Espiritualidade e Sociedade



Humberto Schubert Coelho

>   Agostinho e Kardec III

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Humberto Schubert Coelho
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Em A Cidade de Deus, Agostinho declara sem rodeios ser a filosofia platônica a preferencial entre os cristãos:

Se Platão disse ser sábio quem imita, conhece e ama a Deus, de cuja participação depende ser feliz, que necessidade há de discutir as outras doutrinas? Nenhuma se aproxima da nossa mais do que a doutrina de Platão.[1]
Compreenderam os platônicos, a quem vemos, não imerecidamente, antepostos aos demais em glória e fama, que nenhum corpo é Deus. Por isso, transcenderam todos os corpos em busca de Deus. Compreenderam, além disso, que o mutável não é supremo Deus. Entenderam também que toda espécie, de qualquer modo mutável, graças à qual todo ser é o que é, seja qual for o modo e seja qual for a natureza, não pode proceder senão de Quem verdadeiramente é porque é incomutavelmente.
(...)
Por causa da imutabilidade e simplicidade entenderam que Ele fez todas as coisas e não pôde ser feito por ninguém.[2]

Mas após essa defesa intelectual do platonismo, Agostinho ataca duramente a doutrina da comunicação com os espíritos. Entre os platônicos, Apuleio destacou-se por desenvolver uma cosmologia complexa, objetivando descrever todos os pormenores da vida e atividades dos “demônios”. Esses seres desencarnados, por terem vivido na terra e estando ainda materializados por suas paixões, seriam intermediários entre os deuses, seres já perfeitos pela prática da filosofia, e os homens viventes na Terra. Apuleio se excede nos contornos fantasiosos de suas descrições dos espíritos, mas apresenta alguns pontos lógicos no que toca a motivação desta estrutura cosmológica em camadas hierárquicas.

Agostinho levanta-se indignado contra esta que pensa ser a mais anticristã de todas as crenças, defendendo que os espíritos, por serem imperfeitos, seriam intermediários perigosos entre Deus e os homens. Desta forma, o que Apuleio e inúmeros platônicos defendem como argumento cosmológico, da ordem ascensional de perfeição dos espíritos, Agostinho rebate um tanto quanto impropriamente através de um argumento moral. Estaria a partir de então “corrigido” o platonismo, para servir aos propósitos do Cristianismo em sua forma católica.

Por fim Agostinho investe com todas as forças contra a opinião de Porfírio, segundo a qual se deveria invocar espíritos dos mortos para aconselhamento, estudo e intercessão de favores. Porfírio havia desenvolvido essa doutrina junto aos magos caldeus[3] adeptos da teurgia egípcia, país este em que vivia, e foi inclusive capaz de separar os espíritos em categorias, conforme suas atividades e grau de adiantamento moral. Conta-se até que Porfírio teria presidido cessões de materialização.

Plutarco afirmava, baseando-se principalmente nos relatos sobre Sócrates, que os espíritos não possuem língua, mas se comunicam exclusivamente pelo pensamento. Porfírio e Proclo discordariam veementemente desta afirmação, garantindo que tanto anjos quanto demônios utilizavam-se da língua local. Proclo, que experimentou diretamente diversos oráculos e videntes, diz que os espíritos se comunicam em sua língua pátria, mas podem também se comunicar na língua do médium. Em raros casos observara a xenoglossia, e pareceu muito impressionado que uma médium fosse capaz de falar em uma língua desconhecida (o armênio).[4]

Tais ideias eram, portanto, atribuídas a todos os platônicos, embora nem todos realmente defendessem a comunicabilidade com espíritos. Por isso Agostinho se insurgiu contra o platonismo em geral, a propósito de sua correção desta doutrina.

A obra continua com altos e baixos. Argumentos brilhantes se misturam a ataques malfadados à filosofia e a outras religiões da época, quase sempre com base no argumento de autoridade das escrituras. Em nenhum ponto é feita uma defesa teórica da autoridade da Bíblia sobre a razão ou sobre outras espécies de tradições religiosas, mas puramente se sustenta serem as escrituras “claramente mais autorizadas”. Em vista de uma defesa dogmática das absurdidades do Velho Testamento, tem nosso santo de rejeitar a razão em favor dos relatos do Gênese.

Entre um assunto e outro retornam os ataques à reencarnação, defendida então ainda por inúmeros cristãos, apesar da condenação pelo concílio de Nicéia, realizado décadas antes da redação de “A Cidade de Deus.”

Outro tema recorrente é a explicação filosófico-teológica da bondade de Deus e da exclusividade de Sua ação na criação do mundo, elemento este em que foi realmente virtuoso. Tanto o vigor de sua lógica quanto a fidelidade a todos os valores e princípios da fé cristã se coadunaram, novamente, na defesa da ineficiência do mal. O mal seria dotado de natureza defectiva, ao passo que somente o bem seria efetivo. Dessa forma, somente o bem operaria, enquanto o mal se caracterizaria pela falência ou corrupção de empreendimentos e coisas, incapaz de criar e engendrar obras. Completando as ideias expostas nas Confissões, essas análises ajudariam em muito o estabelecimento de uma perspectiva otimista para a moral e a cosmologia cristãs, apesar da também presente defesa da doutrina do pecado, ao qual se deu posteriormente desmedida importância.

A filosofia de Agostinho diagnostica e decreta o fim da era clássica e o início da Idade Média. Para o homem moderno isso soa mal, mas para a época foi uma alternativa benéfica para o caos absoluto. A era da razão havia dissolvido a sociedade. A que levou toda a filosofia e ciências greco-romanas? Que ordem social havia se estabelecido com o auxílio do intelecto? Quais eram as glórias do Império? A escravidão grassava, os bárbaros choviam de todas as partes sobre as terras já não tão produtivas, as elites perdiam a medida da baixeza e da impiedade; ávidos por novas paixões, todas as classes pediam mais excessos nos circos da morte, nos festins de glutonaria e embriaguez, nas orgias e nos múltiplos relacionamentos amorosos, desprovidos de qualquer humanidade e consideração pela própria saúde ou integridade.

A ética e a teoria haviam feito sim inúmeros progressos. Contudo, as turbas ensandeciam enquanto os filósofos cultivavam o espírito em jardins afastados dos centos populosos. Os santos e sábios gregos vagavam como mendigos maltrapilhos pelas ruas opulentas. Vergados pela descrença em qualquer possibilidade de renovação da natureza humana, mantinham-se cada vez mais céticos e cínicos, adjetivos estes que inclusive nomearam duas das escolas mais famosas da época.

Os pensadores cristãos identificaram nesse estado de coisas uma falência da inteligência humana diante dos problemas pertinentes a vontade e ao sentimento. Agostinho foi um dos que melhor perceberam o problema, e que melhores soluções propôs. Num mundo onde a razão não podia mais oferecer suas contribuições luminosas, somente a reforma dura, mesmo que artificial e imposta, do caráter poderia oferecer algum paliativo à desordem. As disciplinas monásticas se desenvolveram a partir desse precedente. Uma aversão natural ao período clássico surgiu, não como desprezo pela virtude dos filósofos, mas como incredulidade em sua capacidade de promover o bem geral.

A Idade Média não foi um momento de queda. Nasceu de uma saciedade, um esgotamento de um meio de vida que de modo algum podia se sustentar. Assim como ela mesma foi superada pelos seus excessos e erros, a era da fé tomou as rédeas de uma condução errada, ansiosa por fazer melhor.

A pergunta 495 de O Livro dos Espíritos contém uma resposta à quatro mãos; as de São Luís e as de Santo Agostinho. Espíritos afins, é possível que estejam de pleno acordo neste tocante e tenham redigido juntos o segmento, mas em nosso estudo particular sobre Agostinho ressalta a sua afinidade sui generis com o tema e estilo de investigação. Só um mestre do solilóquio poderia imbuir uma explicação de cores tão vivas, de um tão marcante conhecimento de causa. Acresce que a famosa “voz” do episódio da conversão e inúmeras das meditações reveladas em Confissões são por demais semelhantes ao que ele aqui expõe. A doutrina dos anjos guardiães também conta entre um dos princípios defendidos por Agostinho em suas obras:

Não vos parece grandemente consoladora a ideia de terdes sempre junto de vós seres que vos são superiores, prontos sempre a vos aconselhar e amparar, a vos ajudar na ascensão da abrupta montanha do bem; mais sinceros e dedicados amigos do que todos os que mais intimamente se vos ligam na Terra? Eles se acham ao vosso lado por ordem de Deus. Foi Deus quem aí os colocou e, aí permanecendo por amor de Deus, desempenham bela, porém penosa missão. Sim, onde quer que estejais, estarão convosco. Nem nos cárceres, nem nos hospitais, nem nos lugares de devassidão, nem na solidão estais separados destes amigos a quem não podeis ver, mas cujo brando influxo vossa alma sente, ao mesmo tempo que lhes ouve os ponderados conselhos...
Mas, oh! quantas vezes, no dia solene, não se verá esse anjo constrangido a vos observar: “Não te aconselhei isto? Entretanto, não o fizeste. Não te mostrei o abismo? Contudo, nele te precipitaste! Não fiz ecoar na tua consciência a voz da verdade? Preferiste, no entanto, seguir os conselhos da mentira!” Oh! Interrogai os vossos anjos guardiães; estabelecei entre eles e vos esta terna amizade que reina entre os melhores amigos. Não penseis em lhes ocultar nada, pois que eles tem o olhar de Deus e não podeis enganá-los
. (LE. Cap. IX, pergunta 495)

Dentre as numerosas e extensas comunicações de Agostinho dirigidas a Kardec o quão revelador já não nos é este curto fragmento. A beleza aludida pelos espíritos é a da presença dos seres amáveis e amados junto de cada homem, digno ou indigno, nobre ou corrupto. Doutrina esta tão cara aos orientais em seu culto aos antepassados, e que aqui nos é apresentada com uma sutil analogia entre olhar de Deus e o dos espíritos protetores. O juízo de Deus, elemento poderoso da moral dos povos, é tão mais sentido quanto mais forte é a crença de que Ele tudo vê. Mas aqui não se está apenas a afirmar a onipresença de Deus, que nossa mente ainda não compreende e que muitas vezes acha vaga, como também a presença e ciência de parentes e amigos sobre nossos mais pequenos atos e pensamentos.

Sabedor deste processo, o homem pode divisar com clareza a seriedade de sua vida moral, devassada por seres que o conhecem e que lhe são caros. A lembrança do pai, dos avós, da mãe, dos irmãos ou filhos, dos melhores amigos, envergonha o homem no íntimo quando nem a visão de Deus o havia feito retroceder de seus crimes. É que o Altíssimo é visto como distante, sua perfeição moral inalcançável, enquanto a lembrança de alguém honrado enche de vergonha aquele que se precipita. A Deus o homem exclama com hipocrisia: “Tu me fizeste assim; não reclames!”, mas ante a presença ou lembrança de um amigo impoluto a farsa é desbancada. Os filhos pródigos do mundo provam a força do esforço pessoal e a possibilidade da regeneração; os bons dão testemunho da divindade que há em cada homem, e nós já não podemos encará-los sem corar, sabedores de que o homem, podendo ser perfeito, permanece com gosto em seus vícios.

Além disso, o apelo que a presença de entidades simpáticas possui sobre o coração do homem é uma ferramenta poderosa que Deus usa em favor de ambos. O espírito sente a importância de sua individualidade quando é pela sua intercessão que um pecador irredutível dá brechas ao arrependimento. Essa mesma magia da afinidade pessoal dá aos protegidos uma especial sensibilidade para captar as ideais e sensações que lhe tentam transmitir seus numes tutelares.

No célebre ditado sobre o autoconhecimento, Agostinho reafirma seu poder introspectivo em sentenças da mais simples e profunda psicologia:

Fazei o que eu fazia, quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava a minha consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. Foi assim que cheguei a me conhecer e a ver o que em mim precisava de reforma... Dirigi, pois, a vós mesmos perguntas, interrogai-vos sobre o que tendes feito e com que objetivo procedestes em tal ou tal circunstância, sobre se fizestes alguma coisa que, feita por outrem, censuraríeis, sobre se obrastes alguma ação que não ousaríeis confessar. Perguntai ainda mais: “Se aprouvesse a Deus chamar-me neste momento, teria que temer o olhar de alguém, ao entrar no novo mundo dos Espíritos, onde nada pode ser ocultado?” (LE. Cap. XII, pergunta 919)

Aqui novamente a grandiosa ideia do olhar da justiça, cuja falta insubstituível tanto limita os princípios da ética materialista. Grifamos as palavras não ousaríeis confessar, imaginando que elas não apenas resumem o dever do homem para com Deus, mas para com sua própria razão. A famosa Crítica da Razão Prática, pela qual Immanuel Kant imortalizou-se no apogeu da ética universal, não contem outro ensinamento.

A moral é, até certo ponto, relativa. Ela demanda, assim, um imperativo da razão, um princípio segundo o qual nossas noções subjetivas de bom e mau possam se converter num dever objetivo para com os outros. Para arrancar do ensimesmamento as noções de bem e de justiça, forçoso é dar-lhe caráter público. O que nas sombras do anonimato nossa alma esconde, não pode escamotear sob a luz da publicidade. Eis, pois, o segredo da filosofia moral: imaginar que todas as ações pudessem ser públicas. Se isto fazemos, prontamente tememos revelar o que até pouco julgávamos inocente. Nosso comportamento se esconde na moral relativa de não causar danos imediatos, mas se por omissões e mentiras sustentamos esta situação, é falsamente que nos inocentamos, pois a retidão exige de nós a pureza de consciência independente do tempo.

Uma outra máxima completa e emula esta: Agir de forma tal que minha ação, ao ser imitada pelos demais e/ou aplicada por outros a mim mesmo, receba o meu total consentimento. Enquanto a primeira elimina o autoengano, esta combate o egoísmo. Quem não se revoltaria com o adultério cometido contra si mesmo? Quem anui de boa vontade que lhe mintam, mesmo nas pequenas coisas? Ainda que repudiemos estas ações, encontramos boas motivações para fazê-las, o que caracteriza nosso profundo egoísmo.

Como se a pouco tivesse folheado a Crítica da Razão Prática, Agostinho continua:

Mas, direis, como há de alguém julgar-se a si mesmo? Não está aí a ilusão do amor-próprio para atenuar as faltas e torná-las desculpáveis? O avarento se considera apenas previdente; o orgulhoso julga que em si só há dignidade. Isto é muito real, mas tendes um meio de verificação que não pode iludir-vos. Quando estiverdes indecisos sobre o valor de uma de vossas ações, inquiri como a qualificaríeis se praticada por outra pessoa. Se a censurais noutrem, não na podeis ter por legítima quando fordes o seu autor, pois que Deus não usa de duas medidas na aplicação de sua justiça. (LE. Cap. XII, pergunta 919)

Com isso se explana a filosofia moral, sem que cheguemos perto de mandamentos positivos como o de fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem. Esta máxima do Cristo exige a caridade, enquanto que a da ética apenas a cordura e a honradez. Mas que dificuldade em cumprir apenas esta ética negativa, que restringe o nosso mal sem nos exigir o sacrifício e a renúncia. E que mundo se formaria ainda que somente esta primeira parte fosse realizada em nossas consciências.

Agostinho é, para parodiar a ele mesmo, toda uma cidade espiritual digna de mapeamento cuidadoso. Somente o espírito de Agostinho, em seus ditados a Kardec, mereceria longos e graves estudos. Mas finalizamos esta análise acreditando ter levantado algo da personalidade histórica de um dos grandes autores da Codificação. A comparação entre sua obra em vida, salvo todas as limitações de época e comprometimentos com a dogmática da Igreja, e os ditados feitos a Kardec parecem revelar, mesmo que para o crítico mais descrente, uma profunda afinidade de ideias e sentimentos.

 

________________

[1] Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Pg. 306.
[2] Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Pg. 308.
[3] Atual Iraque.
[4] Helmut ZANDER. Geschichte der Seelenwanderung in Europa.

 

 

Fonte: http://filosofiaespiritismo.blogspot.com/2011/08/agostinho-e-kardec-iii.html

 

 

 


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