Filosofias da Índia
Segundo consenso geral, as primeiras formas organizadas de religião,
contando com códigos escritos, rituais regulares e princípios
filosóficos elaborados foram as do sub-continente indiano,
na extensão entre o Indo e o Ganges. Esta região era
desde 12 ou 13 mil a.C. dominada pelos arianos, povo que recebeu este
nome porque antigamente se acreditava terem vindo do Irã. Ariano
não é mais do que a forma ancestral da grafia e pronuncia
equivalente ao iraniano atual.
Apesar de que já houvesse escritos religiosos, pois os havia
na China, na Mesopotâmia e no Egito, a civilização
proto-ariana do norte da Índia, Paquistão e Irã
oriental destacava-se pela independência de que seu código
e culto religioso gozavam frente à arbitrariedade de governantes,
fossem religiosos ou políticos. Isto é importante porque
as leis sagradas e rituais essenciais mudavam drasticamente de acordo
com o interesse dos déspotas em todas as regiões, sendo
a primeira exceção a religião védica.
Os famosos Vedas nada mais são do que estes textos arquimilenares
compilados a partir de cânticos e ditados até então
transmitidos oralmente. A sua versão escrita, inaugurando a
época das religiões organizadas, data de 1500 a.C. aproximadamente.
Mas os cânticos mais novos já tinham séculos quando
foram escritos, e os mais velhos podem datar de dois ou três
mil antes de Cristo. Devotos e indólogos mais entusiasmados
costumam defender uma cronologia mítica com cifras absurdas,
às vezes de 50 mil anos ou mais. Não existe, no entanto,
nenhuma base empírica ou lógica para estas afirmações.
Com a popularização dos textos védicos e a instituição
da religião independente dos trânsitos de governo, proliferou
na região uma cultura sacerdotal distinta de todas as demais
até aquele período, que se caracterizava pela liberdade
de pensamento e especulação abstrata. Com isto, surgiram
os Upanixades, originalmente como comentários elaborados e
interpretativos sobre os Vedas. Mesmo sendo muito mais jovens do que
os Vedas, os Upanixades ainda são tão antigos quanto
às tábuas de Moisés, com aproximadamente 3400
anos, alguns um pouco menos.
Enquanto os textos védicos são míticos, ritualísticos
e impregnados por uma linguagem autoritária que lembra muito
o Pentateuco, em especial as leis, os Upanixades são compostos
geralmente por alegorias refinadas e abstratas, especulação
filosófica e poesia espiritualizada. Categorias que podem ser
encontradas em todas as tradições religiosas.
O Chandogya Upanixade, por exemplo, apresenta-nos a idéia de
investigação filosófica das essências das
coisas. Um pai tenta repreender o filho que se gabava excessivamente
de sua ciência. Ele lhe diz assim:
“Traga-me um fruto da árvore
de nyagrodha
- Aqui está pai.
- Abre-o.
- Está aberto, pai.
- Que vês aí.
- Umas sementinhas.
- Abre uma.
- Ei-la aberta.
- Que vês aí.
- Nada.
O pai disse:
- Meu filho, na essência sutil que não percebes aí,
nesta essência está o ser da enorme árvore nyagrodha.
Nisto que é a essência sutil, todos os seres têm
o seu Eu. Isto é o verdadeiro, isto é o Eu, e tu,
Svetaketu, tu és isto...” [1]
Nesta alegoria de profundo valor
reflexivo, o Upanixade demonstra que os princípios ou leis
são exatamente a parte invisível e imponderável
da realidade. E antes que o astuto homem moderno responda que o conhecimento
científico já desvendou a natureza do desenvolvimento
da semente através da estrutura de DNA, lembramos que o sábio
pai da história não está excluindo a imanência
da lei numa estrutura material, tanto que ele sabe perfeitamente que
a semente, material, é imprescindível para o crescimento
da planta.
Confrontado com a noção de DNA da semente ele também
admitiria que sem esta estrutura física o fenômeno de
metamorfose da planta seria impossível, mas ele está
consciente de que é a ordenação da matéria,
seguindo princípios e leis, invisíveis e imateriais,
enfim, é o fato de haver uma lógica na disposição
da parte material da semente que a permite tornar-se árvore.
Esta lógica e ordenação compõem a parte
imutável, permanente e espiritual de todas as coisas, e é
para ela que a história está atentando.
Num aspecto mais moral as Upanixades se revelam ainda mais instigantes.
O Yogatattva Upanishad diz:
“As almas individuais são
prisioneiras dos prazeres e desgraças que as afetam neste
mundo; para livrá-las da ilusão é preciso dar-lhes
o conhecimento de Brahman (A Suprema Realidade, Essência do
Universo), graças ao qual o indivíduo já não
é mais afetado pela doença, nem pela velhice, nem
pela morte e não sofre mais o risco de renascer. E este conhecimento
é adquirido com dificuldade, mas é um navio que permite
atravessar o rio dos renascimentos; pode-se atingi-lo por mil caminhos
diferentes, mas ele é realmente Um, refúgio supremo
além do qual nada existe. Alguns procuram seu caminho na
prática dos ritos ensinados nos escritos védicos:
eles caem por ignorância nas malhas do ritualismo. Nem os
ritualistas nem os deuses (espíritos superiores) podem explicar
essa Realidade indizível; e como essa forma suprema que só
a alma conhece poderia ser conhecida pelas escrituras?” [2]
Esta passagem impressiona pela
liberalidade e pela grande consciência ecumênica e crítica.
A crítica do ritualismo e do apego dogmático aos Vedas
lembra a recomendação sábia de Paulo para transpor
a letra e apreender o espírito dos textos. Mas considerando-se
que o texto indiano antecede em mais de mil anos o do apóstolo
de Tarso, e supera também a filosofia grega que permitiu ao
judeu helenizado este grau de tolerância intelectual, somos
forçados a render homenagem e respeito a esta antiga filosofia,
a qual muitos críticos ocidentais ainda consideram desmerecedora
do título de racional.
Os Upanixades, como toda grande filosofia espiritualista, prima pela
unidade monista do universo em Deus. O Dhyanabindu Upanixade, por
exemplo, lembra que aquela parte essencial e imortal de todas as coisas,
o ser dos seres, é a força divina onipresente:
“E todos os seres que existem
são atravessados pela Alma (Atman), como as pérolas
por um fio. O espírito sereno, o pensamento claro, assenta-se
em Brahman (A Suprema Realidade. Essência ou Alma do Universo),
quem o conhece. Sim, como o óleo nos grãos, o perfume
na flor, a Alma está no corpo do homem, e o envolve e habita!”
[3]
O Hamsa Upanishad apresenta em
feições ainda mais poéticas a unidade divina
do universo desdobrado a partir da substancia pensante absoluta:
“Ele entra em todos os
seres, o Pássaro Migrador (Brahman), e torna-se presente
neles como o fogo nas varetas de atritar. Ou como o óleo
no sésamo. Saber isso é vencer a morte. (...) Ele
é o Pássaro Supremo, resplandecente como a luz de
dez milhões de sóis e pelo qual todas as coisas foram
permeadas.” [4]
As conseqüências éticas, ecumênicas e sociais
deste espiritualismo místico são louváveis. O
Sri Isopanixade mostra, no sexto mantra, como a própria idéia
de Deus produz um ponto de vista universalista e espiritual:
“Aquele que vê que tudo está
relacionado com o Senhor Supremo, que vê que todas as entidades
vivas são suas partes integrantes, e que vê que o Senhor
Supremo está dentro de tudo, não odeia nada nem ninguém.”
[5]
Não é minha intenção fazer
uma análise cuidadosa dos Upanixades, motivo pelo qual termino
esta curtíssima e superficial exposição da vasta
e complexa literatura sagrada indiana sem nem mesmo uma conclusão
geral. Isto também tem a ver com o fato de que a Índia
originou todas as grandes linhas de pensamento que vemos em conflito
na história da filosofia ocidental. Diversos tipos de ateísmo,
uns materialistas outros espiritualistas.
Monismos predominantes pontuados por dualismos ou politeísmos
de vários tipos. Adoração dos elementos da natureza
em expresso panteísmo, ou teísmos de Deus único
com entidades subordinadas que lembram o catolicismo. Da teologia
indiana vem inclusive a idéia de trindade, onde um Deus supremo
se divide em distintas pessoas, cada qual com uma existência
real e independente.
Por volta de 500 a 450 a.C., enquanto a Grécia via a formação
da escola pitagórica e a juventude de Sócrates, todas
as formas imagináveis de especulação religiosa
já haviam sido tentadas na Índia. As disputas sobre
os meandros dogmáticos e rituais, os conflitos entre as várias
escolas, produziu a revolta cética baseada numa doutrina extremamente
pragmática e desprovida de conteúdo teológico,
o budismo. Na mesma época o sábio Patânjali tentou
isolar a ciência indiana sobre práticas ascéticas,
respiratórias e místicas das doutrinas religiosas. Semelhantemente
a Sidarta Gautama, Patânjali achava que o excesso de teorias
religiosas era mais prejudicial do que benéfico à elevação
da alma, e criou um método rígido, racionalista e empirista
para separar o Yoga, conhecimento prático, de qualquer crença,
dando origem à grande tradição de místicos
treinados. Agnósticos por natureza, os yogis podem e geralmente
aderem adicionalmente a uma religião, inclusive a islâmica,
mais recentemente.
De natureza totalmente distinta é a literatura épica
formada neste período tardio da cultura em sânscrito.
O colossal Mahabarata, contendo a história da guerra entre
duas famílias do mesmo clã, rico de considerações
filosóficas e devocionais, é de muito longe a maior
obra literária da antiguidade. Mais de dez vezes maior do que
a Ilíada e a Odisséia reunidas. Um único e pequeno
fragmento deste livro, o Bhagavad-Gita, contém virtualmente
todo o conhecimento necessário para a vida santificada, e por
isso acabou popularizando-se como um livro à parte.
O médico, político, filantropo e jornalista Adolfo Bezerra
de Menezes, em sua obra Estudos Filosóficos, faz a análise
daquele magnífico livro indiano, dedicando-lhe páginas
poéticas e apaixonadas. Segundo ele: “o Bhagavad-Gita
é um livro tão elevado, tão luminoso, que nem
mesmo a Bíblia pode pretender estar acima dele.” [6]
Vejamos de relance o que dá a este livro um aspecto tão
elevado.
Logo na introdução o deus encarnado Krishna diz a seu
discípulo Arjuna: “Aqueles que são videntes da
verdade concluíram que o não-existente (o corpo material)
não permanece e o eterno (a alma) não muda. Isto eles
concluíram estudando a natureza de ambos.”
[7] A frase faz referencia à prática do yoga,
considerada a ciência dos indianos, juntamente com a matemática,
a medicina e a lógica. Cada uma destas seria responsável
por revelar as leis que regem os distintos fenômenos naturais,
sendo o yoga particularmente importante por estar ligado à
revelação das leis energéticas e mentais mais
sutis.
O conceito de reencarnação, presente desde eras remotas
na religião e filosofia indiana, encontra no Gita a sua expressão
mais clara, quando Krishna diz: “Assim como, neste corpo, a
alma corporificada seguidamente passa da infância à juventude
e à velhice, do mesmo modo, chegando a morte, a alma passa
para outro corpo. Uma pessoa ponderada não fica confusa com
esta mudança.” [8]
O Gita segue instruindo Arjuna, o discípulo do iluminado, a
desapegar-se dos frutos de suas ações, a agir conforme
a posição em que foi colocado por Deus, a praticar austeramente
a investigação de si mesmo, yoga, e a adorar a Deus
em todos os pensamentos e ações.
Existem extensas enciclopédias que tentam reunir as filosofias
e a teologia indiana, mas nenhuma delas é considerada completa.
As melhores em línguas ocidentais são:
1. a história da filosofia na Índia
de Shurendranat Dasgupta, disponível em inglês em dois
ou três volumes, dependendo da edição. Esta obra
garante um contato em primeira mão com um autor indiano dominante
do sânscrito (que é uma língua morta) desde a
infância e não apenas fluente, mas virtuoso no inglês.
2. Paul Deussen foi provavelmente o maior indólogo
de todos os tempos, reunindo uma obra vasta sobre a Índia,
onde se destacam Introdução geral da filosofia dos Vedas
aos Upanixades.
3. Mircea Eliade, o célebre historiador da
religião, viveu anos num mosteiro indiano e doutorou-se também
neste país com uma tese sobre Yoga. Seu conhecimento não
é tão vasto quanto o dos indologistas, mas a sua competência
filosófica permitiu-lhe elaborar uma conceituação
muito qualificada das principais correntes. Estas teorias e experiências
pessoas podem ser encontrados em Yoga: Imortalidade e Liberdade.
4. Também um escritor originalmente interessado
em Yoga, como Eliade, Georg Feuerstein também superou em muito
as necessidades de uma exposição dos exercícios
e princípios desta prática, apresentando adicionalmente
uma análise longa, sistemática e exaustiva de todas
as religiões, filosofias e respectivos conceitos da macro-cultura
indiana.
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[1] Aldous HUXLEY. La Filosofia Perenne. Pg.
12.
[2] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textos sagrados
da antiguidade. Pg. 180-181.
[3] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textos sagrados
da antiguidade. Pg. 109.
[4] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textos sagrados
da antiguidade. Pg. 146-147.
[5] Swami PRABHUPADA. Sri Isopanisad. Pg. 29.
[6] Aliás, neste livro de dois volumes que é a coletânea
de seus artigos publicados no jornal O Paiz, Adolfo Bezerra de Menezes
nos surpreende como acirrado polemista, dotado de vastíssima
erudição sobre teologia, filosofia e história
do cristianismo primitivo e de outras grandes tradições
religiosas, especialmente as da Índia e do Egito.
[7] Swami PRABHUPADA. Bhagavad-Gita como ele é. Capítulo
2, Verso 16. Pg. 92.
[8] Swami PRABHUPADA. Bhagavad-Gita como ele é. Capítulo
2, Verso 13. pg. 88.