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Humberto Schubert Coelho

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Filosofias da Índia


Segundo consenso geral, as primeiras formas organizadas de religião, contando com códigos escritos, rituais regulares e princípios filosóficos elaborados foram as do sub-continente indiano, na extensão entre o Indo e o Ganges. Esta região era desde 12 ou 13 mil a.C. dominada pelos arianos, povo que recebeu este nome porque antigamente se acreditava terem vindo do Irã. Ariano não é mais do que a forma ancestral da grafia e pronuncia equivalente ao iraniano atual.

Apesar de que já houvesse escritos religiosos, pois os havia na China, na Mesopotâmia e no Egito, a civilização proto-ariana do norte da Índia, Paquistão e Irã oriental destacava-se pela independência de que seu código e culto religioso gozavam frente à arbitrariedade de governantes, fossem religiosos ou políticos. Isto é importante porque as leis sagradas e rituais essenciais mudavam drasticamente de acordo com o interesse dos déspotas em todas as regiões, sendo a primeira exceção a religião védica.

Os famosos Vedas nada mais são do que estes textos arquimilenares compilados a partir de cânticos e ditados até então transmitidos oralmente. A sua versão escrita, inaugurando a época das religiões organizadas, data de 1500 a.C. aproximadamente. Mas os cânticos mais novos já tinham séculos quando foram escritos, e os mais velhos podem datar de dois ou três mil antes de Cristo. Devotos e indólogos mais entusiasmados costumam defender uma cronologia mítica com cifras absurdas, às vezes de 50 mil anos ou mais. Não existe, no entanto, nenhuma base empírica ou lógica para estas afirmações.

Com a popularização dos textos védicos e a instituição da religião independente dos trânsitos de governo, proliferou na região uma cultura sacerdotal distinta de todas as demais até aquele período, que se caracterizava pela liberdade de pensamento e especulação abstrata. Com isto, surgiram os Upanixades, originalmente como comentários elaborados e interpretativos sobre os Vedas. Mesmo sendo muito mais jovens do que os Vedas, os Upanixades ainda são tão antigos quanto às tábuas de Moisés, com aproximadamente 3400 anos, alguns um pouco menos.

Enquanto os textos védicos são míticos, ritualísticos e impregnados por uma linguagem autoritária que lembra muito o Pentateuco, em especial as leis, os Upanixades são compostos geralmente por alegorias refinadas e abstratas, especulação filosófica e poesia espiritualizada. Categorias que podem ser encontradas em todas as tradições religiosas.

O Chandogya Upanixade, por exemplo, apresenta-nos a idéia de investigação filosófica das essências das coisas. Um pai tenta repreender o filho que se gabava excessivamente de sua ciência. Ele lhe diz assim:

“Traga-me um fruto da árvore de nyagrodha
- Aqui está pai.
- Abre-o.
- Está aberto, pai.
- Que vês aí.
- Umas sementinhas.
- Abre uma.
- Ei-la aberta.
- Que vês aí.
- Nada.
O pai disse:
- Meu filho, na essência sutil que não percebes aí, nesta essência está o ser da enorme árvore nyagrodha. Nisto que é a essência sutil, todos os seres têm o seu Eu. Isto é o verdadeiro, isto é o Eu, e tu, Svetaketu, tu és isto...”
 [1]

Nesta alegoria de profundo valor reflexivo, o Upanixade demonstra que os princípios ou leis são exatamente a parte invisível e imponderável da realidade. E antes que o astuto homem moderno responda que o conhecimento científico já desvendou a natureza do desenvolvimento da semente através da estrutura de DNA, lembramos que o sábio pai da história não está excluindo a imanência da lei numa estrutura material, tanto que ele sabe perfeitamente que a semente, material, é imprescindível para o crescimento da planta.

Confrontado com a noção de DNA da semente ele também admitiria que sem esta estrutura física o fenômeno de metamorfose da planta seria impossível, mas ele está consciente de que é a ordenação da matéria, seguindo princípios e leis, invisíveis e imateriais, enfim, é o fato de haver uma lógica na disposição da parte material da semente que a permite tornar-se árvore. Esta lógica e ordenação compõem a parte imutável, permanente e espiritual de todas as coisas, e é para ela que a história está atentando.

Num aspecto mais moral as Upanixades se revelam ainda mais instigantes. O Yogatattva Upanishad diz:

“As almas individuais são prisioneiras dos prazeres e desgraças que as afetam neste mundo; para livrá-las da ilusão é preciso dar-lhes o conhecimento de Brahman (A Suprema Realidade, Essência do Universo), graças ao qual o indivíduo já não é mais afetado pela doença, nem pela velhice, nem pela morte e não sofre mais o risco de renascer. E este conhecimento é adquirido com dificuldade, mas é um navio que permite atravessar o rio dos renascimentos; pode-se atingi-lo por mil caminhos diferentes, mas ele é realmente Um, refúgio supremo além do qual nada existe. Alguns procuram seu caminho na prática dos ritos ensinados nos escritos védicos: eles caem por ignorância nas malhas do ritualismo. Nem os ritualistas nem os deuses (espíritos superiores) podem explicar essa Realidade indizível; e como essa forma suprema que só a alma conhece poderia ser conhecida pelas escrituras?” [2]

Esta passagem impressiona pela liberalidade e pela grande consciência ecumênica e crítica. A crítica do ritualismo e do apego dogmático aos Vedas lembra a recomendação sábia de Paulo para transpor a letra e apreender o espírito dos textos. Mas considerando-se que o texto indiano antecede em mais de mil anos o do apóstolo de Tarso, e supera também a filosofia grega que permitiu ao judeu helenizado este grau de tolerância intelectual, somos forçados a render homenagem e respeito a esta antiga filosofia, a qual muitos críticos ocidentais ainda consideram desmerecedora do título de racional.

Os Upanixades, como toda grande filosofia espiritualista, prima pela unidade monista do universo em Deus. O Dhyanabindu Upanixade, por exemplo, lembra que aquela parte essencial e imortal de todas as coisas, o ser dos seres, é a força divina onipresente:

“E todos os seres que existem são atravessados pela Alma (Atman), como as pérolas por um fio. O espírito sereno, o pensamento claro, assenta-se em Brahman (A Suprema Realidade. Essência ou Alma do Universo), quem o conhece. Sim, como o óleo nos grãos, o perfume na flor, a Alma está no corpo do homem, e o envolve e habita!” [3]

O Hamsa Upanishad apresenta em feições ainda mais poéticas a unidade divina do universo desdobrado a partir da substancia pensante absoluta:

“Ele entra em todos os seres, o Pássaro Migrador (Brahman), e torna-se presente neles como o fogo nas varetas de atritar. Ou como o óleo no sésamo. Saber isso é vencer a morte. (...) Ele é o Pássaro Supremo, resplandecente como a luz de dez milhões de sóis e pelo qual todas as coisas foram permeadas.” [4]


As conseqüências éticas, ecumênicas e sociais deste espiritualismo místico são louváveis. O Sri Isopanixade mostra, no sexto mantra, como a própria idéia de Deus produz um ponto de vista universalista e espiritual:

“Aquele que vê que tudo está relacionado com o Senhor Supremo, que vê que todas as entidades vivas são suas partes integrantes, e que vê que o Senhor Supremo está dentro de tudo, não odeia nada nem ninguém.” [5]

Não é minha intenção fazer uma análise cuidadosa dos Upanixades, motivo pelo qual termino esta curtíssima e superficial exposição da vasta e complexa literatura sagrada indiana sem nem mesmo uma conclusão geral. Isto também tem a ver com o fato de que a Índia originou todas as grandes linhas de pensamento que vemos em conflito na história da filosofia ocidental. Diversos tipos de ateísmo, uns materialistas outros espiritualistas.

Monismos predominantes pontuados por dualismos ou politeísmos de vários tipos. Adoração dos elementos da natureza em expresso panteísmo, ou teísmos de Deus único com entidades subordinadas que lembram o catolicismo. Da teologia indiana vem inclusive a idéia de trindade, onde um Deus supremo se divide em distintas pessoas, cada qual com uma existência real e independente.

Por volta de 500 a 450 a.C., enquanto a Grécia via a formação da escola pitagórica e a juventude de Sócrates, todas as formas imagináveis de especulação religiosa já haviam sido tentadas na Índia. As disputas sobre os meandros dogmáticos e rituais, os conflitos entre as várias escolas, produziu a revolta cética baseada numa doutrina extremamente pragmática e desprovida de conteúdo teológico, o budismo. Na mesma época o sábio Patânjali tentou isolar a ciência indiana sobre práticas ascéticas, respiratórias e místicas das doutrinas religiosas. Semelhantemente a Sidarta Gautama, Patânjali achava que o excesso de teorias religiosas era mais prejudicial do que benéfico à elevação da alma, e criou um método rígido, racionalista e empirista para separar o Yoga, conhecimento prático, de qualquer crença, dando origem à grande tradição de místicos treinados. Agnósticos por natureza, os yogis podem e geralmente aderem adicionalmente a uma religião, inclusive a islâmica, mais recentemente.

De natureza totalmente distinta é a literatura épica formada neste período tardio da cultura em sânscrito. O colossal Mahabarata, contendo a história da guerra entre duas famílias do mesmo clã, rico de considerações filosóficas e devocionais, é de muito longe a maior obra literária da antiguidade. Mais de dez vezes maior do que a Ilíada e a Odisséia reunidas. Um único e pequeno fragmento deste livro, o Bhagavad-Gita, contém virtualmente todo o conhecimento necessário para a vida santificada, e por isso acabou popularizando-se como um livro à parte.

O médico, político, filantropo e jornalista Adolfo Bezerra de Menezes, em sua obra Estudos Filosóficos, faz a análise daquele magnífico livro indiano, dedicando-lhe páginas poéticas e apaixonadas. Segundo ele: “o Bhagavad-Gita é um livro tão elevado, tão luminoso, que nem mesmo a Bíblia pode pretender estar acima dele.” [6]

Vejamos de relance o que dá a este livro um aspecto tão elevado.

Logo na introdução o deus encarnado Krishna diz a seu discípulo Arjuna: “Aqueles que são videntes da verdade concluíram que o não-existente (o corpo material) não permanece e o eterno (a alma) não muda. Isto eles concluíram estudando a natureza de ambos.” [7] A frase faz referencia à prática do yoga, considerada a ciência dos indianos, juntamente com a matemática, a medicina e a lógica. Cada uma destas seria responsável por revelar as leis que regem os distintos fenômenos naturais, sendo o yoga particularmente importante por estar ligado à revelação das leis energéticas e mentais mais sutis.

O conceito de reencarnação, presente desde eras remotas na religião e filosofia indiana, encontra no Gita a sua expressão mais clara, quando Krishna diz: “Assim como, neste corpo, a alma corporificada seguidamente passa da infância à juventude e à velhice, do mesmo modo, chegando a morte, a alma passa para outro corpo. Uma pessoa ponderada não fica confusa com esta mudança.” [8]

O Gita segue instruindo Arjuna, o discípulo do iluminado, a desapegar-se dos frutos de suas ações, a agir conforme a posição em que foi colocado por Deus, a praticar austeramente a investigação de si mesmo, yoga, e a adorar a Deus em todos os pensamentos e ações.

Existem extensas enciclopédias que tentam reunir as filosofias e a teologia indiana, mas nenhuma delas é considerada completa. As melhores em línguas ocidentais são:

1. a história da filosofia na Índia de Shurendranat Dasgupta, disponível em inglês em dois ou três volumes, dependendo da edição. Esta obra garante um contato em primeira mão com um autor indiano dominante do sânscrito (que é uma língua morta) desde a infância e não apenas fluente, mas virtuoso no inglês.

2. Paul Deussen foi provavelmente o maior indólogo de todos os tempos, reunindo uma obra vasta sobre a Índia, onde se destacam Introdução geral da filosofia dos Vedas aos Upanixades.

3. Mircea Eliade, o célebre historiador da religião, viveu anos num mosteiro indiano e doutorou-se também neste país com uma tese sobre Yoga. Seu conhecimento não é tão vasto quanto o dos indologistas, mas a sua competência filosófica permitiu-lhe elaborar uma conceituação muito qualificada das principais correntes. Estas teorias e experiências pessoas podem ser encontrados em Yoga: Imortalidade e Liberdade.

4. Também um escritor originalmente interessado em Yoga, como Eliade, Georg Feuerstein também superou em muito as necessidades de uma exposição dos exercícios e princípios desta prática, apresentando adicionalmente uma análise longa, sistemática e exaustiva de todas as religiões, filosofias e respectivos conceitos da macro-cultura indiana.

 

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[1] Aldous HUXLEY. La Filosofia Perenne. Pg. 12.
[2] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textos sagrados da antiguidade. Pg. 180-181.
[3] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textos sagrados da antiguidade. Pg. 109.
[4] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textos sagrados da antiguidade. Pg. 146-147.
[5] Swami PRABHUPADA. Sri Isopanisad. Pg. 29.
[6] Aliás, neste livro de dois volumes que é a coletânea de seus artigos publicados no jornal O Paiz, Adolfo Bezerra de Menezes nos surpreende como acirrado polemista, dotado de vastíssima erudição sobre teologia, filosofia e história do cristianismo primitivo e de outras grandes tradições religiosas, especialmente as da Índia e do Egito.
[7] Swami PRABHUPADA. Bhagavad-Gita como ele é. Capítulo 2, Verso 16. Pg. 92.
[8] Swami PRABHUPADA. Bhagavad-Gita como ele é. Capítulo 2, Verso 13. pg. 88.

 

 

Fonte: http://filosofiaespiritismo.blogspot.com/2010/10/filosofias-da-india.html

 


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