A desintegração do sujeito
iniciada por Nietzsche e pelos antropólogos culminou na perda
da dimensão íntima, ao menos na meditação
filosófica. Desde o século XX vigora a visão
do homem “como ele é”, sem os encargos de projeções
idealizadas, mas essa é uma visão limitada por seus
próprios (e muitos) pressupostos ideológicos. A pauta
filosófica não é a da observação
imparcial, mas a de uma que, para ser “científica”
e “madura”, precisa ser antirreligiosa, amoral e integralmente
relativista quanto à estética e o conhecimento. Essa
falsa objetividade de análise já recebe, contudo, a
sua merecida parcela de crítica, especialmente por parte de
um movimento de restauração da metafísica que
alguns nomeiam como Metafísica da Subjetividade, linha que
se baseia no resgate do foco principal da tradição filosófica
moderna, representada por Descartes.
O bombardeio mais pesado contra esta
tradição foi lançado por Heidegger em seu programa
de combate intensivo à metafísica ocidental. Nele Heidegger
pretende um movimento épico e teatral, bem ao estilo de Nietzsche,
de puxar o véu que encobre dois mil e quinhentos anos de mentiras
e enganos, véu que é representado pela metafísica
de Sócrates ao século XX, e que encobre justamente o
problema real da filosofia, o de que somos finitos, o de que só
temos contato com um ser que se apresenta em todas as suas partes
como imediato e dado, e de que toda a especulação, por
mais racional que seja, não senão uma fantasia sobre
um outro estado de ser que nunca experimentamos. Como é evidente,
essa crítica não apenas desonra os vinte e cinco séculos
de atividade intelectual humana, fazendo o cortejo de sábios
de todos os tempos passar ou por uma trupe de bobos, ou por uma gigantesca
conspiração contra a verdade, mas também nega
um campo vasto da experiência, provavelmente maior do que qualquer
outro, que é o da vida religiosa.
A crítica de Nietzsche a Descartes
é a de que este teria inaugurado um ser apartado do real, um
ser transcendente e abstrato, um sujeito puramente espiritual em oposição
ao mundo e à vida. A nova metafísica não quer
escamotear tanto quanto fazer justiça a essa interpretação.
Nela o sujeito de Descartes não se opõe ao mundo, mas
o mundo é que se constitui de dois princípios, sujeito
e matéria. Nossa experiência do mundo nos informa de
uma realidade material e de uma realidade psicológica, como
Nietzsche e Heidegger percebem, mas o enfoque no meio ou na relação
entre ambos, que a ontologia de Heidegger como a do materialismo consideram
obrigatório, não é mais do que um enfoque possível.
Ainda mais grave, quando este enfoque pretende destruir e negar todos
os produtos da introspeção ele compromete seus próprios
resultados, já que a introspeção é constitutiva
da realidade, do mundo, ainda que limitada à sua parte subjetiva.
Uma análise ontológica
ou existencial do “ser no mundo” não pode prescindir
ou opor-se à uma análise da subjetividade sem deixar
de ser existencial e ontológica. A intencionalidade que revela
uma constituição do ente psicológico como inteiramente
voltado para objetos é veraz, mas não trata senão
da periferia da subjetividade, de seus membros mais grosseiros, por
assim dizer, onde a subjetividade está em contato direto com
o mundo. Isto deixa em sombras, para usar um termo de Jung, o núcleo
da subjetividade, que é a parte necessariamente mais afastada
da instrumentalidade psicológica que se volta para o corpo
e o mundo.
O materialismo peca ainda mais ao
querer afastar-se até mesmo da existência, o espaço
de ligação entre sujeito e objetos, buscando antes falar
da matéria “em-si”, ignorando todas as exigências
críticas do conhecimento.
O que os novos metafísicos
da subjetividade, em especial Dieter Henrich, perceberam foi que a
desconstrução do sujeito em favor de esferas mais afastadas
da experiência, a da realidade material e existencial, produziu
uma respectiva perda de identidade e uma diluição da
pessoa humana em suas funções instrumentais e relações
sociais. Esse afastamento se justifica por uma revolta contra o sujeito
extramundano da filosofia moderna, mas esse não é, segundo
Henrich, mais que ilusório e provocado por uma ânsia
de objetificar a filosofia, tornando-a ciência, ou submetê-la
a antropologia.
Reafirmar a irredutibilidade da experiência subjetiva não
é, portanto, produzir um sujeito extramundano, apenas reconhecer
a prioridade da filosofia sobre as ciências e a hermenêutica,
já que é pela subjetividade em última instância
que se julga o mundo, nosso lugar nele e os critérios para
qualquer análise supostamente exterior da própria subjetividade.
E nesse tocante não basta a subjetividade engajada de Heidegger,
que precisa ser apanhada em seu próprio movimento, mas é
imprescindível acertar as contas com a fundamentação
do saber pressuposta por tais análises fenomenológicas
ou hermenêuticas.
O sujeito não é extramundano,
ou irreal, mas ele certamente é algo de radicalmente imaterial;
sua existência não se permite conciliar com a mecânica,
e tudo o que sabemos sobre esta é subsidiado por informação
sensorial, um estágio ulterior e altamente incerto. Essa é
a grande descoberta de Descartes e seu método introspectivo.
A filosofia tem de ser metafísica, pois as regras da subjetividade,
os critérios e princípios que regulam a interpretação
da experiência, são a parte mais próxima do juízo,
enquanto as regras da matéria, da fisiologia e da psicologia
empírica já são derivadas daquelas primeiras,
e qualquer virada interpretativa que pretenda pôr o sujeito
sob o escrutínio desses elementos derivados tem de falsear
de alguma forma as origens subjetivas de sua própria pressuposição.
Esta discussão toda gira em
torno da repercussão que metáforas com ao do timoneiro
produzem sobre as diferentes inclinações psicológicas.
Nietzsche e Heidegger se revoltam
contra a ideia de que um piloto caído dos céus conduza
o corpo como a um veículo, mas sua solução é
pior, ao considerar o ser como sistema fechado composto por barco
e tripulação, onde esta última, a parte subjetiva,
não sobrevive no oceano do ser sem o seu corpo, a parte objetiva,
eles concluíram que a subjetividade possui uma existência
real (em função do barco) e uma fantasmática
(as vidas íntimas dos tripulantes).
Ainda seguindo esse exemplo o materialismo
privilegia, na subjetividade, a equipe dos remadores, que pelas suas
mãos sentem o peso e a fluidez da água, conforme lhes
é comunicado pelos remos (os órgãos sensoriais),
além de, é claro, imprimir movimento à nau. A
vida do capitão é questionada, bem como sua autoridade,
e o vigia no topo do mastro é tido por elemento efêmero,
dispensável ou imaginário. O materialista sabe perfeitamente
que há uma diferença entre o barco e a tripulação,
o corpo e a psicologia, mas atribui à tripulação
um ser emergente a partir do barco, já que este como matéria
inanimada se associa melhor ao mundo que a todos circunda; suposição
metafísica muitíssimo audaciosa, para dizer o mínimo;
sabe também que a água, ou o ambiente, só é
acessível à tripulação por intermédio
de instrumentos sui generis, os remos, âncoras e outros
aparatos. E que as impressões da tripulação,
subjetivas, podem não corresponder bem à realidade da
água. Neste exemplo que oferecemos, nossa subjetividade jamais
poderia saber que a água é molhada, salgada, fria ou
quente, o que nos parece uma informação essencial sobre
sua natureza. Não obstante, o materialista confia na experiência
secundária dos aparatos para concluir que a tripulação
sabe, não apenas o suficiente sobre a água, como boa
parte do que ela verdadeiramente é.
Com o existencialismo surgiu uma perspectiva
inteiramente nova. Identificando a bruteza dos remadores e o afastamento
do vigia em relação à realidade horizontal do
barco, concentrou-se no capitão, o ser plantado no convés,
mas que tem uma visão do conjunto. Sua função
é dar rumo ao barco, e para isso organiza as demais partes
da tripulação. Ele é a intencionalidade no quadro
maior da subjetividade. Certamente um elemento chave, mas que sozinho
não permite as conclusões tiradas pelos existencialistas,
no sentido de anular a perspectiva do vigia.
A tradição metafísica,
que é a filosofia propriamente falando, concentrou-se sempre
no vigia no topo do mastro. A sua existência é inteiramente
diferenciada da do restante da tripulação que vive sobre
o convés. Ao passo que o capitão distingue-se dos demais
pela função, compartilha com eles a perspectiva horizontal.
Em outras palavras, as partes da subjetividade que se orientam para
funções práticas de sobrevivência, interação,
entretenimento e mesmo conhecimento, estão fatalmente condicionadas
a estas. Somente o vigia goza de uma propriedade peculiar da visão
que lhe permite discernir, mesmo que vagamente, o plano geral do navio
e da viagem. Somente ele percebe a confusão reinante abaixo
de si, divisa os escolhos no rumo e as sutis variações
atmosféricas. Este espaço mais íntimo da subjetividade
é o responsável pela eleição dos valores,
pelos critérios e princípios do saber. Por força
de sua própria perspectiva diferenciada, ele pode e deve sintetizar
o sentido da viagem e prescrever alterações na rota.
Entretanto, como é ao grupo
no convés que cabe a decisão final, como é a
parte funcional da subjetividade que age, é perfeitamente possível
ignorar os conselhos do vigia.
A razão vivencial que se bate
com as tarefas concretas do manejo, da percepção e da
locomoção nada quer saber daquela razão que tudo
vislumbra das alturas, relativamente indiferente aos problemas do
convés. A vingança da tripulação contra
este elemento imune às agruras do dia-a-dia foi ignorá-lo
como porta-voz da irrisão, mas com isso o navio apenas perde
o auxílio e a fiscalização de sua visão
diferenciada, aquela mesma que que o priva dos descaminhos e de enormes
perdas de tempo.
A razão “livre”
do século XX produziu filósofos capazes de apoiar o
nazismo e o comunismo tão bem como o capitalismo mais destruidor
e as fugas da realidade proporcionadas pela contra-cultura. Idolatra-se
hoje os pensadores de Frankfurt, que confessavam só escrever
sob efeito do fumo, e os relativistas absolutos que renegam séculos
de edificação intelecto-moral. 'Verdade' tornou-se palavra
proscrita no vocabulário destes pseudo-sábios, e moral
ou valores estão abaixo do ridículo.
A função da subjetividade,
de fiscalizar e significar a vida, é considerada preconceito
cultural obsoleto, dando lugar a um pensamento que fala sem cessar
da identidade, ao passo que jamais logra dela se aproximar.
Mas o distanciamento da subjetividade
pura não significa a sua dissociação do restante
do patrimônio subjetivo. O mastro está plantado no convés,
e o vigia pertence ao sistema total do navio tanto quanto qualquer
dos tripulantes, destes dependendo e a estes orientando. É
pelo seu afastamento da esfera instrumental, temporalizada e contextualizada,
que é possível a sua visão peculiar, essencial
na economia da nau.
A metafísica jamais tratou
de produzir um sujeito extramundano, apartado do ser, senão
de dar voz a uma parte diferenciada da subjetividade. O esforço
da metafísica por encontrar um terreno seguro, que permita
o julgamento do restante de nossos conhecimentos e ações,
deriva da percepção empírica de que esta perspectiva
é possível, natural e mesmo automaticamente dada.