Dentre todos os nomes que a
história registrou sob a categoria de sábios, não
foram Descartes ou Kant, Bacon ou Locke, Spinoza ou Leibniz que Kardec
identificou como precursores do Espiritismo. Dentre tantos nomes ilustres
aos quais poderia se associar com inúmeras vantagens sociais
e acadêmicas, o mestre lionês escolheu Sócrates
e Platão por patronos, construindo sob a rocha os fundamentos
filosóficos da Doutrina dos Espíritos. Tivesse ele eleito
os gênios de sua época, e muito provavelmente o Espiritismo
teria sido absorvido como subproduto das correntes filosóficas
daquele momento. Mas, ancorado no caráter heróico e
na lucidez imperecível dos luminares da filosofia, resgatou
sensatamente a conexão com as fontes do espírito filosófico
mais puro, superando as transições de ocasião
e modismos.
Não obstante o reconhecimento oficial do Codificador e de inúmeros
outros autores, as figuras emblemáticas dos pais da razão
no mundo, Sócrates e Platão, parecem estranhamente esquecidas
pela literatura e debates espíritas mais recentes, coincidindo
com fenômenos de “simplificação” e
massificação da mensagem kardequiana.
Tal estado de coisas é ainda mais lamentável quando
os avanços da historiografia e filologia do século XX
lançaram tantas novas luzes sobre estes sempre célebres
pensadores. Esta revolução ainda está em curso,
mas os estudos de Platão já recomeçam a despertar
interesse ao longo dos anos 1980, e hoje já se pode dizer que
retornaram ao centro dos interesses filosóficos e teológicos.
Para uma filosofia como a Espírita que aponta o platonismo
como origem e fundamento filosófico este fato é incontornável,
e deve despertar o máximo interesse.
Idealismo platônico?
O primeiro ponto em que se precisa fazer justiça
ao filósofo não se refere exatamente a uma das reformas
interpretativas supracitadas, mas a uma questão mais básica,
a saber, a confusão entre idealismo e realismo em Platão.
Se em sentido muito genérico e abrangente a sua filosofia pode
enquadrar-se como idealista, este não é definitivamente
o caso se tomamos o termo em seu significado técnico dentro
da tradição filosófica. Platão é
um realista, acredita que nosso conhecimento corresponde a uma percepção
do “Real” e não a uma formulação
mental independente da realidade. O equívoco é oriundo
do modelo ontológico (ou seja, da realidade) que o filósofo
emprega, onde existe um mundo físico e um mundo das idéias
ou formas originais. Muitos leigos e inclusive filósofos de
profissão inferem que a existência de um mundo ideal
independente do mundo físico significa um irrealismo ou idealismo,
quando na verdade os termos da filosofia platônica deixam claro
o fato de que o mundo das idéias é real, independente
da mente humana e, portanto, não existe idealismo.
Embora o senso comum rejeite fortemente a doutrina platônica
das idéias é muito fácil provar a sua necessidade
lógica, até certo ponto, partindo de uma idéia
pura para cada atributo. Platão demonstra em primeiro lugar
que o atributo tem que ser distinto da coisa, por reductio
ad absurdum. O dedo anelar é maior
do que o mínimo, mas menor do que o médio. Isto equivale
a dizer que ele é maior e menor ao mesmo tempo, dependendo
dos outros objetos com os quais for comparado. Um objeto, portanto,
não pode esgotar jamais a definição de grandeza
ou pequeneza. (Hippias 523a-524d) O erro do filósofo Hippias
no diálogo platônico que traz o seu nome foi confundir
a determinação com uma coisa determinada, a predicação
com o seu objeto. Mas é óbvio que nenhum objeto imaginável
esgota completamente o princípio de uma predicação,
já que é sempre possível imaginar outro objeto
que tenha o mesmo ou maior significado predicativo.
Apesar de todas as variações
e discordâncias da filosofia este foi um ponto jamais questionado,
uma vitória permanente do platonismo sobre as fases pré-filosóficas
da racionalidade. Predicações são feitas a partir
de critérios e princípios, independentes de coisas,
que estão condicionadas a acidentes e condições
físicas. Que se aceite o mundo das idéias platônico,
atribuindo uma existência separada para as propriedades das
coisas, ou derive-se as propriedades das coisas mesmas, como faz Aristóteles,
não se pode de modo algum confundir a natureza incorpórea
de uma propriedade com a natureza condicionada do objeto, pois este
segundo está sempre em função comparativa aos
outros objetos, e este relativismo só desaparece no conceito
enquanto tal. A ciência moderna, que assume estas determinações,
nos apresenta exatamente uma visão da natureza composta de
matéria
e propriedades.
Mesmo convivendo juntas, de modo aristotélico, elas não
são exatamente a mesma coisa, e faz sentido tratar as propriedades
de modo independente, como princípios matemáticos, ou
falar de propriedades in abstracto,
como a gravidade, a inércia, a evolução das espécies,
etc.
A essência do platonismo está nesta percepção
sobre a possibilidade de estabelecer determinações,
que depende desta independência da propriedade determinativa
em relação às coisas. Os ataques sofridos pelo
platonismo geralmente se originam da confusão entre o mundo
das idéias, um plano de existência efetivo e independente
para as propriedades das coisas, que é apresentada por Platão
como uma “hipótese razoável”, e o assim
chamado idealismo platônico, que consiste neste problema de
fundamentação do conhecimento reproduzido fielmente
pela ciência e lógica contemporâneas. Este segundo
princípio poderia ser mais bem acolhido se a tradução
geral de eidos
(forma) como “idéias” fosse eventualmente modificada
para o termo “propriedades”, que produz muito maior conforto
ao ouvinte materialista. Claro que a tradução como idéia
condiz com a hipótese do mundo das formas, mas se esta é
uma hipótese subordinada e a fundamentação do
conhecimento é uma conquista permanente, convém adequar
esta segunda às terminologias em que ela pode ser melhor absorvida.
Platão em momento algum crê ser
possível uma análise a priori
das idéias, o que equivale a dizer que ele não é
um idealista no sentido epistemológico, tanto quanto não
é no sentido metafísico. O conhecimento das idéias
depende inteiramente da observação
do mundo, sem a qual a sugestão
para as definições das coisas e suas relações
não poderia ser desperta (reminiscência). Conquanto haja
um conhecimento inato, ele só é disparado pelos sentidos,
e a observação é tão importante quanto
a razão pura na rememoração das idéias.
Lógica versus dialética
Com isto entramos mais diretamente na epistemologia
platônica e seus problemas. Todos sabem que a filosofia do fundador
da Academia é exposta em diálogos, e que o seu método
de investigação é a dialética. Mas aqui
há elementos de análise relevantes. O primeiro deles
é distinguir lógica de dialética. A primeira
trata da relação entre sentenças, orações.
A lógica trabalha a congruência entre certas premissas
e certas conclusões. Se duas ou mais frases são aceitas
como premissas válidas, é possível que uma conclusão
lógica seja extraída delas. O que a lógica não
pode fazer é definir conceitos, pois não há como
aplicar as suas regras de congruência se não houverem
vários elementos para uma comparação. Aí
entra a dialética, que é a disciplina especializada
na definição racional de conceitos. A dialética
não busca a congruência, senão a distinção,
a determinação (dar termo, fim) dos conceitos.
Enquanto a lógica busca as conclusões de um argumento,
a dialética define e elabora os termos exatos da argumentação,
evitando que o equívoco entre as peças prejudique a
arquitetura maior objetivada pela lógica. O problema da dialética
é a sua imprecisão se comparada a da lógica.
A lógica é infalível, pois pressupondo-se a veracidade
das premissas chega-se fatalmente à conclusão. A dialética
é ambígua por natureza, os contornos e fronteiras exatos
entre um e outro termo são sutis, às vezes subjetivos,
às vezes estão fora de nosso conhecimento atual, forçando-nos
a trabalhar com definições provisórias. Isso
produziu em Aristóteles um desconforto em relação
à dialética, e uma preferência pela lógica.
Decisão que foi repetida pela tradição medieval
escolástica, e impregnou-se na mentalidade moderna, apesar
dos esforços desta última para separar-se daquela. A
dialética, por pressupor a imprecisão do conhecimento,
foi considerada um recurso vulgar e inferior, enquanto a certeza da
lógica prevaleceu como regra epistemológica impulsionando
o racionalismo e o positivismo. Ocorre que a suposta fraqueza da dialética
era reconhecida por Platão como a sua maior força, já
que ela permanecia como lembrança constante dos limites da
capacidade humana.
Segundo a análise de Karl Popper, que é indiscutivelmente
o maior filósofo do conhecimento do século XX, quiçá
da história mundial, nos livros O
mundo de Parmênides e Conhecimento
objetivo, Platão é o único
pensador crítico da história humana antes do século
XX. Isto quer dizer, o único a combinar ceticismo e conhecimento
de forma crítica, estabelecendo condições epistemológicas
equivalentes às da ciência moderna, com espaço
para falseamento e refutação de suas conjecturas. E
isto tem muito a ver com a dialética e com a forma de sua exposição
por diálogos.
Diálogo versus exposição
O diálogo foi erroneamente interpretado
como estilo literário ou opção estética
de Platão. Mas já no século XIX Eduard Zeller,
Friedrich Nietzsche e antes deles teólogos e filósofos
como Schleiermacher atentaram para o fato de que o diálogo
compõe parte essencial da epistemologia platônica. Ele
teria o duplo efeito de evitar o conflito entre os personalismos filosóficos
e garantir uma observação plural dos fenômenos,
de modo a aperfeiçoar a precisão dos termos. A dialética
deveria ser preferencialmente feita em diálogo, e os termos
deveriam ser parcialmente definidos por análise, mas pela sua
ambigüidade precisavam também ser consensuais.
Quando nos expomos ao diálogo alguém sempre levanta
prós e contras inesperados e em geral as pessoas se contrapõem
naturalmente, evitando as polarizações e extremismos
na definição dos termos ideais. A convenção
é a ferramenta ideal de conhecimento, pois nela estão
satisfeitos os interlocutores opostos, com suas diferentes perspectivas,
e a proximidade das idéias é a máxima possível.
Isso chocou diversos filósofos que não queriam um conhecimento
baseado em acordos e convenções estabelecidos em diálogo,
mas em certezas absolutas, mas é exatamente o que as metodologias
de pesquisa mais modernas pregam.
Por isso os diálogos apresentam sempre a deixa de Sócrates:
Queremos um conhecimento universalmente válido da justiça?
etc, etc. Se o interlocutor diz: “Não, isso é
impossível Sócrates!” então eles se despedem
e seguem suas atividades. Mas se o interlocutor diz. “Claro!
Não desejo outro senão o critério que nos permita
ajuizar sempre e em comum sobre este assunto.” então
preencheu-se a cláusula contratual da investigação
dialógica, e os interlocutores estão trabalhando dentro
das regras de um acordo.
O problema grave está em imaginar que estas etapas dos diálogo
são só cenário, quando na verdade não
existe cenário ou elementos dispensáveis nos livros
de Platão. Tudo tem sentido e propósito. Cada frase,
especialmente estas recorrentes, é cuidadosamente colocada
para ensinar aos alunos o método correto de filosofia e ciência.
Nada ali tem papel literário ou estilístico.
Segundo Popper e Zeller, Aristóteles ficou tão enraivecido
com alguns dos diálogos, e com o fato de parecerem infrutíferos,
de não atingirem os consensos esperados, etc, que considerou
o método uma ciência inferior. Ele refinou a lógica
para poder extrair as definições de termo dela, ao invés
de aplicá-la só às relações de
sentença como Platão propos. Com isto perdeu-se a idéia
de consenso e a de dialética. Aristóteles também
acusou Platão de ser um dogmático e definir as Idéias
conforme o seu próprio gosto, quando na verdade o seu método
lógico absolutista é que o fazia. Assim Popper condena
Aristóteles pelo fim da tradição crítica
e início dos sistemas filosóficos dogmáticos.
Ele não entendeu que o método dialógico e dialético
do mestre só permitia estabelecer investigação
quando os interlocutores concordassem com os termos gerais, ou achou
isto insuficiente, desejando uma espécie de garantia completa
para o conhecimento. Para Popper isto foi uma atitude intransigente
de Aristóteles, e prova de sua incapacidade de tolerância
e dúvida cética para entender a parte relativista do
platonismo.
O que é um pouco mais complicado é a demonstração
de que este pequeno relativismo, a idéia de um conhecimento
desenvolvido por consenso e acordo, não equivale em quase nada
ao relativismo atual da assim chamada pós-modernidade. Esta
corrente moderna generalizou a crítica cética aos princípios
do conhecimento, implodindo a racionalidade, e fechando o próprio
acesso a um conhecimento da realidade. Segundo esta vertente da filosofia
contemporânea a importância lingüística, social
e psicológica do saber é exagerada a ponto de ele tornar-se
inteiramente incerto e provisório. Isso certamente não
equivale ao método crítico de conhecimento, que assume
todas as possíveis implicações exteriores sobre
os conceitos e sobre a racionalidade, mas sem reduzir o espaço
próprio destes e a sua legitimidade.
De uma forma muito complexa Platão achava que os termos definidos
em consenso eram os mais próximos da verdade em si mesma, não
uma convenção social desvinculada da realidade. Embora
o mundo das idéias com seus arquétipos eternos de Bem
e Justiça existam ontologicamente antes do mundo físico,
que é a sua conseqüência, estes arquétipos
e idéias são reconstruídos
com eficiência somente pelo consenso. É como se a mente
isolada fosse frágil demais para atingir a verdade, ao passo
que o diálogo pudesse proporcionar um aperfeiçoamento
da cognição individual, aumentando o grau de aproximação
da verdade. Vou seguir a linha de descobertas de Popper para demonstrar
isto.
A revolução do conhecimento
matemático
Os responsáveis pela teoria das idéias são os
pitagóricos. Foram eles que diagnosticaram o progressivo movimento
abstrativo dos demais pré-socráticos, caminhando de
elementos arquetípicos como água, vento, infinito, etc,
sempre para princípios menos materiais e difíceis de
se confundirem com os elementos naturais. Atingiram assim a consciência
de que os números e relações puramente mentais
podiam ser aplicados a tudo, sem se confundirem com nada de concreto,
devendo assim constituir a essência final. Ao lado deste e de
outros grandes méritos, a escola de Pitágoras se congelou
numa dogmática adoração da aritmética
como interpretação perfeita e infalível da realidade.
Os primeiros problemas surgiram quando se tratava de dízimas,
pois eles não davam números exatos, mas isso foi resolvido
com o astuto recurso de atribuir às dízimas um papel
simbólico de quase n Assim 0,99999... guarda apenas uma distância
infinitesimal de 1, e pode ser descrito como quase um, em sentido
abstrato, já que em sentido concreto não poderia haver
tal grandeza.
O problema ficou incontornável quando um dos membros introduziu
problemas geométricos egípcios, muito dependentes de
raiz de 2 e pi. Depois de tentarem contornar o problema como erro,
a escola se escandalizou com a possibilidade da existência concreta
dos irracionais, o que acarretaria numa incapacidade de descrever
com certeza a realidade. Obcecados eles expuseram centenas de casas
decimais de pi e raiz de dois, para descobrir que não havia
regra nenhuma para prever a progressão. Não importa
o quão bom fosse o matemático, um número infinito
de casas estaria para sempre inacessível. A razão não
poderia dominar sequer a sua língua mais submissa e adequada,
a matemática, e o restante do conhecimento estava comprometido.
Os pitagóricos abafaram a história, mas alguém
vazou o problema gerando grande furor entre céticos e sofistas,
que apontavam para a inutilidade da razão. Platão resolveu
definitivamente o problema, unindo o juízo crítico de
Sócrates ao seu domínio de matemática. A solução
não era reformular a matemática, mas a epistemologia.
Logo de cara Platão assumiu a geometria como a matemática
superior, e colocou a famosa placa na porta da academia: “Aqui
não entram os que não sabem geometria”. Isto porque
a geometria, em acréscimo a aritmética, mostrava o mundo
equilibrado entre ordem e caos, sendo os irracionais a sua expressão
perfeita, digna de louvor e adoração eterna. A possibilidade
de continuar a descoberta e precisar sempre mais os irracionais, e
a percepção de que geralmente algumas poucas casas de
precisão eram suficientes para todos os fins práticos,
levaram-no a conclusão de que os números eram conhecidos
e desconhecidos ao mesmo tempo. O conhecimento seria, a exemplo da
geometria, suficiente, mas sempre imperfeito. (POPPER.
Die Welt des Parmenides, 1998. p.337-338)
Isto não implica em relativismo, pois a geometria em si seria
exata e perfeita, havendo no plano da realidade um valor real para
os números irracionais. Somente o nosso saber seria imperfeito
e relativo, pois estamos condicionados aos nossos sentidos muito limitados
que nos impedem uma visão abrangente e exaustiva dos fenômenos,
bem como a compreensão plena dos princípios. Ao mesmo
tempo em que a ciência nos revela a realidade, devemos guardar
humildade em relação ao nosso saber, pois ele é
evidentemente imperfeito.
Tais correções sobre a metodologia científica
de Platão são importantes porque destacam a sua diferença
qualitativa em relação aos demais filósofos,
em termos de liberalidade, lucidez, crítica, embasamento empírico
e garantias contra qualquer acusação de dogmatismo.
A excelência do método em perfeita concordância
com a mais avançada epistemologia moderna engrandecem ainda
mais os resultados teóricos alcançados por esta filosofia.
Podemos então concluir que o filósofo defensor da reencarnação,
da comunicabilidade com os mortos, da evolução da alma
humana através de sua desmaterialização, do livre-arbítrio,
da moralidade justificada pela razão, de Deus como o Sumo Bem
e do mundo das idéias se diferencia de todos os demais por
ser o que combateu com mais seriedade o próprio personalismo
e concepções prévias em favor de uma investigação
imparcial da verdade.