Aurélio Agostinho, Agostinho
de Tagaste, Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, como é
mais conhecido, foi uma das personalidades marcantes da história
humana. O Cristianismo seria irreconhecível sem a expressão
de seu gênio. Católicos, protestantes, ortodoxos e mesmo
espíritas, estes dissidentes tão distantes de seus primos
da tradição, todos têm em Agostinho um guia e
referencial da pureza cristã, do zelo na defesa da fé,
dos cuidados com a vigília incessante das obscuridades da alma
e de um ardor poético no louvor a Deus.
Aurélio Agostinho
Falar de Agostinho significa assumir
diversos riscos; riscos que preferiríamos evitar se não
fosse tão grande a necessidade de trazê-lo mais para
perto de nós. Sem medo de sermos prolixos, dividimos este artigo
em três partes, referentes respectivamente à vida e conversão,
às Confissões e uma última referente
à Cidade de Deus e a presença dele na Codificação
do Espiritismo. É que Agostinho não nos permite um gasto
menor de espaço e esforço para apresentação
de suas ideias, nem pode seu pensamento, como o da maioria, ser separado
para fins didáticos, com o que se mataria sua essência
rica de propósitos e referências cruzadas. Em outras
palavras, só se compreende sua doutrina através de um
contato com sua biografia.
Agostinho era um cidadão romano, pertencente a uma classe média.
Numa sociedade complexa e diversificada, sua posição
não distava muito da dos jovens de hoje, com seus divertimentos
coletivos, caça às garotas e total despreocupação
com o futuro. Sem serem ricos, Agostinho e os seus não tinham
preocupações materiais. O pai era um adúltero
assumido, e vivia conforme um homem de boa posição na
sociedade romana. A mãe, sendo cristã, esperava sem
ressentimentos ou perturbações, convencida de que Deus
iria converter o filho pervertido e compensá-la pelos seus
desgostos após a morte.
Agostinho via no pai a força e a liberdade do estilo de vida
romano, com sua consciência desimpedida, e na mãe a figura
dos fracos de espírito, com sua crença de escravos e
perdedores. Apesar disso, uma parte de si a admirava na sua resignação
estoica e na sua perseverança nos seus simplórios ideais.
Aos 18 anos viu-se pai de um filho, ao qual chamava jocosamente “filho
dos meus pecados”. Aos 29, hábil nas letras e na retórica,
decidiu mudar-se para Roma, em busca de melhores vencimentos e prestígio.
A mãe, receosa de que isto agravasse seus desregramentos, decidiu
ir junto. Agostinho fingiu aceitar, e no dia da viagem, enganou-a,
deixando-a numa capela enquanto partia às pressas.[1]
Ela, porém, não desistira de resgatar a alma corrompida
do filho, e anos depois o alcançou em Milão.
Abraçou a doutrina do maniqueísmo, que deixaria marcas
permanentes na sua e na visão de muitos outros cristãos.
Adorava Cícero e os filósofos de seu tempo. Não
fazia muitos comentários sobre os poetas, mas a julgar pela
sua própria habilidade lírica deveria conhecê-los
razoavelmente bem. Como retor era imbatível.
O problema de Agostinho com o Cristianismo era todo filosófico.
Não admitia que aquele modelo simplório de descrição
do mundo pudesse competir com a lógica da filosofia e o rigor
das ciências e das artes liberais. Desde sua estadia em Roma
já não era mais o hedonista e cínico da adolescência,
nem o maniqueu esotérico da casa dos 20 anos, mas, enxergando
seus erros, voltava a cair no mesmo abismo ao qual estava acostumado.
A vida de Agostinho era tudo menos monótona. Convencido pela
mãe, cuja fé simples e sincera admirava, ouvia as pregações
de santo Ambrósio em Milão. A seguir fugia desses flertes
com o Cristianismo para não despertar o deboche dos colegas
da academia. Mantinha diversos credos sem poder abraçar nenhum
definitivamente.
Enfim o encontro com o platonismo e o neoplatonismo lhe propiciaram
o contato com uma filosofia que ansiava pela proximidade com a religião.
Em um ambiente intelectualmente agitado, foi Paulo quem aos poucos
conquistou seu espírito. Nos textos do velho convertido Agostinho
reconhecia o pecador com quem podia se identificar; o arrependido
que abandonara o orgulho da ciência do mundo e se transformara
em santo.
Will Durant nos dá a seguinte descrição de suas
crises psicológicas e de sua solução:
Cortejou durante
algum tempo o ceticismo da academia. Era um homem de emoções
fortes, portanto não demorava muito em pender por um ou por
outro julgamento. Estudou Platão e Plotino em Roma; o neoplatonismo
integrou-se profundamente em sua filosofia e, por intermédio
dele, dominou a teologia cristã até o tempo de Abelardo.
Tornou-se para Agostinho a porta de entrada para o Cristianismo...
Certo dia, estando sentado num jardim de Milão com seu amigo
Alípio, pareceu-lhe ouvir uma voz a repetir-lhe muitas vezes
no ouvido: “lê, lê” Agostinho pôs-se
a ler um trecho de Paulo: “Não vos entregueis a orgias
e libações, não sejais ambicioso nem estroina,
não sejais belicoso nem invejoso; entregai-vos a Nosso Senhor
Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos carnais.”
Esta passagem trouxe a Agostinho uma grande transformação
de sentimentos e ideais; havia alguma coisa naquela fé que
era mais ardente e mais profunda que toda a lógica da filosofia.
O Cristianismo lhe surgiu dando-lhe uma satisfação
profundamente emotiva. Renunciando ao ceticismo de sua inteligência,
encontrou, pela primeira vez em sua vida, um estímulo moral
e paz para o espírito.[2]
Essa é, aliás, a história
de toda a conversão espontânea. Um fenômeno que
acontece nos raríssimos momentos em que um ser humano sente
aquilo que está lendo de um livro sagrado.
Começava a carreira de escritor e pregador cristão,
com um brilhantismo que em muito ofuscava sua já reconhecida
posição de professor de retórica. Os alunos dessa
disciplina continuavam a chegar ao longo da vida de Agostinho, mas
muitos se converteram ao Cristianismo através destas aulas.
Poder-se-ia dizer que até então Agostinho brilhara pelo
seu agudo intelecto; agora brilhava ainda mais, atingindo fama mundial
com este mesmo intelecto alimentado por um fogo divino do sentimento
e da fé exaltados.
Caracterizou-se pela defesa mista da liberdade e da graça na
economia da salvação, pelo rigor de seu ascetismo e
pela força inflamada com que defendia o Cristianismo de seus
inúmeros perigos reais ou imaginários. Reforçou
a doutrina do pecado, e de como a posição do homem exigia
dele a mais profunda entrega a Deus. Este último traço
de maniqueísmo o fazia enxergar apenas preto e branco nas questões
morais e existenciais, ignorando circunstancias e relativismos culturais
ou pessoais numa apologética irredutível de um cristianismo
monástico.
De todas as suas disputas a mais malfadada, do ponto de vista espiritual,
foi a que travou contra Pelágio, o herege que conseguiu furar
todas as proibições do catolicismo e chegar aos grandes
pensadores do Renascimento e do Iluminismo.
Durant narra da seguinte maneira esta saga:
Veio da Inglaterra o mais forte
de seus oponentes, Pelágio, um monge independente, o qual
defendeu com veemência a liberdade do homem e o fato de que
ele podia salvar-se pela prática de boas ações.
Na verdade, diz Pelágio, Deus nos auxilia, dando-nos Sua
lei e mandamentos, o exemplo e preceitos dos santos, purificando-nos
com a água do batismo e o sangue de Cristo. Deus não
faz pesar a balança contra a nossa salvação
ao fazer a natureza humana inerentemente má. Não houve
pecado original, tampouco a queda do homem; somente aquele que comete
o pecado é que será punido; sua culpa não recai
nos filhos. Deus não predestina o homem para o céu
ou o inferno, não escolhe arbitrariamente aquele que será
condenado ou salvo; Ele deixa a nós mesmos a faculdade de
escolhermos nosso destino. A teoria de que a depravação
é inata na natureza humana, disse Pelágio, é
a maneira covarde de se atribuir a Deus a culpa pelos pecados do
homem. O homem é dotado de razão e, por isso, responsável
pelos seus atos: “se devo fazer uma coisa é porque
poso fazê-la.”
Pelágio chegou a Roma por volta de 400, viveu com famílias
religiosas e granjeou a fama de ser muito virtuoso... Um sínodo
realizado no Oriente julgou o monge e declarou-o ortodoxo; um sínodo
africano, convocado por Agostinho, não aceitou esta decisão
e apelou para o papa Inocêncio I, o qual declarou Pelágio
um herético.
A disputa só foi concluída
alguns anos depois com o Concílio de Éfeso, em que Pelágio
e toda a sua doutrina foram condenados para sempre. Essa marca haveria
de ser transmitida do catolicismo ao protestantismo, e jamais o Cristianismo
aceitaria pacificamente a salvação pelo esforço
e mérito, a inocência original do homem e a capacidade
da razão de julgar o caminho mais apropriado para a fé.
Graças a Agostinho, razão e fé se desenvolveram
segundo uma ligação sólida, mas conturbada na
tradição cristã, contrariamente à perfeita
acomodação de que desfrutavam sob a ótica mais
intelectualista do pensamento grego. Por mais que Agostinho estivesse
satisfeito em abandonar sua promiscuidade e vaidade intelectual, esses
que ele considerava sérios pecados nunca produziriam tanto
mal para o mundo quanto a defecção da salutar doutrina
de Pelágio.
Pelágio
Seus erros e virtudes se misturam de tal modo que seria impossível,
talvez, separá-los. Um menor ardor poderia ter arrefecido em
excesso a índole combativa, fonte de sua produtividade; e uma
tolerância mais filosófica poderia dar um ar pagão
que desmereceria seus escritos aos olhos do clero, diminuindo seu
impacto. Se Agostinho errou muito no que toca a sua intransigência,
foi o espírito necessário num tempo de caos, pluralidade
de doutrinas esdrúxulas e decadência final da sociedade
romana que desaparecia ante as marés bárbaras. Um homem
menos convicto provavelmente teria sido engolido pelas sombras do
olvido, como ocorreu a maioria de seus opositores.
Feita essa apreciação, tem todo o cristão a obrigação
de votar a ele a mais sincera gratidão pelos escritos edificantes
que legou ao mundo. Nas Confissões, livro que imita o costume
primitivo de se confessarem os cristãos uns aos outros em público,
Agostinho deixa de lado suas inúmeras disputas ideológicas
para alçar vôos de introspecção. São
esses escritos, certamente, que lhe deram a palma posterior de autoridade
máxima nos assuntos referentes ao autoconhecimento.
(continua
em Agostinho e Kardec II)
Bibliografia:
DURANT, Will. A História da Civilização
IV: A Idade da Fé. Rio de Janeiro: Record, 2002.
[1] Will DURANT. A História da Civilização
IV: A Idade da Fé. Pg. 59.
[2] Will DURANT. A História da Civilização IV:
A Idade da Fé. Pg. 59.