Immanuel Kant, o maior de todos os
filósofos da Era Moderna, tem uma recepção problemática
por parte do Espiritismo. De uma lado ele atacou a metafísica
das substâncias, que constitui um elemento prioritário
da metafísica espírita (pense-se em fluido cósmico
universal, perispírito, centros de força e coisas semelhantes),
de outro lado ele fez uma crítica direta ao fenômeno
da vidência, manifestado com grande alarde por outro Emanuel,
o engenheiro e místico Swedenborg.
Kant errou, como todos, em alguns
pontos, mas tomá-lo por antagonista é mais do que uma
má estratégia filosófica: para quem queira sustentar
alguma forma de racionalismo moderno, é suicídio.
Há boas razões, contudo,
para afirmar que o uso de Kant por parte de adversários do
Espiritismo é mais motivado por ignorância do que por
qualquer outra justificativa, e o mesmo vale para o incômodo
de pensadores espíritas em relação ao pensador
de Königsberg.
Se o mundo viu um homem imparcial
nos seus julgamentos, este foi o eremita e cientista prussiano, revolucionário
tardio do pensamento. Ao ouvir falar de um vidente sueco que recebia
mensagens dos espíritos e se afirmava capaz de se desdobrar
em viagens astrais, Kant se absteve de ambas as reações
típicas dos demais seres humanos; nem condenou como louco o
vidente, nem o recebeu instantaneamente como taumaturgo fantástico.
Dedicou-se, ao contrário, a uma terrivelmente trabalhosa análise
que objetivava aclarar a possibilidade de ocorrência de tais
fenômenos, e da validade dos relatos a eles ligados. O resultado
é o famoso livro Sonhos de um visionário.
O livro, porém, não
eliminou o problema. Alguns afirmavam ter visto nele a condenação
definitiva do espiritualismo, pois o filósofo afirmava que
tais condições jamais poderiam proporcionar conhecimento
científico. Outros diziam ser Kant um defensor e mesmo um crente
fervoroso nos fenômenos espirituais, já que ele afirmava
serem muitos deles dignos de fé. Onde a verdade?
A célebre frase que futuras edições colocaram
na contracapa dá o tom de ambiguidade, e a dimensão
do drama:
Qual Filósofo não
esteve uma vez entre, o juramento de uma pessoa sensata e convicta
testemunha ocular, e a resistência interior de uma dúvida
inolvidável? Deve ele negar completamente a veracidade de
todos os fenômenos espirituais? O que o deve conduzir aos
fundamentos de sua posição acerca deste assunto.[1]
Ao menos não se o pode acusar
de não tratar seriamente a questão. O livro coleciona
relatos de testemunhas dos fenômenos produzidos por Swedenborg,
críticas e apologias de algumas das pessoas mais envolvidas
no assunto, proporcionando grande erudição sobre o contexto
da questão na época. Logo a mente sintética e
crítica do pensador chega a uma definição conceitual
extremamente econômica, subdividida em duas perguntas sem as
quais nada se pode concluir sobre a mediunidade: 1- Qual é
a natureza dos Espíritos? 2- Qual é a relevância
objetiva de um testemunho pessoal, não verificável?
O próprio Swedenborg não
possuía um método, como Kardec posteriormente viria
a elaborar, sendo apenas um médium muito ostensivo e homem
de grande instrução. Assim, Kant não tem como
colher do vidente caracteres filosóficos que lhe permitam uma
confrontação. Ele é obrigado a fazer todo o trabalho
filosófico "de fora", sem a presença do médium
e sem condições similares que lhe favorecessem a solução
das mais pequenas dúvidas. Kardec teve o privilégio
de operar com condições bem mais cômodas, e somente
por esse motivo já seria de se esperar que reunisse observações
mais precisas que as disponíveis a Kant.
Em suma, Swedenborg não tinha
boas respostas para nenhuma das grandes questões levantadas
por Kant, o que não fez com que o último desautorizasse
imediatamente a doutrina do primeiro. O filósofo teve de trabalhar
de maneira especulativa, usando os conceitos metafísicos vigentes
de substância, alma, espírito, etc.
Em alemão a palavra para espírito,
geist, significa também mente, e há um bloqueio
cultural quanto a relacionar o espírito a um ser corpóreo,
dotado de sensações, motricidade e localidade. Espírito
é o intelecto, quando muito as memórias, e as expressões
populares para aparições de espíritos são
sempre interpretadas pejorativamente, relacionadas a fantasmagorias.
Por isso, mas também por razões filosóficas,
Kant julgava precária a definição de espíritos
como seres perfeitamente corpóreos, com suas vestimentas e
idiossincrasias, tais quais os relatados por Swedenborg.
Semelhantes imagens pareciam a Kant
mais compatíveis com a definição de alma, que
evoca sempre noções mais ou menos materiais, embora
de uma materialidade sutil, fluídica ou etérea. A conclusão
sensata de Kant é a seguinte: ou os espíritos são
materiais e, portanto, mensuráveis e comandados pelo princípio
mecânico de causa e efeito, ou são imateriais e, assim,
não há como vê-los, ouvi-los ou mesmo pensá-los,
pois o que não é material não possui forma ou
substância para serem apreendidas.
Pois bem, os espíritos de
Swedenborg tinham forma, impressionavam os sentidos e pareciam de
todo modo materiais, mas isso os colocaria na classe dos fenômenos
estudados pela ciência, o que não se verificava. Caímos
no problema da medição, pois como os espíritos
não podem ser observados com método científico,
suas aparições exclusivas a um ou outro indivíduo
não podem ser confirmadas como “conhecimento”,
são apenas testemunhos.
Esse julgamento é puramente
epistemológico, não estabelecendo valores de bom ou
mau, certo e errado ou verídico e inverídico. Dizer
que algo não é científico não significa
dizer que seja falso, e dizer que as pessoas não podem considerar
o relato de Swedenborg como conhecimento válido, não
significa desautorizá-las de crer nesse relato e viver conforme
ele.
Na verdade é exatamente isto
o que Kant recomenda em Sonhos de um visionário: enquadrar
os relatos como testemunhos que são. Ele reconhece que muitos
dos relatos de videntes são plausíveis, respeitáveis
do ponto de vista moral e proferidos por pessoas do mais inquestionável
caráter. Ainda assim, nada do que dizem pode ser verificado,
de modo que só lhes podemos conceder ou não nosso voto
de fé.
Kant conclui que, a respeito dos contatos
com os mortos, deve-se proceder como em qualquer ocasião em
que um indivíduo profere ter vivenciado experiências
que ninguém mais teve ou pode ter. A plateia deve
julgar com sua própria razão e sensibilidade a plausibilidade
do relato, a idoneidade da testemunha e chegar a uma conclusão
subjetiva, com valor de convicção, sobre ele.
O filósofo tece até
um exemplo alegórico bem-humorado: supõe-se que um náufrago
chegasse a uma ilha deserta e lá visse coisas admiráveis.
Improvisando uma jangada ele consegue escapar, mas não é
capaz de dizer ao certo a localização da ilha, e outros
não a puderam encontrar posteriormente. Os relatos do náufrago
são sóbrios e detalhados, e ele é conhecido como
ajuizado, consciencioso e honesto. Como devem proceder os ouvintes?
Decerto alguns crerão no amigo, mas a ninguém ocorrerá
acrescentar a narrativa aos livros de ciência.
Essa conclusão foi tida como
fulminante contra as pretensões científicas do espiritismo
pré-kardequiano, mas seria uma tolice temê-la ou empregá-la
após o método desenvolvido pelo codificador. Aqueles
que ainda hoje empregam o Sonhos de um visionário
como crítica ao Espiritismo desconhecem os elementos mais básicos
desta doutrina, enquanto que os espíritas que se sentem incomodados
com a crítica kantiana falham em compreender o contexto, para
o qual a conclusão do filósofo era corretíssima.
Médiuns houve muitos, fenômenos
idem, sempre e em quantidade. Nada disso, entretanto, faz uma ciência,
se não houver um cientista que organize os fenômenos
segundo um método, e que os ponha à prova. Kardec foi
o executor desse projeto árduo e ingrato de fundar uma ciência
do oculto, ainda hoje estigmatizada, mas raramente criticada com rigor.
Ele começou por duvidar, tão ou mais do que fizera Kant,
dos fenômenos que se lhe apresentaram, e somente passou a tomá-los
como base para sua nova ciência quanto respondeu satisfatoriamente
aos dois problemas levantados por Kant.
Ao problema da substância, que desde o início atormentou
Kardec, responderam os próprios fenômenos sob a força
da repetição e da diversificação de experimentos.
Ao princípio intelectual, que não pode responder à
causalidade mecânica, nem apresentar forma ou mensurabilidade,
e ao elemento material, dotado de todas estas características,
observou-se o elemento intermediário que pode constituir o
períspirito, um fluido ainda material, mas passivo de comando
do espírito.
As qualidades sui generis do proposto “fluido cósmico
universal”, escapando das categorias dualistas da metafísica,
oferece uma resposta teórica para o questionamento acerca da
impossibilidade de contato entre espíritos e seres encarnados.
Mas o mais interessante ainda é o fato de esse conceito ter-se
desenvolvido por experimentação, não por especulação
metafísica, e essa experimentação só foi
possível porque Kardec resolveu o segundo problema kantiano,
o da validade dos relatos dos médiuns.
Certificado empiricamente da veracidade
dos fenômenos, o codificador do Espiritismo (só agora
com a letra maiúscula do nome próprio) não se
precipitou em declarar como ciência a sua coletânea de
fatos. Elaborou uma ferramenta metodológica digna dos fundadores
das ciências humanas para averiguar a universalidade dos relatos.
Só assim podia eliminar a subjetividade dos testemunhos individuais
dos médiuns e atingir a almejada imparcialidade para a conceituação
dos fenômenos espíritas e das ideias que os espíritos
por eles transmitiam. A ciência material dos fenômenos
físicos e psicológicos produzidos pelos médiuns
foi amplamente reproduzida desde a época aos dias de hoje,
mas a ciência pura proporcionada unicamente pelo controle universal
do ensinamento dos espíritos, e que produziu um verdadeiro
sistema crítico para a comunicação com o outro
mundo, é o traço peculiar dos esforços de Kardec.
Há, portanto, duas ciências espíritas, uma localizada
entre a física e a psicologia, pertinente aos fenômenos
mediúnicos, e uma outra que se aproxima das ciências
sociais, ainda que inteiramente diferenciada, pertinente aos processos
de controle estatístico e crítico das ideias apresentadas
pelos espíritos.
Não há como saber qual o grau de familiaridade de Kardec
com as críticas de Kant, mas estas últimas são
inteiramente compatíveis com os padrões de qualidade
e inovações metodológicas apresentadas por Kardec.
Não havendo outra crítica igualmente precisa do Espiritismo
como método científico, estamos a aguardar de seus opositores
análises tão judiciosas quanto a de Kant.