, então será óbvia a necessidade de contemplarmos
também este aspecto na proposta de sua educação.
Presentes em todas as culturas, entre todos os povos, de todos os
tempos, e assumindo diversas formas de devoção, doutrinas
e princípios éticos, buscando o sentido da vida e a
transcendência em relação à morte, as religiões
têm suas especificidades, mas têm também um patamar
comum de moralidade e busca humana, onde é possível
e urgente estabelecer um diálogo respeitoso e solidário.
O reconhecimento de uma raiz comum, profundamente humana e, por isso
mesmo, divina, é vital para que o diálogo se projete
além de uma conversa cordialmente superficial, para se tornar
uma vivência enriquecedora.
Diz um autor contemporâneo que “a única esperança
real por uma tolerância verdadeira está em descobrir
o que ‘nós’ temos em comum e também em respeitar
a diversidade” (LYON, 1998:117).
A Constituição Brasileira garante a liberdade de culto
e a nova Lei de Diretrizes e Bases abre espaço para um ensino
religioso interconfessional (Art.33). Nova redação foi
dada a esse artigo, em 20/12/96, para assegurar “o respeito
à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer
formas de proselitismo”. No âmbito estadual, a resolução
de 27/7/2001, do conselho Estadual de Educação, regulamenta
este artigo e propõe um programa aberto:
“O ensino religioso nas escolas deve, antes de tudo, fundamentar-se
nos princípios da cidadania e do entendimento do outro. O conhecimento
religioso não deve ser um aglomerado de conteúdos que
visam evangelizar ou procurar seguidores de doutrinas, nem associado
à imposição de dogmas, rituais ou orações,
mas um caminho a mais para o saber sobre as sociedades humanas e sobre
si mesmo.”
Assim, conhecer o universo religioso, delimitando as próprias
crenças, em relação às crenças
diferentes, admitindo que todas elas têm valor intrínseco,
e procurar um diálogo saudável entre as diversas tradições
pode fazer o homem situar-se no mundo de forma muito mais segura e
fraterna. Saber que as respostas e os cultos da fé que integram
a nossa identidade têm eco entre outras identidades religiosas
pode aumentar a nossa própria fé e ao mesmo tempo nos
fazer mais compreensivos e empáticos com a riqueza e a beleza
das religiões do planeta. Como diz Berkenbrock: “É
importante que o diálogo inter-religioso seja impulsionado
pelo desejo de um melhor entendimento humano (…) que contribua
para uma melhor convivialidade humana.” (BERKENBROCK,
1996: 327). Mas também: “O
encontro com o diferente pode apontar para a própria identidade
e levar a perguntar justamente sobre o específico dela.”
(BERKENBROCK, 1996: 320)
Assim, o ensino religioso, sem nenhum propósito doutrinante
de uma determinada visão religiosa, de maneira respeitosa e
reverente para com o domínio de cada culto e de cada doutrina,
deve incentivar e desencadear no aluno um processo de conhecimento
e vivência de sua própria religião, mas também
um interesse por outras formas de religiosidade.
Poderíamos, pois, teorizar que o ensino religioso deveria
ter como objetivos orientadores:
1) despertar e cultivar a religiosidade do aluno;
2) levá-lo à compreensão da importância
do fenômeno religioso em sua própria vida e na história
humana;
3) trazer conhecimento sobre as diferentes formas de religiosidade,
dentro de seus respectivos contextos culturais e históricos;
4) criar um espírito de fraternidade e tolerância entre
as diferentes religiões;
5) sensibilizar o aluno em relação aos princípios
morais, propostos pelas religiões, promovendo ao mesmo tempo
uma reflexão sobre eles.
Sendo a religião um fenômeno humano abrangente, que está
entranhado em todas as áreas da cultura, suas diversas facetas
permitem perfeitamente a interdisciplinaridade no seu tratamento.
Assim, ao mesmo tempo que o ensino religioso serve para ampliar o
universo cultural do aluno, este ensino se torna muito mais consistente,
enraizando-se nas múltiplas áreas do conhecimento.
Cumpre-se assim a proposta do Forum Nacional Permanente do Ensino
Religioso:
“…a abordagem didática se dá numa seqüência
cognitiva, possibilitando a continuidade das aprendizagens que deve
considerar: a bagagem cultural religiosa do educando, seus conhecimentos
anteriores; a complexidade dos assuntos religiosos, principalmente
devido à pluraridade; a possibilidade de aprofundamento.”
(Forum, 1998:39)
Da teoria à prática
Tudo isso é muito bonito e desejável, mas será
factível?
A abolição da dimensão religiosa na escola laica
não foi mera obra de ateus endurecidos, mas fruto da justa
indignação contra o domínio das consciências.
Ainda hoje, em diversos setores religiosos do mundo ocidental e oriental,
há remanescentes poderosos dessa tendência doutrinante
que as religiões sempre tiveram. A discriminação
contra outras formas de crença que não a sua ou mesmo
contra os descrentes; a pressão do grupo para adotar determinadas
idéias, práticas e compor-tamentos; a obrigatoriedade
de se participar de ritos ou práticas religiosas da maioria;
e acima de tudo, a permanente violência que as maiorias e as
ortodoxias praticaram sobre as minorias e as heresias — tudo
isso traumatizou de tal forma as consciências livres, que o
tema do ensino religioso provoca fortes reações em algumas
pessoas e pode fazer parecer o programa esboçado acima como
ingênua utopia.
Dizia Voltaire, no século XVIII:
“É verdade que
esses horrores absurdos não mancham todos os dias a face
da terra; mas foram freqüentes, e com eles facilmente se faria
um volume bem mais grosso do que os Evangelhos que os reprovam”.
(VOLTAIRE, 1993: 127)
Dessa utopia, porém,
já participaram grandes educadores do passado, que projetaram
idéias avançadas, até hoje não cumpridas
no roteiro da nossa civilização. Por exemplo, Comenius,
pacifista e ecumenista, em pleno século XVII, ao lançar
o primeiro livro didático ilustrado do mundo o Orbis Sensualium
Pictus — aliás, um livro interdisciplinar e em várias
línguas simultâneas — dedicou alguns capítulos
às religiões mais importantes, entre elas o Cristianismo,
o Judaísmo e o Islamismo.
Rousseau dizia no Emílio:
“O culto essencial é
o do coração. Deus não rejeita nenhuma homenagem,
quando sincera, sob qualquer forma que lhe seja oferecida.”
(ROUSSEAU, 1967:627).
Pestalozzi, em seu Instituto
de Iverdon, no começo do século XIX, quando ainda protestantes
e católicos se ressentiam de longas e violentas lutas recentemente
aplacadas, praticou também uma educação ecumênica,
afirmando que os traços principais do seu método eram:
“Conservação
dos sentimentos piedosos da criança; elevação
à Religião e à virtude com plena consciência
e conhecimento de seus deveres; estímulo a uma alegre atividade
autônoma da criança; estímulo à pesquisa
e à reflexão pessoal e através de tudo isso,
promover a aprendizagem do conhecimento e das qualidades que a vida
exige.” (PESTALOZZI, 1980: 59)
A trilha aberta por esses educadores foi até agora pouco seguida,
seja por preconceito, falta de coragem ou preparo. É grande
o desafio do diálogo e do respeito mútuo quando se trata
de religião.
Alguns pontos cruciais devem ser vencidos na mentalidade que vigora
no seio das religiões, para que sejam possíveis uma
convivência mais amistosa e a existência de educadores
capazes de atuar nesse delicado terreno, sem violentar consciências.
O primeiro fantasma que se deve afastar é o do preconceito.
Como a própria palavra exprime, o preconceito é um conceito
a priori, pré-estabelecido antes de análise, estudo
e reflexão. O medo do diferente, discriminações
socialmente propagadas e opiniões distorcidas podem formar
em nossa mente idéias errôneas e julgamentos apressados,
generalizações simplistas e rigidez de pensamento.
Essa atitude — que pode se exprimir em associações
do tipo: “crente-fanático”; “espírita-macumbeiro”;
“adepto do candomblé-adepto do demônio”;
“católico-carola”; mais recentemente “muçulmano-terrorista”
— cria uma barreira mental que nos impede de enxergar as riquezas
e as nuanças da realidade.
O educador que se preze deve se despojar de tais viseiras e passar
a olhar o outro, (mesmo o outro diferente), com o olhar da compreensão
humana e do interesse de aprender. O melhor antídoto do preconceito
é o conhecimento. Pode haver muito que nos choque e nos desagrade
na religião alheia, mas sem nenhuma dúvida haverá
muito que nos encante e nos fale ao coração. É
no terreno dos encontros que devemos fixar o nosso olhar e achar o
fio condutor do diálogo.
A segunda tentação a se vencer (e isso implica às
vezes numa reflexão que envolve a nossa própria fé)
é a de julgarmos as pessoas aptas ou não aos processos
de salvação ou redenção, segundo os critérios
dogmáticos da nossa religião. Raciocinava Rousseau com
muita propriedade:
“Ou todas as religiões
são boas e agradáveis a Deus ou, se existe alguma
que Ele prescreve aos homens e Ele pune os que a desprezam, Ele
lhe deu sinais certos e manifestos para que fosse distinguida e
conhecida como única verdade. Esses sinais são de
todos os tempos e de todos os lugares, igualmente acessíveis
a todos os homens, grandes e pequenos, sábios e ignorantes,
europeus, indianos, africanos, selvagens. Se houvesse uma religião
sobre a Terra fora da qual só houvesse penas eternas, e que
em alguma parte do mundo um só mortal não foi convencido
dessa evidência, o Deus desta religião seria o mais
iníquo e o mais cruel dos tiranos.” (ROUSSEAU,
1967:609)
Em outras palavras, nada mais nocivo e injusto do que dizer: “fora
da minha religião, não há salvação”.
Quem pensa assim se arroga uma competência de julgamento, que
só pertence a Deus e não está muito longe da
mentalidade inquisitorial do passado. Partindo-se desse princípio,
não há diálogo possível.
Além desses dois pontos a se evitar, há outros dois
pontos a se recomendar, para promovermos uma educação
religiosa, sem proselitismo, nas escolas públicas e particulares.
O primeiro é a necessidade do educador ser um pesquisador (e
isso vale para todos os campos do conhecimento como também
para a religião). Ele tem de buscar e conhecer para não
se perder no meio da avalanche de idéias e informações
que vagam nesse mundo. Aprofundar, vivenciar e seguir em primeiro
lugar a própria fé é o dado fundamental. Se enumeramos
como objetivo do ensino religioso o despertar da religiosidade na
criança, essa religiosidade tem de estar presente, e fortemente
sentida, no educador. E, ao mesmo tempo, compete-lhe buscar informações
e conhecimento preciso a respeito das outras religiões, com
que se defrontará na sala de aula.
O segundo ponto é a valorização da Ética,
como patamar máximo de encontro das religiões. Não
a Ética entendida como conjunto de regras e proibições,
mas como imanência na consciência humana, como lei natural
que se manifesta em meio a todas as culturas e povos e que as diferentes
religiões captam, de formas diversas.
Se pudermos fazer isso, estaremos mais próximos da proposta
de Comenius e Pestalozzi. Toda essa proposta não exclui evidentemente
o ensino religioso confessional. Ou seja, as crianças de famílias
católicas, dentro ou fora da escola, deverão fazer a
sua catequese, as judaicas receberão as instruções
de sua fé, as espíri-tas, evangélicas, muçulmanas,
igualmente. Mas pode haver um espaço inter-religioso, para
troca, diálogo e convivência, onde se trate o tema de
forma ecumênica e onde se entenda a religião como um
fenômeno humano autêntico, além das próprias
religiões.
Uma experiência
No final da década de 90, realizamos uma experiência
nesse sentido, com alunos de pré-escola e ensino fundamental
de uma escola particular na zona norte de São Paulo, Colégio
Nova Era.
Duas atividades bem-sucedidas podem servir de exemplo prático
à discussão deste artigo. Uma foram as aulas de religiões
comparadas que demos na 5ª série. Começamos por
levantar entre os alunos quais as dúvidas e curiosidades que
eles tinham a respeito de temas religiosos. As perguntas foram as
mais variadas. “O que é Umbanda?” “O demônio
existe?” “Como são as religiões indígenas?”
“O que é obsessão (dentro do espiritismo)?”
“O que é protestantismo?” “O que é
ressurreição?” “Existe vida após
a morte?” etc. etc.
As discussões, pesquisas e produções feitas em
sala de aula foram no sentido de responder a todas as questões
levantadas e as atividades suscitaram tal interesse e envolvimento,
que chegaram aos ouvidos dos catequistas que estavam preparando algumas
crianças para a primeira comunhão.
Apesar de toda a atividade se desenvolver dentro do máximo
respeito a todas as posições religiosas (tomávamos
o cuidado de explicar sempre: segundo a Igreja Católica, segundo
o Islamismo, segundo o Budismo, além de promover entre os alunos
a pesquisa nas próprias fontes), o preconceito entrou em ação.
Os catequistas de alguns alunos levantaram a lebre, questionando o
fato das aulas serem coordenadas por uma professora não-católica
e assumidamente espírita kardecista. A coisa virou polêmica
dentro e fora da escola. Mas, felizmente, o episódio teve um
bom final, porque os pais (católicos) das crianças envolvidas,
afirmaram com toda a ênfase a confiança em nosso trabalho
sério e não-proselitista.
Outra vivência concomitante a essas aulas e que envolveu a mesma
polêmica, com final feliz, era um culto ecumênico semanal,
que fazíamos com toda a escola. As crianças de todas
as séries eram convidadas na hora do intervalo do almoço
e a presença era voluntária. Foi criada uma “comissão
da prece” composta de um católico, de um evangélico
e de um espírita (porque essas eram as religiões representadas
na escola). Essa comissão estava incumbida de trazer orações,
trechos de livros de suas respectivas religiões, mas que não
ferissem os princípios das outras participantes. Por exemplo,
não orávamos a Maria, para não desgostar os evangélicos;
não orávamos aos Espíritos protetores, para não
ofender católicos e evangélicos. O Pai-nosso, as orações
a Jesus, que eram aceitos por todos, eram usuais. Depois da leitura
ou da prece pronunciada por um dos membros da comissão, todas
as crianças podiam participar, fazendo orações
espontâneas, pedindo bênçãos, saúde
ou ajuda para si ou para algum familiar ou amigo ou algum pedido especial.
Algumas coisas incríveis, às vezes, surgiam, como certa
vez o pedido de um menino de 7 anos, o Pedrinho, que orou: “Que
sempre tenhamos fé!” Ou as preces por paz no mundo, paz
na escola e reconciliação entre os que haviam se desentendido.
Às vezes, havia alguns bagunceiros que atrapalhavam, mas eram
contidos pelos outros. E, muitas vezes, sentimos forte emoção,
onde se apalpava quase a presença de Deus. Não será
isso a melhor forma de convivência fraterna: pessoas que crêem
de forma diferente, sentirem em fraternidade a presença divina?
O desafio de tal empreendimento não deve nos assustar, pois
quem tem fé sabe que podemos esperar a ajuda de Deus, entendendo:
“que os verdadeiros
deveres da Religião são independentes das instituições
humanas, que um coração justo é o verdadeiro
tempo da divindade, que em todos os países e em todas as
seitas, amar a Deus acima de tudo e o próximo como a si mesmo
é o resumo da lei, que não há religião
que dispense os deveres da moral, que não há outros
verdadeiramente essenciais a não ser estes e que o culto
interior é o primeiro desses deveres e que sem a fé,
nenhuma verdadeira virtude existe.” (ROUSSEAU,
1967: 632)