A nossa condição de
filhos de Deus ainda é uma conquista do ponto de vista do sentimento.
Isso quer dizer que nosso desafio espiritual, a cada encarnação
vivida, será sempre o aprendizado de sentir-se verdadeiramente
como ser, absolutamente, integrado à
paternidade excelsa.
A jornada do espírito tem demonstrado vários desencontros
com a Lei Divina, tendo em vista o processo natural de maturação
do espírito, migrando do instinto ao sentimento, passando pela
sensação e, neste percurso, fixando valores descortinados
a cada impacto que a consciência sofre diante de si mesma.
Descobrir que somos filhos de Deus só é possível
mediante o reconhecimento da ação de suas leis em nossas
vidas e, exatamente, porque, durante muito tempo, temos vivido como
filhos pródigos, ainda agindo como estranhos ao lugar especial
que nosso Criador concede a toda sua obra. Esse lugar especial não
é exclusivo a nós; ele é oferecido como garantia
evolutiva de que todos chegaremos à total integração
com esta nossa identidade real, estabelecida pelo Altíssimo
— a de espíritos plenamente em paz consigo mesmo e com
o Universo.
Ao longo da história dos homens e das religiões, vamos
testemunhando os processos estratégicos de afastamento que
as diferentes instituições de controle do pensamento,
das crenças e dos costumes diversos agenciam para criar uma
relação equivocada com o nosso Criador. Esse processo
funciona da seguinte maneira: lideranças religiosas, antes
do Espiritismo, tentaram reforçar o quanto Deus estaria longe
de nós, mediante a construção de uma imagem e
ação divinas incompatíveis com seu amor incondicional.
Fomos, portanto, sendo afastados de nossa essência de filhos,
esmagados pelo medo da fúria divina, medo da desobediência
que nos custaria do purgatório ao inferno. Decerto, a estratégia
menos feliz era e foi eficaz porque quando distanciamos o espírito
de seu objetivo maior, qual seja: ser perfeito, logo, totalmente harmonizado
com a proposta jurídica soberana, vamos retirando sua potência
de transformação. Como poderíamos pensar em evoluir
se lidar com Deus era confirmar nossa condição de devedores?
Isso gerava desânimo ou motivação? O medo sempre
foi um dos maiores instrumentos de manipulação das massas
para gerar confusão, alimentar a ignorância e o que é
pior, impedir a intimidade que todos temos direito a ter com nosso
Pai. Deus, é nosso Pai, então qual deve ser a relação
entre um pai e seus filhos? Qual a missão da paternidade e,
em se tratando da divina, já dimensionamos o que isso significa?
Nosso foco como espíritas deveria ser resgatar essa aproximação
fundamental à nossa evolução com as Leis Divinas
e, consequentemente, com o nosso sentido da existência: Deus-Pai.
Fomos acreditando, ao longo das encarnações de sofrimento,
que Deus estava ali somente para nos cobrar e não para nos
corrigir. Corrigir sendo sinônimo de educar representa auxiliar
seus filhos a voltar para o que traz paz e felicidade, isto é,
aprender a reconhecer que, somente praticando o Bem, o Amor e a empatia,
seremos capazes de desfrutar da paz de consciência. Não
há paz possível fora da prática das Leis de Deus,
porque a vida universal foi programada para que buscássemos
aquilo que é certo, de acordo com o que Deus estabeleceu como
rota positiva e verdadeira.
Sem criarmos essa intimidade de filhos, vamos continuar interpretando
lei de causa e efeito como reforço para permanecer sofrendo,
justificativas para repetir os velhos padrões comportamentais,
sentindo e fazendo as coisas do mesmo jeito, com a mesma energia paralisadora,
ressentida, duvidosa e sem fé que nos chumba, transformando
nossa existência em um fardo. Seria possível evoluir
pelo amor desse jeito?
Não precisamos de intermediários entre nós e
Deus para garantir nossa condição de filhos, precisamos?
Teríamos que marcar uma audiência para sentir Deus ou
bastaria nos dirigir ao exercício contínuo de suas leis
para nos arremessarmos ao seio do seu amor? Os nossos amigos espirituais
são intermediários de sua mensagem, de suas leis, mas
não são eles que nos conferem o direito de sermos filhos.
Todos já somos por determinação da própria
Inteligência Suprema e este lugar é o que mais temos
evitado, renegado, iludidos por papéis transitórios
e estimuladores do nosso orgulho e do nosso egoísmo.
O sociólogo Zigmund Bauman deixou um legado brilhante de reflexões
em torno de como temos nos relacionado, em termos de coletividade,
através do que ele analisa como amor líquido. Essa liquidez
refere-se a uma fragilidade no campo dos vínculos afetivos
e em geral que tornam as relações sociais superficiais,
descomprometidas com uma continuidade. Diríamos que esvaziadas
pela artificialidade, pela mesmice, pela previsibilidade e pela banalização
social.
Tomando essa referência como apoio, poderíamos dizer
que estamos num mundo onde há uma contínua fabricação
de distanciamento, logo, de elos frouxos, em detrimento da profundidade,
e se continuarmos assim, perderemos a chance de estabelecer contato
verdadeiro com a vida que somente a intimidade nos proporciona; intimidade
essa sem ser abusiva, inconveniente, antiética; intimidade
que começa dentro de nós como seres que necessitam urgentemente
aprender a se aproximar da própria essência e, neste
movimento, encontraremos Deus em nós.