Marcelo
Gleiser
> O método em debate
Físicos discutem a necessidade (ou não) da prova
para certas teorias
RESUMO
Controvérsias no meio da física e da cosmologia
põem em questão o método científico
na elaboração de teorias arrojadas. Neste ano,
George Ellis e Joseph Silk criticaram cientistas que deixam
de lado a confirmação experimental, alegando que
certas teorias só precisariam ser "suficientemente
elegantes e explicativas".
Será que físicos precisam de evidência
empírica para confirmar suas teorias? Tradicionalmente, a
resposta deveria ser um "sim!" intransigente, dado que
a ciência funciona através da confirmação
experimental de hipóteses. É como aprendemos o famoso
método científico na escola: uma hipótese sobre
como funciona o mundo, por mais absurda que pareça, se bem
formulada, merece ser testada no laboratório ou, no caso
das ciências astronômicas, por meio de observações
telescópicas.
É claro que existem nuances aqui. Por exemplo, é possível
afirmar que teorias nunca estão "certas", sendo
descrições provisórias do que podemos aferir
da natureza. Segundo esse prisma, o papel da ciência é
provar que teorias estão erradas, substituindo-as por outras
teorias que funcionam provisoriamente. De qualquer modo, sem o teste
empírico é impossível averiguar a plausibilidade
de uma hipótese científica.
Por mais de 400 anos essa metodologia vem funcionando espetacularmente
bem. Porém, uma controvérsia nas fronteiras da física
e da cosmologia vem forçando cientistas a repensar o papel
do método científico na elaboração de
suas teorias mais arrojadas, sugerindo que, talvez, a questão
não seja tão simples.
No início deste ano, George Ellis e Joseph Silk, dois pesquisadores
de renome internacional, publicaram um ensaio na revista "Nature"
com o título "Método Científico: Defenda
a Integridade da Física". Nele, os autores criticam
um grupo de cientistas que vem casualmente deixando de lado a necessidade
de confirmação experimental no estudo de teorias cósmicas
ambiciosas, alegando que basta que essas teorias sejam "suficientemente
elegantes e explicativas". Ellis e Silk alertam que, mesmo
trabalhando nas fronteiras do conhecimento, esses cientistas estão
"rompendo com uma tradição filosófica
de séculos, que define o conhecimento científico como
sendo empírico".
Ellis e Silk expressam a preocupação de muitos cientistas.
Afinal, o método científico dá credibilidade
à ciência. Sem ele, como garantir que hipóteses
sobre a natureza não passam de fantasias? Como defender a
ciência publicamente em situações politizadas,
como no caso do aquecimento global?
Como chegamos nesse impasse? De certa forma, a descoberta sensacional
do bóson de Higgs três anos atrás por pesquisadores
do Cern (Centro Europeu de Física Nuclear) trabalhando no
Grande Colisor de Hádrons (LHC) marcou o fim de uma era.
Com existência prevista em meados da década de 1960,
o elusivo bóson era a peça que faltava no que os físicos
chamam de Modelo Padrão da física de partículas,
uma teoria matemática que descreve todas as partículas
de matéria conhecidas e suas interações através
de três forças que agem sobre elas (o eletromagnetismo
e as forças nucleares fraca e forte). Completando a descrição
moderna, adicionamos uma quarta força, a gravidade.
beco Apesar de seu enorme sucesso, o Modelo Padrão é
um beco sem saída. Não podemos usá-lo para
unir a descrição da matéria como composta por
minúsculas entidades subatômicas (as partículas
elementares, como os quarks, que compõem o próton
e o nêutron, e o elétron) com o outro pilar da física
do século 20, a teoria da relatividade geral de Einstein,
que descreve a gravidade.
Sem uma união dessas duas teorias - o que chamamos de uma
teoria da gravitação quântica-- não podemos
saber porque o universo é composto dessas partículas
e não outras, ou porque tem essas quatro forças. Também
não sabemos como entender o Big Bang, o evento cósmico
que marca o início do tempo.
É aqui que a possibilidade de uma ciência sem validação
empírica surge para assombrar a consciência dos físicos.
Por mais de meio século, cientistas tentam ir além
do Modelo Padrão, criando teorias com o objetivo de unir
a gravidade com o mundo das partículas. Apesar das muitas
possibilidades sugeridas nesse período (como a popular teoria
das supercordas), infelizmente nenhuma oferece qualquer sinal de
evidência empírica.
Se medirmos o sucesso de uma hipótese científica pelo
número de seus aderentes, a vencedora atual chama-se supersimetria
(o "super" das supercordas vem daí). Teorias supersimétricas
preveem que cada partícula de matéria tem uma companheira
supersimétrica, efetivamente dobrando o número de
tijolos fundamentais de matéria que existem na natureza.
A teoria é matematicamente elegante, e pode até solucionar
a questão da "matéria escura": sabemos que
existe um tipo de matéria no universo seis vezes mais abundante
do que a matéria comum que não emite luz (portanto,
"escura"), mas não sabemos que matéria é
essa. Dada a utilidade (ao menos hipotética) da supersimetria,
muitos pesquisadores estavam confiantes de que a teoria seria confirmada
assim que o LHC entrasse em funcionamento. A natureza não
perderia uma chance dessas.
Mas não foi o que ocorreu. Até o momento, apesar de
uma busca vigorosa em vários experimentos espalhados pelo
mundo, nenhuma partícula prevista por teorias supersimétricas
foi detectada. Se o LHC não descobrir ao menos uma delas
(a mais leve, na maioria dos modelos), muitos cientistas jogarão
a toalha, declarando a supersimetria (e, por extensão, as
supercordas) mais uma bela ideia na física que não
deu certo.
Mas muitos não entregarão os pontos, optando por redefinir
seus modelos de forma que as massas das partículas supersimétricas
sejam tão grandes que escapariam à detecção
no LHC, ou em algum substituto no futuro próximo. (O alcance
de um detector depende da energia atingida pelas partículas
ao colidirem entre si: quanto maior a energia da colisão,
maior a massa das partículas produzidas, consequência
direta da famosa fórmula E = mc². Colisores de partículas
transmutam energia em matéria, um dos aspectos mais surpreendentes
da física moderna. Físicos gostam de brincar que é
como se colidíssemos duas bolas de tênis para criar
um Boeing 747.)
A possibilidade de redefinição dos parâmetros
que definem os modelos teóricos (como a massa das partículas
supersimétricas) leva a uma questão filosófica
essencial: como determinar a validade duma teoria se não
podemos testá-la experimentalmente? Será que deve
ser abandonada simplesmente porque, com a tecnologia disponível
num determinado momento, é impossível encontrar evidência
empírica a seu favor? Nesse caso, quanto tempo devemos esperar
por novas tecnologias antes de aposentar a teoria: dez anos? Cinquenta
anos? Séculos? Quando paramos de reajustar parâmetros
para manter a teoria viável?
Como outro exemplo, considere a teoria do multiverso, que sugere
que nosso universo seja apenas um dentre uma multidão de
outros universos, separados por distâncias intransponíveis.
Alguns cientistas acreditam que essa teoria possa resolver questões
complexas sobre nosso universo como, por exemplo, os valores dos
parâmetros do Modelo Padrão (massa do elétron
e dos quarks, suas cargas elétricas etc.). Mas o preço
é alto: os outros universos são inobserváveis
diretamente. Mesmo assim, os defensores da ideia do multiverso consideram
importante continuar à explorá-la, buscando ao menos
por evidência indireta da existência de outros universos.
sem provas O time oposto, no entanto, tem suas objeções.
Considere uma teoria que explica o que podemos detectar supondo
a existência de entidades que não podemos detectar
(como outros universos ou as dimensões extras das teorias
das supercordas). Qual o status que devemos atribuir a essas entidades?
Devemos considerá-las tão reais quanto as partículas
do Modelo Padrão? Nesse caso, como justificar cientificamente
que sua existência é diferente da de outras entidades
inobserváveis que podem ser propostas para explicar a realidade,
como fadas ou duendes? (O leitor pode escolher a sua favorita.)
É bom lembrar dos epiciclos, os círculos imaginários
que Ptolomeu propôs por volta de 150 d.C. para descrever o
movimento dos planetas. Mesmo que não houvesse qualquer evidência
de sua existência, epiciclos explicavam satisfatoriamente
o que os astrônomos da Grécia Antiga observavam nos
céus. Com isso, muitos os consideravam reais. Passaram-se
mais de 1.500 anos até que os epiciclos começassem
a ser vistos como ficção, nada mais do que uma ferramenta
que possibilitava o cálculo das órbitas planetárias.
Será que as supercordas e o multiverso, frutos de algumas
das mentes mais brilhantes do planeta, não passam de versões
modernas dos epiciclos?
No final de maio, cientistas reiniciaram as pesquisas no LHC, após
uma parada de dois anos. A interrupção foi proposital,
para que a energia das colisões entre as partículas
fosse aumentada, chegando agora quase ao dobro do valor anterior.
Com isso, físicos poderão explorar as propriedades
do bóson de Higgs com mais detalhes, inclusive determinando
se ele é ou não composto por partículas ainda
menores. Mas o grande foco das novas colisões é a
busca por partículas supersimétricas.
Caso sejam descobertas, será um enorme triunfo da física
moderna, um dos maiores de todos os tempos. Mas caso nenhum indício
de supersimetria seja encontrado, os próximos passos serão
difíceis e plenos de controvérsia, desafiando não
só o modo como avança o conhecimento nessa área
mas também o papel do método científico no
futuro da ciência em geral.
Nota: Este texto
é uma versão ampliada do publicado pelo autor, em coautoria
com o físico Adam Frank, no jornal "The New York Times",
em 7 de junho.
MARCELO GLEISER é professor de física
teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação
Imperfeita".
Facebook: goo.gl/93dHI
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/225042-o-metodo-em-debate.shtml
Leiam outros textos de Marcelo Gleiser:
->
Bem-vindo ao trans-humanismo
->
Breve meditação sobre o Nada
->
Conversa sobre o nada
->
Deus, Einstein e os dados
->
Do nada, tudo
->
A escolha é sua - destino ou livre-arbítrio
->
A fé dos cientistas
->
Mente e matéria
->
O método em debate
->
O perigo do obscurantismo e da prepotência
->
A possibilidade do multiverso
->
Tempo celeste
->
Uma briga entre a física e a filosofia
->
Universo Consciente?
->
Universo ou universo?
topo
|