Espiritualidade e Sociedade





Bianca Cirilo

>   Palmas, sua majestade o médium?

Artigos, teses e publicações

Bianca Cirilo
>   Palmas, sua majestade o médium?

 

 

O exercício da mediunidade traz em seu bojo alguns equívocos, historicamente, situados, principalmente a partir da Idade Média. É sabido que o contato direto ou indireto com o mundo dos Espíritos vem carreado de superstições que tornaram a mediunidade um motivo de sensacionalismo e perseguição, devido à má interpretação dos fenômenos espirituais; reflexo do desconhecimento das Leis Divinas que regem o intercâmbio entre os homens e o mundo invisível. Tal contexto gerou uma série de preconceitos, abusos de poder e extermínio de vidas, dentre outros fatores.

A mediunidade foi sendo confundida pelo próprio médium, dentro deste contexto de desencontros, como um meio de ostentação, de manipulação do seu poder comunicante, gerando mistificação e controle em cenários já visitados por todos nós como protagonistas do passado de equívocos em torno dela. Como médiuns fomos sendo assemelhados a supostos bruxos e seres extraordinários que utilizaram e sua habilidade divina de maneira orgulhosa, egoísta, visando confirmar a triste ilusão de que éramos melhores do que os demais. Por outro lado, também fomos perseguidos e mortos, sem piedade, pela ignorância dos que se acreditavam acima de Deus e isso gerou descaminhos e medos em torno da tarefa a que nos fora confiada, despertando em todos nós o sentimento de vítima.

Contudo, identificados, ilusoriamente, com a posição de pretensos superiores, muitas foram as vantagens obtidas no campo do exercício mediúnico e que, infelizmente, se mantém até hoje, para garantir a falsa ideia de que somos indispensáveis e de que sabemos mais do que aqueles que nos buscam para o socorro. Ganhamos privilégios materiais, financeiros e de prestígio social cujos aplausos foram sendo tomados, por nós, como confirmação de que éramos seres especiais da Criação Divina, mergulhados nos holofotes da fama e do destaque; aspectos estes que se nos trouxeram prazer, na mesma proporção, nos sentenciaram dentro de nossa própria vaidade.

Egos fortalecidos pelo poder da adivinhação, da cura, da vidência, entre “poções mágicas” e charlatanismo, muitos de nós fomos os “gurus” e bruxos, afundando nossa consciência na escuridão da idade das trevas, embevecidos pelo poder de dominar as massas e assim, torná-las dependentes ao nosso comando e orientação infeliz; divorciados do amor de Deus. Ai de nós, o preço foi alto! Mas, longe da culpa que nunca nos convém, estamos, hoje, com a possibilidade renovadora de fazer novos caminhos ininterruptos pelo Espiritismo, mediante o amor de nosso pastor bendito que nunca desiste de nos amar. Outros, dentre nós, já conseguiram, inteligentemente, escolher o caminho do bem com Jesus e nós também conseguiremos, é a Lei!

Por isso precisamos refletir sobre a nossa rota e sair daquele lugar de filhos pródigos como muito bem nos aponta Ermance Dufaux, (2006 a). A saída desta condição de seres à parte da Criação, através da menos valia, gera em nós um processo de inferioridade tamanho, produzindo um grave afastamento de Deus, a nossa Fonte Maior, e com isso, passamos a nos portar como mendigos da própria alma, nos contentando em fazer as coisas de qualquer jeito e agindo sem qualquer expressão de amor por nós mesmos. Nesse estado de espírito, não conseguimos sentir o quanto podemos ser úteis como médiuns, humildemente, agradecendo a todas as oportunidades de trabalho que o Pai nos oferece. Por nos colocarmos abaixo da condição de filhos do Altíssimo nos incapacitamos de abrir espaço para sentir o amor divino, principalmente quando nosso Criador nos autoriza a sermos médiuns, intermediários da sua vontade e não da nossa. Nosso medo de sermos amados nos esconde em nossa timidez que é mais uma expressão de orgulho, disfarçada de humildade, pois, assim, vamos nos negando a assumir a responsabilidade pela nossa própria transformação espiritual.

Mergulhando, portanto, na necessidade de compreensão profunda do que nos leva, ainda, a percorrer caminhos equivocados, destacamos o sentimento da vaidade como um afeto devastador a nos afastar da verdadeira autoestima. Precisamos, pois, retomar o caminho de volta como muitos dentre nós que não se cegaram com suas habilidades mediúnicas, percebendo-as, verdadeiramente, como marcas vivas de uma necessidade de aprendizado. Não somos especiais porque somos médiuns, todos somos especiais porque somos filhos de Deus, e esta filiação nos colocará sempre na condição do aluno aprendiz. Não há e nunca haverá sucessores de Deus. Sendo assim, jamais ocuparemos o lugar de Deus e nem precisamos disso; a vaidade nos entropece o raciocínio e a sensibilidade e faz com que queiramos, ingênua e presunçosamente, ocupar o lugar divino, esquecendo que como cocriadores temos, em nós, o gérmen da infinita felicidade.

A vaidade foi criando raízes em nossos corações porque ainda não sabemos o quanto de tesouros legítimos trazemos no íntimo, aguardando o florescer pela nossa vontade de fazer o que a lei maior prevê. Fomos nos acostumando a ser os transgressores e agora, a vida está cada vez mais nos relembrando como se consegue a paz verdadeira. Os holofotes nos distraem entre as posturas na casa espírita, que transformam a mediunidade em cargos empresariais, como se ser médium fosse mandar nos outros, determinando como eles devam evoluir. Caminhando assim, fomos e ainda estamos seguindo os passos do suicídio moral do personalismo.

O personalismo é trazido como um dos sentimentos mais preocupantes pela espiritualidade que lida conosco. Vários são os Espíritos de escol que nos alertam sobre a questão da vaidade. Segundo o Evangelho, encontramos informações fundamentais sobre o orgulho como o sentimento a ser trabalhado, em todos nós, que nos afasta da consciência e do sentido do que é a tarefa mediúnica. O orgulho cria um sentimento equivocado de privilégio, de ascensão narcísica que entorpece nosso bom-senso, comprometendo o entendimento de que nossas diferenças são apenas por uma questão de aproveitamento das várias encarnações, ou seja, cada um se aproxima mais ou menos das Leis Divinas e extrai experiências melhores ou piores de cada uma delas. No entanto, todos, sem exceção, chegarão ao estágio máximo da evolução e continuarão crescendo em outros níveis, impensáveis ainda, a nossa capacidade de apreensão, logo, não há favoritismo.

Essa ideia de favoritos é o reflexo da relação distorcida que estabelecemos com Deus. Ainda no Evangelho, encontramos a afirmativa de que criamos uma ideia de Deus à nossa maneira, assemelhado ao bezerro de ouro, adaptado inadequadamente às nossas necessidades pequenas, às nossas paixões mal dirigidas, daí, dentro desta lógica, o próprio Deus seria partidário e vingativo. Logo, torna-se fácil, portanto, transpor o raciocínio de que então, haveria eleitos e não eleitos.

Destacando o pensamento de Ermance Dufaux, temos:

“O personalismo é a expressão mais perceptível e concreta do orgulho. É a excessiva e “incontrolável” valorização conferida a nós mesmos levando-nos a supor termos direitos e qualidades maiores do que aquelas as quais realmente possuímos. (...) enquanto o orgulho incapacita-nos para verificar as próprias imperfeições, o personalismo tem como efeito gerar ideias de que aquilo que parta de nós é melhor e mais correto.””(DUFAUX, 2006 b: 34.)

Ermance esclarece que tal postura, acima descrita, prejudica nossa capacidade de discernir, de formular um juízo claro sobre as coisas e as situações. No personalismo mediúnico criamos, pois, uma falsa ideia de que somos indispensáveis, de que o trabalho não acontece com qualidade sem a nossa presença e que nosso desempenho mediúnico é insuperável, o melhor de todos. Vamos nos iludindo com a falsa ideia de que somos insubstituíveis. Seria o que a mesma autora espiritual chama de “paixão narcisista” (DUFAUX, 2006 b:35); processo psicológico que gera, segundo ela, uma desconexão com a realidade.

De fato, o personalismo nos retira o bom-senso, passamos a nos comportar frente a nossos irmãos como se fôssemos superiores, isso nos afasta de nosso propósito reencarnatório, criando um hiato na nossa relação com Deus, esquecendo que, como médiuns, somos os mais necessitados alunos da grande escola que é a vida. Lembremos que a mediunidade não é um favor que fazemos para ninguém, a não ser para nós mesmos, já que, através dela, podemos, por misericórdia, aliviar nossas dores. Somos os atendentes das próprias mazelas e o nosso próximo nos faz a caridade de permitir que sejamos úteis a ele, essa seria a tônica. Somos os aprendizes de servos, buscando seguir a recomendação do Cristo e não os senhores; tudo é uma questão de adequação do nosso ponto de vista. O personalismo inverte essa constatação e justifica a tirania mediúnica que alimenta a falsa crença de que, como médiuns, seríamos os direcionadores da subjetividade alheia. Auxiliar não é impor a nossa forma de ação ao outro, é pedir a Jesus que façamos esforços cada vez melhores para sermos pontes humildes entre ele e os outros, realizando o melhor possível para que isso se dê, dentro de nossas possibilidades.

Hammed também muito contribui sobre esta reflexão, em sua obra As Dores da Alma. Ele nos traz uma análise muito interessante sobre uma das facetas do nosso orgulho, relativa à postura crítica de censurar os outros. Ainda mantemos uma crença ilusória de que ser médiuns significa adotar uma postura de vigilantes e vamos cobrando de nossos irmãos como se eles fossem nossos empregados e estivessem sob a nossa tutela, dentro da relação estabelecida no trabalho mediúnico. Agimos assim, segundo Hammed (1998), esquecidos de que cada um somente evolui conforme seu potencial interno e sua consciência. Se Deus precisasse de assistentes para lembrar disso não teria criado o sentido íntimo de suas Leis dentro de nós, logo, paremos de infantilizar as pessoas à nossa volta, a evolu ção alheia não está ao nosso comando. Deixemos o outro ser e crescer do jeito que ele pode e sente, como queremos que assim façam conosco!

Não se têm notícias de que Jesus Cristo impusesse cobranças ou tivesse promovido convites insistentes ao crescimento das almas. Teve como missão, na Terra, ensinar-nos a serenidade e harmonia, para entrarmos em comunhão com “Deus em nós”. (HAMMED, 1998: 35.)

Ainda nos apoiando no raciocínio de Hammed, destacamos outra obra de sua autoria que deve ser, a nosso ver, estudada profundamente por todos nós que procuramos exercer a bendita tarefa da mediunidade, infelizmente, nem sempre sendo praticada, por nós, com Jesus. Trata-se do livro A Imensidão dos Sentidos, contribuição ímpar como direcionamento fundamental de nosso processo de transformação moral consciente na condição de intermediários do Bem. Como médiuns, estamos sendo convidados a desenvolver a bondade, a sensibilidade, a boa vontade e a sinceridade no serviço cristão, no entanto, será que sabemos o que é ser bom? Será que estamos nos desenvolvendo de forma coerente como que Jesus nos ensinou? Até que ponto não estamos utilizando a mediunidade para sermos aplaudidos? Até que ponto não estamos fazendo da mediunidade um fardo e descontando no nosso irmão a revolta inconsciente diante do compromisso assumido, a rigidez de crenças e a culpa que nos nega o direito de cuidar de nós mesmos?

 

Nesta obra, Hammed analisa a diferença entre bondade e desatenção às necessidades pessoais. Devemos aprender a respeitar os nossos direitos neste quesito e não fazermos da mediunidade um motivo de fuga de nós mesmos, pois isso abre porta para mais soberba e desrealização, ou seja, cria em torno de nós uma capa dura onde os nossos afetos são escondidos e mecanizados, robotizando e automatizando a experiência mediúnica. A vaidade impede o desenvolvimento da postura acolhedora e amorosa que todos nós, como médiuns, temos o dever de desenvolver com autenticidade, sem hipocrisia e sem proselitismo na direção de nossos semelhantes. Se não fizermos isso, não saberemos desenvolver empatia e auxiliar o outro com amor e compreensão. A soberba nos distancia da capacidade de sermos sensíveis à dor alheia, cega completamente a nossa alma, cria antipatias e muros lamentáveis no campo do relacionamento interpessoal. Ela nos atenta ao desejo da idolatria e das palmas! Tomemos muito cuidado com isso!

Outro aspecto muito bem destacado por Hammed, na mesma obra acima, refere-se ao que ele chama de arrogância competitiva (HAMMED, ano: 41). O autor espiritual em destaque nos lembra que tudo o que sentimos, em qualquer situação, reflete a nossa história de vida, o nosso patrimônio de vidas passadas e ainda nossa perspectiva futura. Precisamos nos compreender dentro desta dinâmica complexa de reações, ainda, não trabalhadas por nós mesmos. Para este Espírito benfeitor, a ideia de arrogância, associada ao manejo da mediunidade, traz o problema da inveja como fator de difícil resolução. Muitas vezes, devido à nossa herança interna, somos assaltados pela competição insensata criticando o outro no campo das tarefas na casa espírita, comandados pela rivalidade sem freio e sem consciência. Podemos explicar esse mecanismo psicológico da seguinte maneira: o invejoso deseja se afastar do inimigo interno da insatisfação frente à própria imagem, projetando então nos outros as suas mazelas, através da raiva que ele sente das conquistas que o próximo já fez e ele ainda não. O invejoso, em suma, se desconhece, da mesma forma que desconhece o outro, por isso julga precipitadamente. Hammed, porém, nos conforta dizendo que isso não significa que somos maus, assim como, quando somos generosos também não significa que já somos seres bondosos. Na verdade, tudo isso representa que precisamos aprender a lidar com nossos afetos, admiti-los e cuidar de nós mesmos, já que tudo está dentro de nós e não fora. A mediunidade nos dá a grande chance de fazermos esses ensaios, de desenvolver, gradativamente, nossa autotransformação, combatendo sentimentos perturbadores como é o caso da inveja e seus derivados.



 


Tenhamos cuidado com a tentação de esperar as palmas como confirmação de nossa pretensa superioridade! A mediunidade não é um palco e nós não somos as estrelas eleitas da festa! Precisamos aprender a tratar nossos semelhantes como iguais, pois somos iguais, na simplicidade (origem) e na destinação à perfeição a que todos estamos submetidos! O poder mediúnico está em conseguir transformar-se como espíritos imortais que somos, utilizando nossa mediunidade a nosso favor, ou seja, cumprindo irrestritamente a Lei de Deus.

O primeiro indício de nossa vaidade é quando não admitimos que somos orgulhosos e que esperamos o palco do reconhecimento e o aplauso direto ou simbolicamente representado naquele velho comentário: Nossa você é ótimo! Elogios podem ser formas de incentivo, o problema está em como os recebemos e como os encaixamos em nosso mundo íntimo. Em ambos os casos existe o orgulho, pois diminuir a si mesmo ou colocar-se acima dos outros é uma atitude psicológica de tentar se destacar de alguma maneira, esquecendo-se que o maior no Reino dos Céus, como nos disse muito bem Jesus, é “aquele que se faz servo de todos!”...

Será que estamos preparados para sermos elogiados ou nos inferiorizamos e achamos que somos aquém de nossas possibilidades? Será que, lá no fundo, ainda nos envaidecemos e “nos achamos o máximo”!? Foi exatamente por termos sido as diversas majestades do passado, tendo aproveitado insuficientemente esta experiência que estamos, hoje, sendo convocados a rever sobre poder, amor, auxílio mútuo, caridade e assim por diante, pois, a mediunidade é a ponte entre nós e Deus, que, amorosamente, nos convida ao seguro recomeço, graças a ele.


 

Referências Bibliográficas:

ARDEC, Allan. “O Orgulho e a Humildade”. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Cap.VII:11. Rio de Janeiro: CELD, 2004.

NETO, F, E, S. Pelo Espírito de Hammed. “Orgulho”. As Dores da Alma. São Paulo: Boa Nova Editora, 1998.

NETO, F, E, S. Pelo Espírito de Hammed. A Imensidão dos Sentidos. http://bvespirita.com/A%20Imensidao%20 dos%20S ent idos%20 (psicografia%20Francisco%20do%20 Espirito%20Santo%20Neto%20 - %20espirito%20Hammed).pdf. Acessado em 12/11/2017.

OLIVEIRA, W, S. Pelo Espírito de Ermance Dufaux. “A Rota dos Filhos Pródigos” – Calderaro. Escutando Sentimentos. Belo Horizonte: Dufaux, 2006.

OLIVEIRA, W, S. Pelo Espírito de Ermance Dufaux. “Estudando o orgulho”. Mereça Ser Feliz – superando as ilusões do orgulho. Belo Horizonte: Dufaux, 2006

 

 

 

Fonte: Revista CELD de Estudos Espírita
https://celd.xyz/wp-content/uploads/01-Revista_CELD_Janeiro-2018.pdf

 

 

 

* * *

 

 



topo

 

 

Acessem os Artigos, teses e publicações: ordem pelo sobrenome dos autores :
|  B  |   C  |   D   |  F   |  G  |   H  |   I   |  J     K   |   L    M  |   N   |   O   |   P  
-  Q  |   R  |  S  |   T   |   U   |   V    |   W   |   X    |   Y    |    Z  
Allan Kardec      -   Special Page - Translated Titles
* lembrete - obras psicografadas entram pelo nome do autor espiritual :