Fotos de José Herculano Pires (1914-1979)
Lembranças da adolescência
Escrever sobre o mestre Herculano é para mim um dever e um
deleite, pois o despertar de minhas propostas existenciais nesta vida
se deu sob a sua influência. Eu o admirava com fervor durante
minha infância e adolescência, a ponto de ficar horas
prestando atenção nas conversas que mantinha com a multidão
de pessoas que frequentava sua casa, bebericando o café de
D. Virgínia. Esta, sempre muito preocupada, queria me arranjar
outras crianças para brincar, queria me dar alguma tarefa mais
de acordo com minha idade… mas eu teimava em ficar na sala,
embora fosse grande amiga da neta Regina, com quem costumava me entreter.
Desde os 11, comecei a receber poemas psicografados. Herculano os
escutava, me estimulava e orientava. Aos 13 anos, já estava
decidida a me tornar escritora como ele. E ele me indicava livros,
discutia poetas de que gostávamos. Lembro-me de ele dizer o
quanto apreciava Cecília Meirelles. Falávamos dos escritores
russos – outra paixão – sobretudo Tolstoi, de quem
ele tinha um retrato no escritório. Para fazer par, eu mandei
enquadrar um de Dostoievski, que lhe dei de presente de aniversário.
Atento à minha sede de aprender, o mestre me fazia dedicatórias
esperançosas nos livros que me dava. Aos 14 anos, fez-me um
fantástico poema, A Hora de Dora. Uma resposta a uma incipiente
poesia que eu fizera em sua homenagem, cheia daquele ardente amor
filial. Nele, Herculano procurava me trazer para a realidade presente,
pois eu era muito fixada em recordações espontâneas
de vidas passadas:
Dora cisma à luz da aurora
Musas cantam céu em fora.
Dora, Dora, por que chora?
Na distância a lua agora
Fria e trêmula descora,
Baço espelho a Dora enflora
Tempo antigo a Dora adora,
Dora sonha, rememora…
Ora às musas Dora ora
Morre a lua em cada aurora,
Toda aurora é cor de amora.
Canta agora, Dora, Dora,
Da poesia a voz sonora
Canta e exalta a nova Dora
Céu em fora terra em flora
Na pletora de outra hora.
Dora é Dora em cada hora,
Integrada tempo em fora
Na hora de Dora – ora!
Aos 15, inaugurei minha mediunidade de
psicofonia, numa reunião mediúnica dirigida por ele.
Como eu era novata, fez questão ele próprio de conversar
com os três Espíritos que recebi logo na primeira vez.
Depois do terceiro, mandou que eu saísse da mesa, porque já
bastava para começo. Não me esqueço da doçura
firme com que falava com os Espíritos mais difíceis,
nem da vibração de amor, com que suas palavras vinham
carregadas.
A participação nas reuniões mediúnicas,
dirigidas por Herculano, durou muito pouco. Logo em seguida, fui morar
na Alemanha, com minha família, pela segunda vez. Então,
em janeiro de 1979, meu irmão mais novo, Luis, ficou com hepatite
em pleno inverno europeu. Apavorados com a possibilidade de os médicos
alemães, como era de praxe, isolarem o menino num hospital
de doenças infecto-contagiosas, viemos às pressas para
o Brasil, para que ele fosse tratado em casa. Foi a oportunidade de
nos despedirmos de Herculano.
No início de março, no dia 4, fomos lhe fazer uma visita,
meus pais, meu irmão, já curado, que Herculano chamava
de Luigino, e eu. Ele estava com muita dificuldade de enxergar, com
uma catarata avançada. Nas dedicatórias que nos fez,
os emes tinham muitas pernas. A serenidade de sempre, o acolhimento
de costume mataram nossas saudades.
Na noite do dia 9 de março, meus pais haviam saído e
eu fiquei sozinha, em meu quarto, na casa da minha avó. Senti
uma inexplicável vontade de chorar. Não sabia por que
a sensação de melancolia. Entendi no dia seguinte, quando
de manhã, recebemos o telefonema com a notícia de que
Herculano se fora na véspera.
A imagem que guardo dele, de seu rosto, de seus gestos, de seu olhar
é a da figura paterna, benevolente, bem humorada. Ao mesmo
tempo, lembro de sua inesgotável erudição, de
sua paciência em ensinar, de sua despretensão ao abordar
os temas mais difíceis e transcendentes.
Tinha eu 16 anos, quando acabou essa relação na terra,
mas iniciou-se a leitura aprofundada e a crescente identificação
com seu pensamento. Ao mesmo tempo, em Espírito, sua inspiração
nunca me falta, seu olhar nunca se afasta.
Das mãos de Herculano, recebi a compreensão da genialidade
de Kardec e a veneração pelo mestre; recebi também
o ideal da Pedagogia Espírita. Seguindo seus passos, fui estudar
jornalismo e adotei a filosofia como objeto permanente de estudo.
Obedeço ao seu conselho, em uma dedicatória que me fez,
tentando “viver a poesia em ritmo existencial” e procuro
dar minha contribuição para “aclarar os nevoeiros
do mundo”. E ainda me integrando “no tempo de Dora”,
ajustada ao tempo de agora, para melhor atuar no presente.
Esse testemunho pessoal parece-me relevante para o entendimento do
pensador. É que existe uma coerência vital entre o homem
e a obra. Não havia contradição entre o que escrevia,
o que falava, o que fazia e a vibração que irradiava.
Herculano era um homem reto, bom, generoso, sobretudo sincero. Nele
não havia dissimulações, meias palavras, mas
pessoalmente não havia também agressividade. A exaltação
que revelava às vezes nos escritos era indignação
justa, era ardor na batalha das ideias. Não era ódio,
violência ou qualquer sentimento antagônico que fosse
– porque não havia nada disso em Herculano. Era essencialmente
sereno. Mas como ele mesmo explicou em sua obra O Ser
e a Serenidade, a serenidade existencial não
exclui a defesa viril de uma ideia ou a luta engajada por uma causa.
Lembro-me certa vez de uma conversa em família. D. Virgínia,
como defensora natural do marido, referia-se a certa liderança
do movimento espírita de São Paulo que (como outras
tantas) havia traído a confiança de Herculano e que,
de amigo, passara a adversário… Herculano, então,
com palavras mansas, relatou um encontro que tivera com essa pessoa
na rua e como lhe estendera a mão, como se compadecera de seu
estado físico aparentemente doentio. Mas não dizia isso
com nenhum laivo de pretensão à santidade, nenhum exibicionismo
de parecer superior. Era fraternidade autêntica, era benevolência
pura.
Era evidente que lutava por ideias, apaixonadamente, mas não
se deixava atingir por nenhum ressentimento ou revolta contra as pessoas
que pensavam diferentemente dele.
Jamais vi Herculano alterar a voz. Mas nunca senti algo de excessivamente
açucarado, que pudesse ensejar qualquer desconfiança
quanto à sinceridade absoluta do que dizia. Se tivesse que
caracterizá-lo com poucas palavras, escolheria estas três:
coerência, serenidade e benevolência.
O reencontro na maturidade
Apenas mais tarde, porém, pude compreender a pujança
intelectual de Herculano Pires. Quando me aprofundei em suas obras
e nas de Kardec é que pude aquilatar a contribuição
única que Herculano dera ao desenvolvimento do espiritismo.
A primeira dessas contribuições está na própria
compreensão da ideia espírita. Tratando-se de uma revolução
conceitual, uma quebra de paradigma, um passo inédito na história
do conhecimento – a sua dimensão e o impacto renovador
de suas propostas ainda não foram entendidos pelos seus adeptos
mesmos, que o tocam apenas superficialmente, carregados dos vícios
religiosos do passado, incapazes de singrarem nos mares abertos, descortinados
por Kardec.
A maioria dos espíritas no Brasil aceita o espiritismo como
mais uma religião apenas, embora mantenham o discurso do tríplice
aspecto. Herculano soube sondar as profundidades da obra de Kardec,
entendendo-a como uma revolução cultural, como uma proposta
pedagógica, como ciência nova, como filosofia inédita,
sem negar seu aspecto religioso.
Muitos espíritas – ouvia eu desde pequena murmúrios
neste sentido – o consideravam fanático por Kardec, mas
Herculano não tinha nenhum laivo de fanatismo, era aliás
uma pessoa avessa às idolatrias. O caso é que ele entendeu
como ninguém o papel de Kardec no espiritismo. Ainda hoje,
a maioria dos espíritas tem a ideia equivocada de que Kardec
teria apenas organizado (por isso a ênfase na palavra codificador)
uma revelação pronta, dada pelos Espíritos. Entretanto,
apesar de ter havido sim uma revelação, a estruturação
da filosofia espírita e a criação de uma metodologia
de abordagem científica foram do homem Kardec. Herculano colocou
em relevo esta contribuição de mestre.
Fez isso, não de maneira histórica, inserindo-o no seu
contexto, mas na contemporaneidade, com que travou permanente diálogo.
Como jornalista-filósofo, Herculano esteve sempre ligado à
realidade, ao turbilhão de ideias do seu tempo e procurou mostrar
a conexão do pensamento espírita com o processo evolutivo
da filosofia, das pesquisas e da história humana. Temos assim
não um mero divulgador de ideias espíritas do século
XIX, mas um pensador que pensou espiritamente o século XX.
Essa é a função de todo conhecimento vivo. O
espiritismo não pode se tornar letra morta, bíblica,
que adotamos de forma postiça, como um credo fechado. É
uma nova maneira de ver, pensar e sentir o mundo e assim pode iluminar
o progresso do pensamento humano, interagindo com as ciências,
as filosofias, as correntes pedagógicas.
Isso, porém, não é ecletismo. Certa vez, muitos
anos atrás, ainda no início da minha jornada intelectual,
travei conhecimento em Portugal com uma pessoa formada em Filosofia
e ela me dizia indignada que Herculano era eclético. Como se
sabe, tal adjetivo é altamente pejorativo no meio acadêmico,
porque significa colocar diferentes elementos, díspares, numa
proposta de pensamento – o que revelaria superficialidade e
falta de conhecimento aprofundado das nuanças das diversas
correntes. Uma salada mista, em suma. Essa crítica na época
me irritou sobremaneira, mas foi excelente desafio, porque mergulhei
com mais afinco do pensamento de Herculano, para desmentir a acusação.
Nunca mais encontrei essa pessoa, mas depois de mais de 20 anos de
estudo das obras de Herculano e tendo percorrido os bancos acadêmicos
da graduação ao pós-doutorado, posso afirmar
com toda certeza que não há o mínimo ecletismo
em Herculano.
O filósofo de Avaré nunca perde a identidade do pensamento
espírita, mas compreende que faz parte dessa identidade o enxergar
os elos com outras formas de pensamento e entender a história
das ideias humanas como uma construção coletiva de conhecimento
e descoberta da verdade. Assim, dialogar e integrar evita o dogmatismo
e a estagnação, mas o eixo da racionali-dade metodológica,
proposta por Kardec, é o que dá sentido e nos faz ver
as possíveis conexões.
Podemos portanto dizer que o pensamento de Herculano Pires é
amplo e aberto e por isso mesmo fiel aos princípios lançados
por Kardec.
Foi essa leitura estimulante que me levou ao trabalho que tenho procurado
realizar de encarar o espiritismo como proposta cultural abrangente,
estabelecendo um diálogo com o conhecimento acadêmico,
para que ele não se feche nos guetos dos centros espíritas,
apenas como forma de manifestação religiosa, e ainda
muito carregada de misticismo.