Como bem se sabe, toda a cultura latina é uma expressão
ampliada e adaptada da grega. De modo que somente pelas características
mais cotidianas e técnicas da vida se diferencia a alta cultura
da Grécia Clássica e da Roma Antiga. No mais, a educação
do patrício romano consiste no estudo dos clássicos,
preferencialmente nos originais em grego.
Não assusta que a sua literatura seja quase que uma cópia
daquela, onde o panteão de deuses, a mitologia, a filosofia
implícita e os temas tendem a se repetir.
Assim que Cícero expressa crenças gregas, assumidamente
adquiridas em contato com esta tradição.
“Pois que estou longe de concordar
com aqueles que tardiamente promulgam a opinião de que a
alma perece com o corpo, e que a morte aniquila todo o ser, por
outro lado, há que se valorizar a autoridade dos antigos,
aqueles que estabeleceram ritos para os mortos, os quais certamente
não seriam feitos com o pensamento de que os mortos estão
totalmente desinteressados destas observâncias... ou ainda
segunda aquela doutrina; que segundo alguns foi pronunciada pelo
oráculo de Apolo ao mais sábio dos homens, e que dizia
não uma coisa hoje e outra amanhã, como fazem muitos,
mas repetia sempre a mesma coisa, sustentando que as almas dos homens
são divinas, e que saem do corpo, que o retorno aos céus
é acessível a elas, e que este retorno é direto
e fácil na proporção de sua integridade e excelência.”
É interessante o caráter
prático que distingue o povo latino da maneira de pensar grega,
estritamente teórica, pois nenhum filósofo grego diria
serem as tradições comprovantes do interesse dos espíritos
em nossas vidas. À mentalidade grega agrada a teoria, a abstração,
e o grego argumentará sempre que a alma aprecia o rito fúnebre
porque há para isso uma razão, e a explicará
segundo a natureza da alma, a qual apraz a amizade, a lembrança.
Cícero, sendo pragmático, argumenta conforme os fatos.
1- Faz-se ritos aos antepassados. Logo alguém que instituiu
estes ritos sabia serem capazes de agradar aos espíritos. 2-
Há doutrinas que falam da divindade humana e da relação
entre pureza moral e libertação da alma. O filósofo
latino procede por observação de fatos e relatos.
Em termos semelhantes se expressa Vergílio, embora não
faça, como o filósofo, um elenco de argumentos. Como
era comum às tradições do passado, incluindo
naturalmente a Bíblia, a literatura clássica confunde
criatividade e tradição, lenda e memória histórica
da fundação dos povos e destino das nações.
A Eneida, que sem dúvida é a obra maior da cultura romana,
é um relato fictício que guarda profundas intuições
históricas e espirituais sob suas metáforas. Tratando
somente das segundas, encontramos uma descrição impressionante
do suicídio de Dido, rainha de Cartago, ao ser abandonada por
Enéas. Ainda no templo da pátria, durante a decisão
de matar-se, “crê ouvir a voz e os gritos de chamamento
do seu marido...”.2
Instantes antes do suicídio,
Enéas vê em sonho a imagem de um deus “desconhecido”,
que lhe diz:
“... não vês
os perigos que te cercam no porvir? Ela, decidida a morrer, revolve
em seu coração enganos e crime cruel, e flutua numa
varia agitação de furores. Porque não foges
depressa, enquanto ainda podes...” 3
Atento a uma mensagem tão clara
e direta, Enéas não receia em lançar-se ao mar
com seus marujos rumo à Itália, enquanto Dido, recebendo
os informes do ocorrido, perfura-se com a espada da família.
Entretanto não consegue morrer, porque literalmente está
presa ao corpo, e agoniza terrivelmente.
“Então, a onipotente
Juno, compadecida da sua prolongada dor e da penosa morte, envia-lhe
Íris, do alto do Olimpo, para libertar aquela alma em luta
com os laços do corpo. Pois, como sucumbia a uma morte não
prescrita pelo destino nem merecida, mas perecia, infeliz, antes
do tempo e presa a um súbito furor...” 4
Temos aí uma página
verdadeiramente espírita, relatando a aventura primitiva daquilo
que se observa nas páginas de André Luiz ou Manoel Philomeno
de Miranda. A boa Íris tem o papel de verdadeira mensageira
da luz, atuando em favor de uma transição menos terrível
de Dido, que por sua vez não consegue libertar-se do corpo.
Mais tarde Enéas tem de descer ao Tártaro, nas mesmas
condições em que Ulisses havia feito na Odisséia
de Homero. Enquanto o herói de Ítaca encontrava aí
a sua mãe, Enéas vê o pai, Anquises, no mundo
das sombras. Anquises fala a Enéas:
“Logo que o dia supremo da
vida deixou o corpo, os infelizes não estão de todo
desembaraçados do mal... e o mal que longo tempo se acumula
no fundo deles mesmos, necessariamente cresce... Por isso são
castigados com penas e sofrem... a seguir somos enviados para o
amplo Elísio... Finalmente, depois que um longo dia, volvido
o círculo dos tempos, apagou a mancha profunda e purificou
a origem celeste, faísca do sopro primitivo... o deus os
chama para as bordas do rio Letes, a fim de que esqueçam
o passado... e comecem a querer voltar para corpos. 5
Esta página riquíssima aponta discretamente para várias
grandes verdades. Os espíritos que não se desembaraçaram
do mal são aqueles que o acumulam por longo tempo em si mesmos,
revelando a lei do mérito e indicando que há justiça
e conhecimento de causa no processo de separação das
almas condenadas. E o mais impressionante, após os sofrimentos
expiatórios de suas faltas a alma se vê purificada, e
é reconduzida ao corpo.
Estes dois exemplos, de Cícero e Vergílio, são
suficientes para ilustrar o quão vivos estavam ainda os conhecimentos
de Orfeu, Pitágoras, Platão e outros sábios gregos,
que a cultura romana então absorvia avidamente.
Nos anos que se sucederam os homens mais sábios do mundo romano
já estavam envolvidos com o cristianismo nascente, tanto que
não há obras expressivas da literatura pagã após
o ano de 60 d.C. aproximadamente.
Os melhores elementos daquela cultura, entretanto, foram absorvidos
e transmitidos à rica tradição cultural dos dois
séculos posteriores, cumprindo assim a sua missão de
educar as populações latinas para o cultivo da virtude
e da sabedoria.
VERGÍLIO. Eneida. São Paulo: Cultrix,
2001.
1- Marcus Tullius CICERO. De Amicitia (Da Amizade).
2- VERGILIO. Eneida. Pg. 81.
3- VERGILIO. Eneida. Pg. 83
4- VERGILIO. Eneida. Pg. 86.
5- VERGILIO. Eneida. Pg. 127.