Após o nosso texto sobre
Platão permaneceu no ar uma exigência de fazer justiça
a Aristóteles. Afinal, aquele outro texto inspirado em Popper
e em renomados platonistas contemporâneos coloca o discípulo
principal da Academia sob pesadas acusações, que podem
ofuscar a importância ímpar de Aristóteles no
desenvolvimento do pensamento humano, da religião Cristã,
do realismo ético, da lógica, da estética, de
diversas ciências... Aristóteles é também
combatido devido a incompreensão que se tem sobre seu conceito
de ciência, especialmente no tocante a física e a astronomia.
Seus avanços e contribuições preciosas são
sistematicamente ignorados em favor da paródia infantilizada
de uma ascensão apoteótica das ciências durante
a Renascença, como se Hiparco, Euclides, Arquimedes, Hipácia,
Anaxágoras, Aristóteles e outros pesquisadores antigos
fossem supersticiosos, irracionais e incapazes de uma observação
crítica da natureza.
É bem verdade que Aristóteles seja mais dogmático
do que Platão, mas ele não o é num sentido do
dogmatismo religioso, por exemplo, nem pode ser considerado mais dogmático
do que a maioria dos demais filósofos. O seu é um dogmatismo
racional, o que quer dizer que ele acreditava no poder da razão
para resolver todas as questões, e isso não significa
a adoção de máximas e crenças transmitidas
por autoridade, como no dogmatismo que as igrejas costumam propagar.
Além disto é possível que Aristóteles
seja um dos indivíduos que mais contribuiu com as ciências
em todos os tempos, ao lado de Galileu, Newton, Pasteur, Darwin ou
Einstein, e em relação a maioria destes tampouco ele
poderia ser considerado um dogmático. A maioria dos cientistas
acredita firmemente no poder da matemática e da sua lógica,
na invariabilidade e objetividade da observação. Estas
são crenças que fazem mal ao filósofo dedicado
a epistemologia, mas que são moedas válida nas ciências,
úteis até certo ponto, na medida em que é necessário
uma certa fé na prática e no método para se prosseguir
com uma linha de pesquisa. Claro, Aristóteles não possuía
um método científico tão rigoroso, ou estava
aberto a competição com outras teorias, mas a suas observações
criteriosas e a sua lógica impecável propiciaram tanto
avanços no conhecimento quanto na doutrina do método.
Muito do que nos soa anti-científico não passa de propaganda
da ideologia materialista, aquela que o vulgo associa à ciência,
e que condena impiedosamente hipóteses espiritualistas como
a necessidade de um arquiteto inteligente para o cosmo e a existência
de uma força vivente dirigindo a vida para o desenvolvimento
de suas formas. São hipóteses explicativas para problemas
legítimos que Aristóteles encontrou na natureza, e que
desde o século XIX passaram a ser descartadas “por questão
de princípio”. E é isto que queremos agora resgatar.
Aristóteles é incompreensível sem um amplo e
minucioso estudo da filosofia e da história da Academia de
Platão. Esta é a sentença fundamental para um
acerto de contas com as discrepâncias e injustiças cometidas
contra Aristóteles, dentre as quais a maior delas é
a suposta “separação” ou “briga”
entre ele e o mestre, o que jamais ocorreu ou se justifica. Os mitos
quanto ao confronto derivam quase todos dos comentários do
Aristóteles maduro sobre o mestre, décadas depois da
morte deste, e que se baseiam nas distinções naturais
que o caminho próprio de Aristóteles necessitava enfatizar.
Este desenvolvimento pessoal e independente da filosofia, coisa que
Platão sempre incentivou e esperou de seus discípulos,
corresponde integralmente ao distanciamento que o próprio fundador
da Academia teve para com seu ídolo e mestre da juventude.
O quadro do distanciamento entre Aristóteles e Platão,
portanto, se assemelha do mesmo quadro entre Platão e Sócrates,
com uma semelhança impressionante de características.
Em primeiro lugar o Platão poético da juventude, com
seus diálogos realmente combativos, metáforas, simbolismos
e estreita vinculação entre a estética e a epistemologia,
quase correspondendo o arrebatamento estético ao acesso intelectual
à verdade, já era tido como fase terminada e superada
na época em que Aristóteles ingressava na Academia.
O ambiente liberal do mestre, seu amadurecimento e o próprio
contato com outros alunos e professores haviam transformado o ensino
platônico. O cavaleiro solitário do Fédon,
da Apologia, do Banquete e do Górgias,
que vingava intelectualmente a morte de Sócrates e buscava
preservar o seu legado, era agora o filósofo mais bem estabelecido
e sucedido do mundo, sem necessidade nem do caráter combativo
nem da nostalgia de uma época áurea de suas conversações
com o mestre. Ele próprio era agora o mestre para o qual discípulos
de todas as partes do mundo viajavam na esperança de obter
sabedoria e virtude. Ele era então a figura de quem se esperava
as respostas, e não um jovem modesto cantando as proezas de
seu mentor. A estas diferenças de postura somam-se as profundas
experiências da Academia e de suas viagens. Dotado de inigualável
lucidez, Platão não demorou a absorver as críticas
que lhe eram dirigidas e adaptar seu método a elas. Alunos
brilhantes de todas as partes, entre eles muitos matemáticos,
ajudaram a expandir o seu saber sempre aberto à inovação
e mudança. Ao mesmo tempo, as exigências que ele mesmo
e o seu papel de referencial universal da filosofia lhe impunham tornaram-no
muito mais cuidadoso, técnico e afirmativo nos seus pronunciamentos.
Nesta época chegava a
Academia o jovem Aristóteles, enquanto ela iniciava uma nova
fase com a escrita do Teeteto, um diálogo já
mais voltado para a especulação analítica do
que para a busca de consensos gerais. O caráter cético
e jovial do jovem Platão era abertamente ironizado e criticado
na Academia, talvez por ele mesmo, de modo que o estilo lógico
e a minúcia da análise de categorias que tanto influenciou
Aristóteles não está em contradição
com o que ele então via na Academia. O mestre inclusive desaprovava
os trabalhos dos alunos que copiavam pedantemente o seu estilo e doutrina,
fomentando justamente as inovações, as particularidades
e a originalidade de cada aluno. Aristóteles foi desde cedo
um dos que mais correspondeu a esta expectativa do mestre, confrontando-o
com competência e forçando sempre os limites de sua filosofia.
Esta postura não foi o que os separou, mas o que fez com que
o mestre o admirasse desde o princípio.
Platão chegava de suas viagens com novos problemas sobre física,
medicina e antropologia que ele mesmo não tinha tempo ou interesse
em trabalhar, mas que transmitia aos seus alunos, muitos dos quais
se ocupavam destas disciplinas já antes de ingressarem no colégio.
Não foi de modo algum Aristóteles quem criou as novas
disciplinas, ou que combateu o diálogo platônico, ele
apenas continuou uma ruptura e desenvolvimento que correspondiam a
toda a comunidade da Academia, e que era diretamente patrocinado pelo
mestre. O sistema de Platão permaneceu coerente e harmônico,
mas havia crescido tanto para além dos diálogos da juventude,
eram tão distantes as suas fronteiras daquelas mais estreitas
e monótonas do passado, que a suposta revolução
de Aristóteles não foi mais do que um passo para além
destas fronteiras já muito largas. Distante do jovem Platão,
estava ele ainda bem próximo do velho.
O primeiro dos escritos aristotélicos
é um diálogo que lembra muito o Fédon, Eudemo.
Neste livro expõe o estagirita com proeza uma crítica
aos materialistas e a doutrina de que a alma seria apenas uma harmonia
de funcionamento do corpo físico. Aristóteles defende
tão convictamente a imortalidade da alma quanto o mestre em
seu escrito original. (JAEGER 1923, p.38) Aristóteles começa
lembrando que a harmonia é um conceito dependente de um oposto,
a desarmonia, e que alma não possui um conceito oposto como
uma não-alma. Enquanto a desarmonia é claramente identificada
num conjunto, um oposto para a alma não existe nem na experiência
nem no pensamento. Não havendo para ela um pólo oposto,
não pode ser submetido ao conceito de harmonia, ou outro predicado
qualquer que possuam um estado contrário, só podendo
então ser uma substância. Se a alma é uma substância,
não pode ser dependente do corpo, que é uma outra substância,
desta vez material, provando-se assim a imortalidade da alma.
Este argumento tem ainda validade,
e mesmo restringindo a alma ao conceito de mente, não se escapa
das implicações de que ela deve ser uma substância,
pois o oposto de uma substância é sempre o nada. Uma
não mente, ou não espírito, só são
pensáveis como ausência de suas funções
e qualidades, e tudo aquilo de cujo oposto só podemos pensar
a ausência é por princípio uma substância.
O materialismo em geral tenta passar por cima desta conclusão
lógica reafirmando que a alma é sim uma harmonia entre
propriedades fisiológicas, o que, no entanto, só poderia
ser assumido como verdade se para isso houvesse uma prova conclusiva.
Na dúvida, a hipótese mais lógica é a
de que a alma seja uma substância, pois a hipótese contrária
apresenta este conflito de terminologia descoberto por Aristóteles.
Também encontra-se no Eudemo
uma defesa da personalidade da alma após a morte, baseada na
memória, que é um atributo intelectivo da alma. A permanência
da memória seria então o critério para que a
personalidade sobrevivesse, em contradição com um princípio
intelectual apenas, conforme defendido por muitos filósofos.
Não apenas neste texto, mas ainda em outros defendeu Aristóteles
a preexistência da alma antes da sua conexão com o corpo
e a conseqüente possibilidade de reminiscência de conhecimentos
anteriores ao nascimento. A interpretação de que Aristóteles
negaria estes pontos está muito mais ligada ao condicionamento
das interpretações católicas do que aos estudos
clássicos do filósofo. Em um outro fragmento o filósofo
afirma: “A alma penetra visionariamente o futuro ao libertar-se
do corpo, durante o sono ou na proximidade da morte, e então
percebe sua verdadeira natureza e é arrebatada pelo firmamento
estrelado.” (Frag. 10 R)
O protréptikos é o outro
texto destacado da fase platônica de Aristóteles, guardando
enorme número de conceitos de sua filosofia posterior, como
as noções de potencias e ato, desenvolvimento das formas,
a função ética do conhecimento e a impossibilidade
de se combater a filosofia. O primeiro argumento significativo é
em favor da filosofia como única forma de legitimar a vida
humana. Uma vida precisa de filosofia para afirmar qualquer escolha
ou projeto existencial, e igualmente é preciso filosofar para
combater a filosofia. Não se pode legitimar qualquer conclusão
sem um desenvolvimento lógico e dialético, de modo que
para qualquer posicionamento consciente e justificado é preciso
filosofar. Aristóteles também especifica sua noção
de substancia em relação ao platonismo. Enquanto este
último tem a substancia como a essência já dada
das coisas, a sua origem ideal, Aristóteles acrescenta a ideia
de evolução e desenvolvimento, télos,
de modo que a essência das coisas só se revela na sua
ação, não numa análise sobre elas. Um
animal não se permite definir somente pela sua forma e atributos,
como pensou Platão, mas principalmente pelo seu papel, pelo
que ele faz. Um Leão é, desta forma, além de
um animal quadrúpede, forte e feroz, um predador. Esta última
característica é a única relacionada a sua ação,
e a mais importante. Um homem não tem a sua essência
medida pelos seus talentos, origem, aparência e disposições,
mas pelo que ele realmente faz e realiza. Enquanto Platão definiria
um homem como bom pela sua natureza, ideias e inclinações,
Aristóteles diria que esta definição só
pode ser dada ao final da vida, como observação dos
atos deste homem. A essência não pode ser apreendida
inteiramente no estado inicial, ela se revela no desdobramento da
existência dos seres. A substância não é
assim apenas a estrutura a partir da qual é feita uma coisa
ou ser, mas a sua destinação, a essência não
é o quê, mas para quê.
Pouco depois da morte de Platão,
Aristóteles deixa a Academia e inicia um ciclo de viagens que
vai culminar na Macedônia, onde ele inicia a educação
do então não tão grande Alexandre. Nesta fase
marca-se ainda mais a sua cisão com a escola platônica
num ponto que é em quase todos os aspectos um avanço,
a abjeção das Ideias. E o equívoco aqui é
imaginar que esta esteja ligada ou acarrete numa negação
da imortalidade da alma e de um mundo espiritual que lhes correspondesse.
Os dois primeiros escritos confirmam que Aristóteles não
cogitava em associar o “além” ao mundo das ideas.
Este último seria somente uma abstração epistemológica
e metafísica do platonismo, nada mais. Uma metáfora
a qual Aristóteles continuou a recorrer para exemplificar a
independência da teoria das coisas mundanas, mas sem atribuir
qualquer existência às ideias como formas reais, existindo
por si próprias num mundo ideal. As essências das coisas,
sua parte intelectiva, princípios organizadores, deveria estar
estreitamente vinculada à própria coisa. Não
haveria, portanto, ideia e leis num “lugar” esperando
para se unirem a matéria e formar coisas. As coisas já
teriam em si leis e matéria como partes inseparáveis
e constituintes. A matemática, por exemplo, não teria
nenhuma realidade em si, existindo num mundo independente de figuras,
fórmulas e grandezas, mas seria uma proporção
das coisas, ou entre as coisas. Real e verdadeira,
mas dependente deste mundo e desta realidade.
Novamente a difundida conclusão
de que isto eliminaria a possibilidade de vida após a morte
é errônea, pois o mundo dos mortos e as próprias
almas não compõem uma “outra” realidade
em contradição ou diferenciação com a
nossa, mas seria parte da mesma realidade, apenas invisível.
As almas não seriam ideais, mas reais, daí a famosa
conclusão de Aristóteles de que elas não teriam
existência imaterial, já que tudo o que existe tem substância,
matéria. A confusão com a terminologia de Aristóteles
é produzida por uma interpretação platônica
fraca, que associa o material ao mundano, e o ideal ao espiritual.
Quando Aristóteles fala de matéria não está
se referindo a corpos sólidos e grosseiros, mas ao “conteúdo”
das formas, aquilo que diferencia uma coisa hipotética uma
real. Platão atribui realidade às ideias, como se a
dor fosse uma entidade com significação e existência
em si mesma. Aristóteles diz que a dor só possui realidade
se for concreta, vivenciada, a ideia de dor não possui esta
realidade, é uma representação derivada da coisa
real, que precisa ser entendida e experimentada. Para Aristóteles
toda a realidade é matéria intelectualizada, forca organizada.
Não há separação de mundos e realidades
em oposição. O corpo é matéria e energia
organizadas segundos certas leis, a alma é outra forma de matéria
e energia organizada segundo outras leis.
Esta diferenciação não
deprecia nenhuma das duas visões, pois está claro que
Aristóteles não desenvolveu conceitos conflitantes com
suas origens platônicas, senão apenas novos e complementares.
A teologia platônica consistia em afirmar a supremacia absoluta
do espiritual sobre o material. O mundo das ideias existiria, desta
forma, por antecipação e em completa independência.
Seria imóvel e inalterável a estrutura das ideias. O
mundo material seria uma cópia imperfeita e decadente, e a
matéria um princípio grosseiro, sombrio e desprovido
de qualquer qualidade positiva. Se a matéria possui organização
e vida é porque uma forca espiritual a habita, porque o reflexo
das ideias lhe dá ser e qualidades positivas, como beleza,
utilidade, equilíbrio ou justiça. Aristóteles,
por outro lado, não apenas não vê as ideias separadas
da matéria, como não admite um princípio vil
e pernicioso no universo. Tudo tem sua razão de ser, e, portanto,
o seu bem. O universo não é dividido em mundo das ideias
e das coisas, com as primeiras sendo eternas e as segundas criadas,
mas é inteiramente criado por Deus. Somente Deus estaria fora
da cadeia de causa e efeito que tudo regula.
Assim desenvolveu Aristóteles a primeira e, talvez ainda hoje,
mais consistente teoria da criação. Ele percebeu que
a definição de movimento é mecânica, transmissão
de forca de um para outro objeto, uma cadeia de causalidade sem ator,
apenas com elementos passivos. Esta definição revela-se
insustentável quando buscamos a origem do movimento, e nos
deparamos com uma série infinita de corpos movidos por outros,
sem que nenhum seja o responsável final pelo início
do movimento. Embora muitas pessoas até ilustres ainda acreditem
na hipótese do movimento eterno, ela é uma paradoxo,
logicamente inaceitável como hipótese científica
ou filosófica. O Big Bang também não resolve
nada, pois a tão propagada singularidade que teria dado origem
ao universo nada mais é do que a maior prestidigitação
da ciência moderna, que varre para debaixo do tapete a série
de causalidade afirmando que o primeiro movimento surgiu “espontaneamente”.
Afirmar que o movimento é eterno ou negar o problema da sua
origem nada resolve, pois a sua conceituação não
permite qualquer outra definição senão a de que
é preciso um ator no início da cadeia. Explicar o movimento
a partir da passividade é uma falácia assombrosamente
popular, mas insistir nisso não a torna racional. A energia
inicial precisa ser criada, não pode “estar sempre aí”,
pois a transmissão mecânica é passiva, não
tem uma existência fundamentada em si mesma, senão por
definição uma existência derivada. Foi então
que conclui Aristóteles, o movimento exige uma causa ativa,
uma forca autônoma que não seja influenciada por outra,
o que só prolongaria o problema da cadeia mecânica. Este
primeiro motor universal, que deu origem a todas as coisas, é
a causa intencional de todos os movimentos do universo.
Foi Aristóteles quem deu a
Deus o papel de criador em termos filosóficos irrefutáveis.
Até então este papel só era atribuído
de maneira mitológica a Deus, como no Gênese, e Platão
não conseguiu justificar bem o papel de Deus no processo da
natureza. É por isso que o filósofo peripatético
afirma: “Deus é espírito, se não for algo
ainda mais elevado que o espírito.” (Frag. 49 R) Fora
da cadeia mecânica, passiva, ele é o sujeito que por
sua vontade segundo seu juízo escolhe ativamente dar existência
ao mundo.