Humberto
Schubert Coelho
> Lamennais e Kardec II
Figurando entre os pais do socialismo,
Lamennais abstinha-se das utopias da economia planejada e do monopólio
do Estado sobre os destinos individuais, defendendo a dignidade dos
esforços da livre iniciativa.
É assim que nosso padre combate as utopias do estado paternal
dos socialistas utópicos com a mais forte defesa da liberdade.
Seu aviso parece prenunciar a escravidão do “socialismo”
aplicado por ditaduras como a soviética e a chinesa:
Não
vos deixeis enganar por palavras vãs... A liberdade não
é um cartaz que se lê na esquina. É um poder
vivo que se sente em si e ao redor de si... O opressor que com
seu nome se encobre é o pior opressor. Une a mentira à
tirania, e a profanação à justiça...
Sois vós que quem escolheis os que vos governam, os que
vos ordenam que façam isto e não aquilo? E se não
sois vós, como sois livres?
Podeis exercer o vosso culto sem serdes perturbados, adorar a
Deus e servi-lo em público de acordo com vossa consciência?
E se não podeis, como sois livres?
Podeis dispor de vossos filhos como bem entenderdes, confiar a
quem vos agradar o cuidado de instruí-los e formar seus
costumes? E se não podeis, como sois livres?
Os próprios pássaros do céu e os insetos
reúnem-se para fazer juntos o que nenhum deles poderia
fazer sozinho. Podeis vos reunir para juntos tratar dos vossos
interesses, para defender vossos direitos?
Podeis, ao deitar-vos à noite, estar certo de que ninguém
virá durante o vosso sono vasculhar os lugares mais secretos
da vossa casa, arrancar-vos do seio da vossa família e
jogar-vos no fundo de uma masmorra, porque o poder em seu medo
desconfiou de vós? E se não podeis, como sois livres?
A liberdade brilhará sobre vós, quando, à
força de coragem e perseverança, vos libertardes
de todas estas servidões.
A liberdade brilhará sobre vós... quando, para vos
tornardes livres, estiverdes prontos a tudo sacrificar e sofrer.
A liberdade brilhará sobre vós quando, ao pé
da cruz na qual Cristo morreu por vós, jurardes morrer
uns pelos outros.[1]
Quantas desgraças não
poderiam ter sido evitadas no século XX, e ainda hoje, se os
pseudosábios atentassem a essas palavras ao invés de
beber o vinho da revolução? Que decepção
para os cristãos verdadeiros que impulsionaram o ideário
socialista do século XIX, ao descobrirem da pátria dos
espíritos que suas ideias não vingaram sequer entre
os fiéis, pois os agito e o imediatismo de Marx, Che e Lênin
falaram mais alto às paixões ávidas de sangue
da multidão. Tudo porque no espírito partidário
os socialistas imaginaram dever tudo sacrificar por uma justiça
que se alienou das conquistas igualmente sagradas da liberdade.
Ainda contra as utopias de um estado
“padrinho”, liderado por intelectuais que “sabem
o que é melhor para o povo”, escreveu o nosso padre:
O povo
é incapaz de atender aos seus interesses; para seu bem
deve ser mantido sempre sob tutela. Não cabe aos que detêm
as luzes conduzir os que carecem de luz? Assim fala a multidão
de hipócritas que quer conduzir os negócios do povo
e engordar com a substância do povo.
Sois incapazes de administrar a pequena propriedade comum, incapazes
de saber o que é bom ou ruim, de conhecer as vossas necessidades
e supri-las; e, por isso, enviam-vos homens bem pagos, à
vossa custa, que gerirão vossos bens segundo lhes convier...
Sois incapazes de discernir a educação adequada
para vossos filhos; e por amor a vossos filhos, eles os lançarão
em cloacas de impiedade e maus costumes. (O autor se refere aqui
ao sistema público de ensino, que na época pregava
o positivismo, o materialismo e o desprezo das antigas tradições
associadas à religião. Ele temia o monopólio
do ensino pelo Estado tanto quanto pela Igreja, considerando que
uma única instituição jamais deveria deter
a totalidade dos meios de instrução)
Se o que diz essa raça hipócrita e ávida
fosse verdade estaríeis bem abaixo dos animais, pois estes
sabem tudo o que, segundo eles, não sabeis...
Existem animais estúpidos que são fechados em estábulos
e alimentados para o trabalho... Existem outros que vivem nos
campos em liberdade, que não é possível domar
para a servidão, que não se deixam seduzir por carícias
enganadoras, nem vencer por ameaças ou maus tratos.
Os homens corajosos assemelham-se aos últimos; os covardes
são como os primeiros.[2]
Assim termina nosso estudo da doutrina
social de Lamennais. Estando de todos os lados e de nenhum, não
assusta que Lamennais tenha terminado com mais desafetos do que afetos.
Os socialistas o consideraram liberal demais, estes últimos
o tinham por socialista, a Igreja o considerou um herege, e os materialistas
um fanático. Não tinha mesmo como vingar uma doutrina
política tão apartidária e tão humana
quanto a de Lamennais.
Sua veia profética, a qual
nos dedicaremos agora, está na mais perfeita sintonia com seus
trabalhos políticos, já que sua visão do apocalipse,
do advento do consolador e da divisão do joio e do trigo eram
essencialmente visões de uma reforma da sociedade, com o fim
do absolutismo, a vitória da democracia e do estado de direito.
Enquanto o pensador político
reúne em si o liberalismo e o socialismo, a responsabilidade
pessoal e a necessidade de reforma institucional, também o
pensador religioso parece empreender a difícil síntese
entre a ética e a profecia, o anúncio dos novos tempos
e o estudo da natureza humana.
A alegoria número um arranca
o leitor de sua vida comum, de seu ambiente monótono ou irritadiço,
para lançá-lo em mundo mágico inteiramente desconhecido.
Que aquele
que tem ouvidos ouça, que aquele que tem olhos, abra-os
e observe, pois os tempos se aproximam. (...)
O Filho prometeu enviar o Espírito consolador, o Espírito
que procede do Pai e dele, e que é seu amor recíproco:
ele virá e renovará a face da terra, e será
como uma segunda criação.
Há dezoito séculos, o Verbo espalhou a semente divina,
e o Espírito Santo a fecundou. Os homens viram-na florescer,
saborearam alguns de seus frutos, frutos da árvores da
vida de novo plantada na pobre morada dos homens.
Digo-vos que entre eles foi grande o júbilo quando viram
a luz surgir, e todos sentiram-se penetrados pelo fogo celeste.
Hoje a terra tornou a ser tenebrosa e fria.
Nossos pais viram o sol declinar. Quando ele desceu por trás
do horizonte, toda a raça humana estremeceu. Depois houve
nesta noite algo que não tem nome. Filhos da noite, o poente
está negro, mas o oriente começa a aclarar-se.[3]
Essa passagem de tom familiar às
profecias espíritas contidas em A Gênese de
Karde nos dá a entender o porquê de ter sido chamado
Lamennais a falange do Consolador, mal havia esfriado seu corpo no
túmulo. Está aí um bom exemplo da universalidade
da mensagem espírita, intuída duas décadas antes
por Lamennais.
Na alegoria vinte e seis o filósofo
já nos desvela uma parte do mundo espiritual que tem diante
dos olhos. Parece haver dois mundos, em cuja fronteira Lamennais transita
sem dificuldades:
O que os
vossos olhos veem, o que as vossas mãos tocam, não
passam de sombras, e o som que atinge os vossos ouvidos não
passa de eco grosseiro da voz íntima e misteriosa que adora,
e ora, e geme no seio da criação.
Pois toda a criatura geme, toda criatura está em trabalho
de parto e esforça-se por nascer para a vida verdadeira,
por passar das trevas a luz, da região das aparências
para a das realidades (referência óbvia a Platão)
Esse sol tão brilhante, tão belo, não passa
de roupagem, de emblema escuro do verdadeiro sol que ilumina e
aquece as almas. (sol das almas é um conceito de Fénelon)
Esta terra tão rica, tão verdejante, não
passa de pálido sudário do natureza: pois a natureza...
Sob esse espesso invólucro do corpo, assemelhai-vos ao
viajante que, à noite na tenda, vê ou acredita ver
fantasmas passando.
O mundo real está velado para vós. Aquele que se
retira para o fundo de si ali o entrevê como algo longínquo.
Poderes secretos, que nele dormitam, despertam por um momento,
erguem uma ponta do véu que o tempo retém com a
sua mão enrugada, e o olho interior encanta-se com as maravilhas
que contempla.
Estais sentado à beira do oceano dos seres, mas não
penetrais em suas profundezas.[4]
Já não há mais
dúvidas. Lamennais está mais do que habituado aos transportes
extáticos de Paulo, Plotino e Teresa. Ele não apenas
vislumbra o mundo espiritual, mas viaja por ele como Böhme e
Swedenborg. Ao chegarmos ao fim do livro, e encontrando a revelação
de sua experiência mística, entendemos melhor a fonte
de suas profecias:
E a pátria me foi mostrada
Fui arrebatado para acima da região das sombras e eu via
o tempo carregá-las com velocidade indizível através
do vazio. Eu subia e continuava subindo; e as realidades, invisíveis
aos olhos da carne, apareceram para mim, e ouvi sons que não
tem eco neste mundo de fantasmas.
E o que eu ouvia, o que via, era tão vivo, minha alma captava
tudo com tamanho poder que me parecia que tudo o que eu anteriormente
acreditara ver e ouvir não passava de vago sonho noturno.
O que direi, pois, aos filhos da noite, e o que eles conseguem
compreender? Vi como um oceano imóvel, imenso, infinito,
e nesse oceano, três oceanos: um oceano de força,
um oceano de luz, um oceano de vida; e estes três oceanos,
interpenetrando-se sem se confundir, formavam um único
e mesmo oceano.
E essa unidade era Aquele que é... E esses três eram
um, e esses três eram Deus, e eles abraçavam-se e
uniam-se num santuário impenetrável da substância
uma... E nas profundezas desse oceano infinito do ser, nadava,
flutuava e dilatava-se a criação: tal como uma ilha
que dilatasse incessantemente suas margens em meio a um mar sem
limites.
E eu via os seres encadeando-se aos seres e produzindo-se e desenvolvendo-se
em sua variedade inumerável, abeberando-se, nutrindo-se
de uma seiva que jamais se esgota, da força, da luz e da
vida d’Aquele que é.
Livre dos entraves terrestres, eu ia de mundo em mundo, assim
como aqui embaixo o espírito vai de um pensamento a outro
pensamento; e sentia o que é a pátria; e embriagava-me
de luz, e minha alma, carregada por ondas de harmonia, adormecia
sobre as ondas celestes, em um êxtase inenarrável.
E depois eu via o Cristo à direita de seu Pai, radiante
de glória imortal. Santo, Santo, Santo é aquele
que destruiu o mal e venceu a morte.
E o Filho inclinou-se sobre o seio do Pai, e o Espírito
cobriu-os com sua sombra, e houve entre eles um mistério
divino, e os céus em silêncio estremeceram.
Por conta de Palavras de um homem
de fé e outros escritos, Lamennais angariou o ódio
declarado de seus mais íntimos amigos e de seu irmão.
Interpelado inúmeras vezes pela santa Sé, acabou esgotando
sua enorme paciência, e finalmente abdicou da interminável
mea culpa, desligando-se de suas funções sacerdotais
para viver exclusivamente como escritor. Nesse campo, contudo, era
ainda mais detestado e perseguido pelos monarcas, a quem tão
ferrenhamente combatia, e em seus quase sessenta anos de idade, o
que na época e com uma vida agitada era uma avançadíssima
conta, foi premiado com um ano de prisão.
Apesar do abatimento da saúde,
dirigiu publicações a partir do cárcere. Após
o término da pena, dedica seus últimos anos a uma tradução
da Divina Comédia de Dante, a Assembleia Constituinte
de Paris e a exercícios parlamentares, morrendo em 1854.
Napoleão III intercede para
que o enterro seja rápido e secreto, buscando evitar a comoção
popular. Desaparecia do mundo um dos pouquíssimos homens que
conseguiu ungir-se de santidade no século das afetações.
É impossível que Kardec
não estivesse muito familiarizado com as ideias de alguém
tão popular e controverso em sua própria época.
Foi certamente um missionário que abriu caminho para renovação
social e religiosa, com o que continuou a contribuir cinco ou seis
anos após o falecimento, integrando a falange do consolador
e respondendo por uma parte significativa das comunicações
das obras básicas e da Revista Espírita.
Nossos artigos sobre Pascal, Rousseau
e Agostinho demonstram bem o método que propusemos para este
estudo comparativo, de modo que achamos desnecessário elencar
as comunicações de Lamennais como espírito. Terminamos
aqui a série filósofos e Kardec, embora outros pudessem
ser inseridos. Nosso objetivo era apenas o de endossar os paralelos
entre o pensamento desses autores em vida e os que eles expressam
em ditados espirituais, além de confirmar se suas vidas práticas
respondem aos critérios da autoridade moral que se exige de
espíritos mentores.
No caso de Lamennais, como nos outros,
parece não haver dúvida quanto a afinidade de ideais
e posturas entre o homem e o espírito.
Bibliografia:
LAMENNAIS, Félicité de. Palavras
de um homem de fé. São Paulo: Martins fontes, 1998.
[1] Félicité de Lamennais.
Palavras de um homem de fé. Pg. 55.
[2] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem
de fé. Pg. 57.
[3] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem
de fé. Pg. 3.
[4] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem
de fé. Pg. 71.
Fonte: http://filosofiaespiritismo.blogspot.com/2011/09/lamennais-e-kardec-ii.html
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