Espiritualidade e Sociedade



Humberto Schubert Coelho

>   Metafísica da subjetividade: Metáforas para o espírito

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Humberto Schubert Coelho
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A desintegração do sujeito iniciada por Nietzsche e pelos antropólogos culminou na perda da dimensão íntima, ao menos na meditação filosófica. Desde o século XX vigora a visão do homem “como ele é”, sem os encargos de projeções idealizadas, mas essa é uma visão limitada por seus próprios (e muitos) pressupostos ideológicos. A pauta filosófica não é a da observação imparcial, mas a de uma que, para ser “científica” e “madura”, precisa ser antirreligiosa, amoral e integralmente relativista quanto à estética e o conhecimento. Essa falsa objetividade de análise já recebe, contudo, a sua merecida parcela de crítica, especialmente por parte de um movimento de restauração da metafísica que alguns nomeiam como Metafísica da Subjetividade, linha que se baseia no resgate do foco principal da tradição filosófica moderna, representada por Descartes.

O bombardeio mais pesado contra esta tradição foi lançado por Heidegger em seu programa de combate intensivo à metafísica ocidental. Nele Heidegger pretende um movimento épico e teatral, bem ao estilo de Nietzsche, de puxar o véu que encobre dois mil e quinhentos anos de mentiras e enganos, véu que é representado pela metafísica de Sócrates ao século XX, e que encobre justamente o problema real da filosofia, o de que somos finitos, o de que só temos contato com um ser que se apresenta em todas as suas partes como imediato e dado, e de que toda a especulação, por mais racional que seja, não senão uma fantasia sobre um outro estado de ser que nunca experimentamos. Como é evidente, essa crítica não apenas desonra os vinte e cinco séculos de atividade intelectual humana, fazendo o cortejo de sábios de todos os tempos passar ou por uma trupe de bobos, ou por uma gigantesca conspiração contra a verdade, mas também nega um campo vasto da experiência, provavelmente maior do que qualquer outro, que é o da vida religiosa.

A crítica de Nietzsche a Descartes é a de que este teria inaugurado um ser apartado do real, um ser transcendente e abstrato, um sujeito puramente espiritual em oposição ao mundo e à vida. A nova metafísica não quer escamotear tanto quanto fazer justiça a essa interpretação. Nela o sujeito de Descartes não se opõe ao mundo, mas o mundo é que se constitui de dois princípios, sujeito e matéria. Nossa experiência do mundo nos informa de uma realidade material e de uma realidade psicológica, como Nietzsche e Heidegger percebem, mas o enfoque no meio ou na relação entre ambos, que a ontologia de Heidegger como a do materialismo consideram obrigatório, não é mais do que um enfoque possível. Ainda mais grave, quando este enfoque pretende destruir e negar todos os produtos da introspeção ele compromete seus próprios resultados, já que a introspeção é constitutiva da realidade, do mundo, ainda que limitada à sua parte subjetiva.

Uma análise ontológica ou existencial do “ser no mundo” não pode prescindir ou opor-se à uma análise da subjetividade sem deixar de ser existencial e ontológica. A intencionalidade que revela uma constituição do ente psicológico como inteiramente voltado para objetos é veraz, mas não trata senão da periferia da subjetividade, de seus membros mais grosseiros, por assim dizer, onde a subjetividade está em contato direto com o mundo. Isto deixa em sombras, para usar um termo de Jung, o núcleo da subjetividade, que é a parte necessariamente mais afastada da instrumentalidade psicológica que se volta para o corpo e o mundo.

O materialismo peca ainda mais ao querer afastar-se até mesmo da existência, o espaço de ligação entre sujeito e objetos, buscando antes falar da matéria “em-si”, ignorando todas as exigências críticas do conhecimento.

O que os novos metafísicos da subjetividade, em especial Dieter Henrich, perceberam foi que a desconstrução do sujeito em favor de esferas mais afastadas da experiência, a da realidade material e existencial, produziu uma respectiva perda de identidade e uma diluição da pessoa humana em suas funções instrumentais e relações sociais. Esse afastamento se justifica por uma revolta contra o sujeito extramundano da filosofia moderna, mas esse não é, segundo Henrich, mais que ilusório e provocado por uma ânsia de objetificar a filosofia, tornando-a ciência, ou submetê-la a antropologia.
Reafirmar a irredutibilidade da experiência subjetiva não é, portanto, produzir um sujeito extramundano, apenas reconhecer a prioridade da filosofia sobre as ciências e a hermenêutica, já que é pela subjetividade em última instância que se julga o mundo, nosso lugar nele e os critérios para qualquer análise supostamente exterior da própria subjetividade. E nesse tocante não basta a subjetividade engajada de Heidegger, que precisa ser apanhada em seu próprio movimento, mas é imprescindível acertar as contas com a fundamentação do saber pressuposta por tais análises fenomenológicas ou hermenêuticas.

O sujeito não é extramundano, ou irreal, mas ele certamente é algo de radicalmente imaterial; sua existência não se permite conciliar com a mecânica, e tudo o que sabemos sobre esta é subsidiado por informação sensorial, um estágio ulterior e altamente incerto. Essa é a grande descoberta de Descartes e seu método introspectivo. A filosofia tem de ser metafísica, pois as regras da subjetividade, os critérios e princípios que regulam a interpretação da experiência, são a parte mais próxima do juízo, enquanto as regras da matéria, da fisiologia e da psicologia empírica já são derivadas daquelas primeiras, e qualquer virada interpretativa que pretenda pôr o sujeito sob o escrutínio desses elementos derivados tem de falsear de alguma forma as origens subjetivas de sua própria pressuposição.

Esta discussão toda gira em torno da repercussão que metáforas com ao do timoneiro produzem sobre as diferentes inclinações psicológicas.

Nietzsche e Heidegger se revoltam contra a ideia de que um piloto caído dos céus conduza o corpo como a um veículo, mas sua solução é pior, ao considerar o ser como sistema fechado composto por barco e tripulação, onde esta última, a parte subjetiva, não sobrevive no oceano do ser sem o seu corpo, a parte objetiva, eles concluíram que a subjetividade possui uma existência real (em função do barco) e uma fantasmática (as vidas íntimas dos tripulantes).

Ainda seguindo esse exemplo o materialismo privilegia, na subjetividade, a equipe dos remadores, que pelas suas mãos sentem o peso e a fluidez da água, conforme lhes é comunicado pelos remos (os órgãos sensoriais), além de, é claro, imprimir movimento à nau. A vida do capitão é questionada, bem como sua autoridade, e o vigia no topo do mastro é tido por elemento efêmero, dispensável ou imaginário. O materialista sabe perfeitamente que há uma diferença entre o barco e a tripulação, o corpo e a psicologia, mas atribui à tripulação um ser emergente a partir do barco, já que este como matéria inanimada se associa melhor ao mundo que a todos circunda; suposição metafísica muitíssimo audaciosa, para dizer o mínimo; sabe também que a água, ou o ambiente, só é acessível à tripulação por intermédio de instrumentos sui generis, os remos, âncoras e outros aparatos. E que as impressões da tripulação, subjetivas, podem não corresponder bem à realidade da água. Neste exemplo que oferecemos, nossa subjetividade jamais poderia saber que a água é molhada, salgada, fria ou quente, o que nos parece uma informação essencial sobre sua natureza. Não obstante, o materialista confia na experiência secundária dos aparatos para concluir que a tripulação sabe, não apenas o suficiente sobre a água, como boa parte do que ela verdadeiramente é.

Com o existencialismo surgiu uma perspectiva inteiramente nova. Identificando a bruteza dos remadores e o afastamento do vigia em relação à realidade horizontal do barco, concentrou-se no capitão, o ser plantado no convés, mas que tem uma visão do conjunto. Sua função é dar rumo ao barco, e para isso organiza as demais partes da tripulação. Ele é a intencionalidade no quadro maior da subjetividade. Certamente um elemento chave, mas que sozinho não permite as conclusões tiradas pelos existencialistas, no sentido de anular a perspectiva do vigia.

A tradição metafísica, que é a filosofia propriamente falando, concentrou-se sempre no vigia no topo do mastro. A sua existência é inteiramente diferenciada da do restante da tripulação que vive sobre o convés. Ao passo que o capitão distingue-se dos demais pela função, compartilha com eles a perspectiva horizontal. Em outras palavras, as partes da subjetividade que se orientam para funções práticas de sobrevivência, interação, entretenimento e mesmo conhecimento, estão fatalmente condicionadas a estas. Somente o vigia goza de uma propriedade peculiar da visão que lhe permite discernir, mesmo que vagamente, o plano geral do navio e da viagem. Somente ele percebe a confusão reinante abaixo de si, divisa os escolhos no rumo e as sutis variações atmosféricas. Este espaço mais íntimo da subjetividade é o responsável pela eleição dos valores, pelos critérios e princípios do saber. Por força de sua própria perspectiva diferenciada, ele pode e deve sintetizar o sentido da viagem e prescrever alterações na rota.

Entretanto, como é ao grupo no convés que cabe a decisão final, como é a parte funcional da subjetividade que age, é perfeitamente possível ignorar os conselhos do vigia.

A razão vivencial que se bate com as tarefas concretas do manejo, da percepção e da locomoção nada quer saber daquela razão que tudo vislumbra das alturas, relativamente indiferente aos problemas do convés. A vingança da tripulação contra este elemento imune às agruras do dia-a-dia foi ignorá-lo como porta-voz da irrisão, mas com isso o navio apenas perde o auxílio e a fiscalização de sua visão diferenciada, aquela mesma que que o priva dos descaminhos e de enormes perdas de tempo.

A razão “livre” do século XX produziu filósofos capazes de apoiar o nazismo e o comunismo tão bem como o capitalismo mais destruidor e as fugas da realidade proporcionadas pela contra-cultura. Idolatra-se hoje os pensadores de Frankfurt, que confessavam só escrever sob efeito do fumo, e os relativistas absolutos que renegam séculos de edificação intelecto-moral. 'Verdade' tornou-se palavra proscrita no vocabulário destes pseudo-sábios, e moral ou valores estão abaixo do ridículo.

A função da subjetividade, de fiscalizar e significar a vida, é considerada preconceito cultural obsoleto, dando lugar a um pensamento que fala sem cessar da identidade, ao passo que jamais logra dela se aproximar.

Mas o distanciamento da subjetividade pura não significa a sua dissociação do restante do patrimônio subjetivo. O mastro está plantado no convés, e o vigia pertence ao sistema total do navio tanto quanto qualquer dos tripulantes, destes dependendo e a estes orientando. É pelo seu afastamento da esfera instrumental, temporalizada e contextualizada, que é possível a sua visão peculiar, essencial na economia da nau.

A metafísica jamais tratou de produzir um sujeito extramundano, apartado do ser, senão de dar voz a uma parte diferenciada da subjetividade. O esforço da metafísica por encontrar um terreno seguro, que permita o julgamento do restante de nossos conhecimentos e ações, deriva da percepção empírica de que esta perspectiva é possível, natural e mesmo automaticamente dada.

 

 

Fonte: http://filosofiaespiritismo.blogspot.com/2011/12/metafisica-da-subjetividade-metaforas.html

 

 


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