Em A Cidade de Deus,
Agostinho declara sem rodeios ser a filosofia platônica a preferencial
entre os cristãos:
Se Platão disse ser sábio
quem imita, conhece e ama a Deus, de cuja participação
depende ser feliz, que necessidade há de discutir as outras
doutrinas? Nenhuma se aproxima da nossa mais do que a doutrina de
Platão.[1]
Compreenderam os platônicos, a quem vemos, não imerecidamente,
antepostos aos demais em glória e fama, que nenhum corpo
é Deus. Por isso, transcenderam todos os corpos em busca
de Deus. Compreenderam, além disso, que o mutável
não é supremo Deus. Entenderam também que toda
espécie, de qualquer modo mutável, graças à
qual todo ser é o que é, seja qual for o modo e seja
qual for a natureza, não pode proceder senão de Quem
verdadeiramente é porque é incomutavelmente.
(...)
Por causa da imutabilidade e simplicidade entenderam que Ele fez
todas as coisas e não pôde ser feito por ninguém.[2]
Mas após essa defesa intelectual
do platonismo, Agostinho ataca duramente a doutrina da comunicação
com os espíritos. Entre os platônicos, Apuleio destacou-se
por desenvolver uma cosmologia complexa, objetivando descrever todos
os pormenores da vida e atividades dos “demônios”.
Esses seres desencarnados, por terem vivido na terra e estando ainda
materializados por suas paixões, seriam intermediários
entre os deuses, seres já perfeitos pela prática da
filosofia, e os homens viventes na Terra. Apuleio se excede nos contornos
fantasiosos de suas descrições dos espíritos,
mas apresenta alguns pontos lógicos no que toca a motivação
desta estrutura cosmológica em camadas hierárquicas.
Agostinho levanta-se indignado contra esta que pensa ser a mais anticristã
de todas as crenças, defendendo que os espíritos, por
serem imperfeitos, seriam intermediários perigosos entre Deus
e os homens. Desta forma, o que Apuleio e inúmeros platônicos
defendem como argumento cosmológico, da ordem ascensional de
perfeição dos espíritos, Agostinho rebate um
tanto quanto impropriamente através de um argumento moral.
Estaria a partir de então “corrigido” o platonismo,
para servir aos propósitos do Cristianismo em sua forma católica.
Por fim Agostinho investe com todas as forças contra a opinião
de Porfírio, segundo a qual se deveria invocar espíritos
dos mortos para aconselhamento, estudo e intercessão de favores.
Porfírio havia desenvolvido essa doutrina junto aos magos caldeus[3]
adeptos da teurgia egípcia, país este em que vivia,
e foi inclusive capaz de separar os espíritos em categorias,
conforme suas atividades e grau de adiantamento moral. Conta-se até
que Porfírio teria presidido cessões de materialização.
Plutarco afirmava, baseando-se principalmente nos relatos sobre Sócrates,
que os espíritos não possuem língua, mas se comunicam
exclusivamente pelo pensamento. Porfírio e Proclo discordariam
veementemente desta afirmação, garantindo que tanto
anjos quanto demônios utilizavam-se da língua local.
Proclo, que experimentou diretamente diversos oráculos e videntes,
diz que os espíritos se comunicam em sua língua pátria,
mas podem também se comunicar na língua do médium.
Em raros casos observara a xenoglossia, e pareceu muito impressionado
que uma médium fosse capaz de falar em uma língua desconhecida
(o armênio).[4]
Tais ideias eram, portanto, atribuídas
a todos os platônicos, embora nem todos realmente defendessem
a comunicabilidade com espíritos. Por isso Agostinho se insurgiu
contra o platonismo em geral, a propósito de sua correção
desta doutrina.
A obra continua com altos e baixos. Argumentos brilhantes se misturam
a ataques malfadados à filosofia e a outras religiões
da época, quase sempre com base no argumento de autoridade
das escrituras. Em nenhum ponto é feita uma defesa teórica
da autoridade da Bíblia sobre a razão ou sobre outras
espécies de tradições religiosas, mas puramente
se sustenta serem as escrituras “claramente mais autorizadas”.
Em vista de uma defesa dogmática das absurdidades do Velho
Testamento, tem nosso santo de rejeitar a razão em favor dos
relatos do Gênese.
Entre um assunto e outro retornam os ataques à reencarnação,
defendida então ainda por inúmeros cristãos,
apesar da condenação pelo concílio de Nicéia,
realizado décadas antes da redação de “A
Cidade de Deus.”
Outro tema recorrente é a explicação filosófico-teológica
da bondade de Deus e da exclusividade de Sua ação na
criação do mundo, elemento este em que foi realmente
virtuoso. Tanto o vigor de sua lógica quanto a fidelidade a
todos os valores e princípios da fé cristã se
coadunaram, novamente, na defesa da ineficiência do mal. O mal
seria dotado de natureza defectiva, ao passo que somente o bem seria
efetivo. Dessa forma, somente o bem operaria, enquanto o mal se caracterizaria
pela falência ou corrupção de empreendimentos
e coisas, incapaz de criar e engendrar obras. Completando as ideias
expostas nas Confissões, essas análises ajudariam em
muito o estabelecimento de uma perspectiva otimista para a moral e
a cosmologia cristãs, apesar da também presente defesa
da doutrina do pecado, ao qual se deu posteriormente desmedida importância.
A filosofia de Agostinho diagnostica e decreta o fim da era clássica
e o início da Idade Média. Para o homem moderno isso
soa mal, mas para a época foi uma alternativa benéfica
para o caos absoluto. A era da razão havia dissolvido a sociedade.
A que levou toda a filosofia e ciências greco-romanas? Que ordem
social havia se estabelecido com o auxílio do intelecto? Quais
eram as glórias do Império? A escravidão grassava,
os bárbaros choviam de todas as partes sobre as terras já
não tão produtivas, as elites perdiam a medida da baixeza
e da impiedade; ávidos por novas paixões, todas as classes
pediam mais excessos nos circos da morte, nos festins de glutonaria
e embriaguez, nas orgias e nos múltiplos relacionamentos amorosos,
desprovidos de qualquer humanidade e consideração pela
própria saúde ou integridade.
A ética e a teoria haviam feito sim inúmeros progressos.
Contudo, as turbas ensandeciam enquanto os filósofos cultivavam
o espírito em jardins afastados dos centos populosos. Os santos
e sábios gregos vagavam como mendigos maltrapilhos pelas ruas
opulentas. Vergados pela descrença em qualquer possibilidade
de renovação da natureza humana, mantinham-se cada vez
mais céticos e cínicos, adjetivos estes que inclusive
nomearam duas das escolas mais famosas da época.
Os pensadores cristãos identificaram nesse estado de coisas
uma falência da inteligência humana diante dos problemas
pertinentes a vontade e ao sentimento. Agostinho foi um dos que melhor
perceberam o problema, e que melhores soluções propôs.
Num mundo onde a razão não podia mais oferecer suas
contribuições luminosas, somente a reforma dura, mesmo
que artificial e imposta, do caráter poderia oferecer algum
paliativo à desordem. As disciplinas monásticas se desenvolveram
a partir desse precedente. Uma aversão natural ao período
clássico surgiu, não como desprezo pela virtude dos
filósofos, mas como incredulidade em sua capacidade de promover
o bem geral.
A Idade Média não foi um momento de queda. Nasceu de
uma saciedade, um esgotamento de um meio de vida que de modo algum
podia se sustentar. Assim como ela mesma foi superada pelos seus excessos
e erros, a era da fé tomou as rédeas de uma condução
errada, ansiosa por fazer melhor.
A pergunta 495 de O Livro dos Espíritos contém
uma resposta à quatro mãos; as de São Luís
e as de Santo Agostinho. Espíritos afins, é possível
que estejam de pleno acordo neste tocante e tenham redigido juntos
o segmento, mas em nosso estudo particular sobre Agostinho ressalta
a sua afinidade sui generis com o tema e estilo de investigação.
Só um mestre do solilóquio poderia imbuir uma explicação
de cores tão vivas, de um tão marcante conhecimento
de causa. Acresce que a famosa “voz” do episódio
da conversão e inúmeras das meditações
reveladas em Confissões são por demais semelhantes
ao que ele aqui expõe. A doutrina dos anjos guardiães
também conta entre um dos princípios defendidos por
Agostinho em suas obras:
Não
vos parece grandemente consoladora a ideia de terdes sempre junto
de vós seres que vos são superiores, prontos sempre
a vos aconselhar e amparar, a vos ajudar na ascensão da abrupta
montanha do bem; mais sinceros e dedicados amigos do que todos os
que mais intimamente se vos ligam na Terra? Eles se acham ao vosso
lado por ordem de Deus. Foi Deus quem aí os colocou e, aí
permanecendo por amor de Deus, desempenham bela, porém penosa
missão. Sim, onde quer que estejais, estarão convosco.
Nem nos cárceres, nem nos hospitais, nem nos lugares de devassidão,
nem na solidão estais separados destes amigos a quem não
podeis ver, mas cujo brando influxo vossa alma sente, ao mesmo tempo
que lhes ouve os ponderados conselhos...
Mas, oh! quantas vezes, no dia solene, não se verá
esse anjo constrangido a vos observar: “Não te aconselhei
isto? Entretanto, não o fizeste. Não te mostrei o
abismo? Contudo, nele te precipitaste! Não fiz ecoar na tua
consciência a voz da verdade? Preferiste, no entanto, seguir
os conselhos da mentira!” Oh! Interrogai os vossos anjos guardiães;
estabelecei entre eles e vos esta terna amizade que reina entre
os melhores amigos. Não penseis em lhes ocultar nada, pois
que eles tem o olhar de Deus e não podeis enganá-los.
(LE. Cap. IX, pergunta 495)
Dentre as numerosas e extensas comunicações
de Agostinho dirigidas a Kardec o quão revelador já
não nos é este curto fragmento. A beleza aludida pelos
espíritos é a da presença dos seres amáveis
e amados junto de cada homem, digno ou indigno, nobre ou corrupto.
Doutrina esta tão cara aos orientais em seu culto aos antepassados,
e que aqui nos é apresentada com uma sutil analogia entre olhar
de Deus e o dos espíritos protetores. O juízo de Deus,
elemento poderoso da moral dos povos, é tão mais sentido
quanto mais forte é a crença de que Ele tudo vê.
Mas aqui não se está apenas a afirmar a onipresença
de Deus, que nossa mente ainda não compreende e que muitas
vezes acha vaga, como também a presença e ciência
de parentes e amigos sobre nossos mais pequenos atos e pensamentos.
Sabedor deste processo, o homem pode divisar com clareza a seriedade
de sua vida moral, devassada por seres que o conhecem e que lhe são
caros. A lembrança do pai, dos avós, da mãe,
dos irmãos ou filhos, dos melhores amigos, envergonha o homem
no íntimo quando nem a visão de Deus o havia feito retroceder
de seus crimes. É que o Altíssimo é visto como
distante, sua perfeição moral inalcançável,
enquanto a lembrança de alguém honrado enche de vergonha
aquele que se precipita. A Deus o homem exclama com hipocrisia: “Tu
me fizeste assim; não reclames!”, mas ante a presença
ou lembrança de um amigo impoluto a farsa é desbancada.
Os filhos pródigos do mundo provam a força do esforço
pessoal e a possibilidade da regeneração; os bons dão
testemunho da divindade que há em cada homem, e nós
já não podemos encará-los sem corar, sabedores
de que o homem, podendo ser perfeito, permanece com gosto em seus
vícios.
Além disso, o apelo que a presença de entidades simpáticas
possui sobre o coração do homem é uma ferramenta
poderosa que Deus usa em favor de ambos. O espírito sente a
importância de sua individualidade quando é pela sua
intercessão que um pecador irredutível dá brechas
ao arrependimento. Essa mesma magia da afinidade pessoal dá
aos protegidos uma especial sensibilidade para captar as ideais e
sensações que lhe tentam transmitir seus numes tutelares.
No célebre ditado sobre o autoconhecimento, Agostinho reafirma
seu poder introspectivo em sentenças da mais simples e profunda
psicologia:
Fazei o que
eu fazia, quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava a minha
consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a
mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém
tivera motivo para de mim se queixar. Foi assim que cheguei a me
conhecer e a ver o que em mim precisava de reforma... Dirigi, pois,
a vós mesmos perguntas, interrogai-vos sobre o que tendes
feito e com que objetivo procedestes em tal ou tal circunstância,
sobre se fizestes alguma coisa que, feita por outrem, censuraríeis,
sobre se obrastes alguma ação que não ousaríeis
confessar. Perguntai ainda mais: “Se aprouvesse a Deus
chamar-me neste momento, teria que temer o olhar de alguém,
ao entrar no novo mundo dos Espíritos, onde nada pode ser
ocultado?” (LE. Cap. XII, pergunta
919)
Aqui novamente a grandiosa ideia do
olhar da justiça, cuja falta insubstituível tanto limita
os princípios da ética materialista. Grifamos as palavras
não ousaríeis confessar, imaginando que elas
não apenas resumem o dever do homem para com Deus, mas para
com sua própria razão. A famosa Crítica da
Razão Prática, pela qual Immanuel Kant imortalizou-se
no apogeu da ética universal, não contem outro ensinamento.
A moral é, até certo ponto, relativa. Ela demanda, assim,
um imperativo da razão, um princípio segundo o qual
nossas noções subjetivas de bom e mau possam se converter
num dever objetivo para com os outros. Para arrancar do ensimesmamento
as noções de bem e de justiça, forçoso
é dar-lhe caráter público. O que nas sombras
do anonimato nossa alma esconde, não pode escamotear sob a
luz da publicidade. Eis, pois, o segredo da filosofia moral: imaginar
que todas as ações pudessem ser públicas.
Se isto fazemos, prontamente tememos revelar o que até pouco
julgávamos inocente. Nosso comportamento se esconde na moral
relativa de não causar danos imediatos, mas se por omissões
e mentiras sustentamos esta situação, é falsamente
que nos inocentamos, pois a retidão exige de nós a pureza
de consciência independente do tempo.
Uma outra máxima completa e emula esta: Agir de forma tal
que minha ação, ao ser imitada pelos demais e/ou aplicada
por outros a mim mesmo, receba o meu total consentimento. Enquanto
a primeira elimina o autoengano, esta combate o egoísmo. Quem
não se revoltaria com o adultério cometido contra si
mesmo? Quem anui de boa vontade que lhe mintam, mesmo nas pequenas
coisas? Ainda que repudiemos estas ações, encontramos
boas motivações para fazê-las, o que caracteriza
nosso profundo egoísmo.
Como se a pouco tivesse folheado a Crítica da Razão
Prática, Agostinho continua:
Mas, direis,
como há de alguém julgar-se a si mesmo? Não
está aí a ilusão do amor-próprio para
atenuar as faltas e torná-las desculpáveis? O avarento
se considera apenas previdente; o orgulhoso julga que em si só
há dignidade. Isto é muito real, mas tendes um meio
de verificação que não pode iludir-vos. Quando
estiverdes indecisos sobre o valor de uma de vossas ações,
inquiri como a qualificaríeis se praticada por outra pessoa.
Se a censurais noutrem, não na podeis ter por legítima
quando fordes o seu autor, pois que Deus não usa de duas
medidas na aplicação de sua justiça.
(LE. Cap. XII, pergunta 919)
Com isso se explana a filosofia moral,
sem que cheguemos perto de mandamentos positivos como o de fazer
aos outros o que gostaríamos que nos fizessem. Esta máxima
do Cristo exige a caridade, enquanto que a da ética apenas
a cordura e a honradez. Mas que dificuldade em cumprir apenas esta
ética negativa, que restringe o nosso mal sem nos exigir o
sacrifício e a renúncia. E que mundo se formaria ainda
que somente esta primeira parte fosse realizada em nossas consciências.
Agostinho é, para parodiar
a ele mesmo, toda uma cidade espiritual digna de mapeamento cuidadoso.
Somente o espírito de Agostinho, em seus ditados a Kardec,
mereceria longos e graves estudos. Mas finalizamos esta análise
acreditando ter levantado algo da personalidade histórica de
um dos grandes autores da Codificação. A comparação
entre sua obra em vida, salvo todas as limitações de
época e comprometimentos com a dogmática da Igreja,
e os ditados feitos a Kardec parecem revelar, mesmo que para o crítico
mais descrente, uma profunda afinidade de ideias e sentimentos.
________________
[1] Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Pg. 306.
[2] Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Pg. 308.
[3] Atual Iraque.
[4] Helmut ZANDER. Geschichte der Seelenwanderung in Europa.