Da compreensão geral de que
o Espiritismo é ou tem uma filosofia surge a necessidade de
explicitá-la. Os seus adeptos reproduzem com acerto os seus
aspectos filosóficos, e os separam com habilidade adquirida
pelos estudos kardequianos daqueles outros científicos e religiosos.
E também o caráter filosófico de uma doutrina
qualquer é sempre mais discernível e menos controverso
do que um seu possível elemento científico. Essas são
razões pelas quais se fala numa filosofia espírita com
alguma segurança.
Entretanto, a academia possui no
que tange à filosofia não menos exigências e regras
do que às que competem à prática das ciências.
Afinal, então, o que é e como se sustenta a filosofia
espírita? Tentaremos mais problematizar do que responder a
este questionamento.
Do ponto de vista da filosofia como
especialidade, o Espiritismo apresenta-se como filosofia popular,
o que equivale a dizer, como razão argumentativa, mas não
fundamentadora. Esta qualificação não precisa
ser pejorativa, e mesmo algumas das melhores filosofias tiveram um
cunho acentuadamente popular, como em Voltaire, Rousseau e Nietzsche.
É também uma visão filosófica válida
e oficial a de que a razão já está desde sempre
em jogo com seus problemas específicos, e não pode ou
não requer fundamentação. Ainda assim, a maior
parte do que se produziu sob o título de filosofia na história
humana destinava-se à fundamentação do conhecimento
ou de julgamentos sobre questões de valor.
São mentes analíticas
e interessadas na fundamentação das certezas a de Platão,
a de Descartes, a Locke e a de Kant, alguns, portanto, dos maiores
filósofos. Segundo estes, a atividade filosófica não
se faz propriamente sem o esforço exaustivo de sua própria
crítica, de modo que qualquer filosofia digna do nome ou vai
até as últimas consequências ou compra um método
que já o tenha feito. Os bons filósofos populares o
são por seu interesse prático (moral ou político),
sem que dispensem o concurso de uma boa base metodológica.
E se Kardec foi um bom filósofo popular, o que acreditamos
razoável afirmar, devemos encontrar em sua prática os
princípios de algum ou alguns filósofos mais analíticos,
para não dizer sistemáticos (nome que à época
não soava bem).
O primeiro indício de que
Kardec não é um filósofo sistemático está
em ele lançar mão de múltiplos conceitos e axiomas
sem os justificar. Semelhante atitude pode significar, como dito,
tanto o descompromisso com a filosofia quanto uma adoção
prévia de métodos filosóficos bem estabelecidos.
E não há a mais remota dúvida de que os conceitos
e axiomas pressupostos por Kardec correspondem à visão
eclética do saber filosófico de princípios do
século XIX. Em primeiro lugar porque todos esses pressupostos
pertencem à ala ortodoxa da filosofia francesa, requerendo
assim pouca ou nenhuma exposição sistemática;
em segundo lugar porque essas conquistas em especial eram classificadas
como conquistas da ilustração e todos os autores da
época estavam habituados a assumir os elementos deste grande
edifício eclético e enciclopédico como ponto
de partida. Pensadores tão importantes como Benjamin Constant,
Madame de Staël e Tocqueville jamais se preocupam, assim como
Kardec, em fundamentar o conceito de razão, ou analisar a constituição
metafísica da liberdade. Ao invés disto eles os tomam
do poço da filosofia iluminista e os aplicam com habilidade
de filósofos práticos aos seus interesses.
Para elencar alguns dos pressupostos
essenciais da classe ilustrada francesa e/ou européia dos anos
1800 a 1840 podemos citar resumidamente:
1- A fundamentação
do pensamento por Descartes, com a respectiva separação
entre o princípio pensante do princípio material, a
constituírem os modos de ser.
2- A ideia platônica de que a matemática corresponderia
ao modus operandi da natureza. Noção renascentista
que foi solidificada por Galileu, Bruno e Descartes.
3- O atomismo de Diderot, que copiando Demócrito e Epicuro
postulou todas as leis da física como consequências das
leis que regem as partículas elementares.
4- A noção de liberdade como direito garantido por Deus,
uma ideia cristã que se desenvolveu em séculos de teologia
e filosofia, casando-se com as noções gregas de liberdade
e culminando no axioma da liberdade humana conforme Locke, Voltaire
e Rousseau.
5- A positividade da experiência como fundamento do saber, desenvolvida
por Comte e imediatamente diversificada e adaptada por inúmeros
pensadores e cientistas.
Poderíamos citar outros pontos,
mas isto só aumentaria o volume de uma defesa que consideramos
suficientemente estabelecida.
Está claro ao filósofo contemporâneo que a segurança
de algumas dessas pressuposições foi duramente abalada,
durante o próprio século XIX e especialmente no XX.
O item mais controverso hoje é o da equivalência entre
matemática e natureza, ainda defendida com certa ingenuidade
por muitos físicos e francamente proibida pela filosofia da
ciência. O que se pode dizer hoje com sobriedade filosófica
é que haja alguma correspondência entre as leis
que postulamos matematicamente e o funcionamento da natureza, mas
precisar a exatidão desta correspondência seria considerado
uma postura dogmática.
Basta, contudo, o conhecimento do
contexto histórico para lembrar que a nova filosofia responsável
por questionar as certezas iluministas é de matriz alemã,
e não estava plenamente acessível aos franceses da primeira
metade do século XIX. Apesar de estar entre os poucos falantes
de alemão da sociedade francesa da época, Allan Kardec
provavelmente compartilhava da crença geral de seu povo a respeito
dos germanos: a de se tratarem de um povo grosseiro recém chegado
às raias da civilidade e que ensaiava suas forças intelectuais
numa filosofia prolixa, mas essencialmente infrutífera.[1]
O posterior sucesso da filosofia alemã,
com todo o seu aparato crítico, com a restauração
da metafísica pelo Idealismo e com as reviravoltas teológicas,
marcou para sempre a face da filosofia, um fenômeno que o orgulho
francês ainda digere com atraso, apesar da grande influência
de autores como Kant e Hegel sobre os franceses.
A filosofia sistemática viu
sua tocha ser cedida da França para a Alemanha, e desta para
o mundo globalizado do pós-guerra. Resta saber em que medida
isto depõe contra as filosofias práticas e populares.
Neste particular uma comparação
entre Kardec e os outros filósofos populares franceses é
indispensável. A maioria deles, exatamente por ser popular,
sofreu minimamente com a transformação da filosofia
sistemática, e a popularidade dos pensadores políticos
e religiosos, dos psicólogos e moralistas franceses continuou
tão irretorquível sob a luz dos sistemas alemães
como quando em seu terreno natural do Iluminismo autóctone.
Redefinidos os fundamentos dos conceitos
de razão e liberdade, sobre bases mais críticas e rigorosas,
continuaram a viger na esfera prática as conclusões
e intuições sóbrias que a análise social
e psicológica francesa ou inglesa haviam efetuado em dois ricos
séculos de modernidade.
A filosofia atual se esforça
por refinar a fundamentação metafísica e epistemológica
da razão, de Deus, da liberdade e da relação
entre sujeito e objeto, etc., mas no campo prático e popular
a maioria dos postulados iluministas continua a viger como moeda válida
de interpretação dos fenômenos naturais e sociais.
Em muitos aspectos, mudaram os caminhos, mas permaneceram os resultados
da filosofia. É bem mais ingênuo ver algo de “errado”
em Platão, por incompatibilidade de seus métodos com
os recentes, do que dispensar os métodos recentes na apreciação
de trabalhos filosóficos pregressos; e a história da
filosofia continua a ser fonte de inspiração principal
para os que pretendem reelaborá-la com vistas ao futuro.
Qual é, então, a base
filosófica do Espiritismo, se o ecletismo espiritualista francês
e o positivismo que o constituíram estão agora em cheque?
Precisamente a mesma base que continuou a sustentar as outras filosofias
práticas e populares após a substituição
da Ilustração francesa, seu ecletismo e positivismo,
pela filosofia crítica alemã.
Procurai então os defensores
de Pascal, Voltaire, Rousseau, Staël e Tocqueville, e achareis
o caminho para sustentar em linguagem atualizada aqueles mesmos pressupostos
que fomentam o método kardequiano. E os caminhos para essa
revisão técnica da filosofia espírita podem ser
muitos, como muitas são as correntes mais recentes. O pragmatismo
de James, a filosofia liberal e crítica de Popper e mesmo uma
forma revisada da analítica existencial de Heidegger, como
foi intentado por Herculano Pires, podem ser boas soluções.
Particularmente, acho que a forma
mais apropriada de releitura técnica da filosofia espírita
seja a partir da Metafísica da Subjetividade, uma
variante eclética que se apropria de praticamente todas as
outras correntes contemporâneas numa forma ao mesmo tempo clássica
e crítica da metafísica, permitindo a validade dos conceitos-chave
de Deus, imortalidade, razão e liberdade.
[1] Veja meu texto sobre Madame de Staël
e o “descobrimento” da Alemanha: http://www.portalsophia.org/textos/stael/allemagneschubert.pdf