26/10/2014
Feito um zumbi, uma teoria pode ser repetidamente alterada para
escapar da morte por falta de evidência
Falar de fé no contexto científico
parece blasfêmia. A ciência não é a antítese
da noção de fé, baseada como é em certezas,
na verificação explícita de hipóteses?
Essa visão da ciência como perfeitamente lógica
e racional é uma idealização.
É claro que o produto final
da pesquisa científica deve ser algo concreto, hipóteses
que devem ser comprovadas, dados obtidos em experimentos passíveis
de repetição por outros. Talvez seja esse o grande
mistério da ciência, uma atividade criada por humanos,
seres falíveis que almejam a perfeição.
No início do século
20, a física estava em crise. Experimentos demonstravam propriedades
da matéria que não podiam ser explicadas pelas teorias
então vigentes, baseadas na mecânica de Newton ou no
eletromagnetismo de James Maxwell, os pilares da física clássica.
A exploração do mundo
dos átomos expôs uma realidade completamente diferente,
onde novas regras eram necessárias. Cientistas tiveram que
reformular sua visão de mundo, o que nunca é fácil.
No mundo clássico, a Natureza
fazia sentido, seguindo regras simples de causa e efeito, o que
chamamos de determinismo. No mundo quântico, essa certeza
tem que ser posta de lado, e precisamos adotar regras baseadas em
probabilidades. Einstein, Schrödinger, Planck e outros grandes
nomes da ciência sofreram, recusando-se a aceitar isso. Para
eles, a natureza tinha que seguir regras simples, determinísticas,
mesmo se não soubéssemos quais.
Esse tipo de postura só pode
ser chamado de fé. É acreditar numa natureza ordenada,
racional, mesmo quando se manifesta de forma aleatória. "Deus
não joga dados," escreveu Einstein a seu colega Max
Born. Einstein e outros buscaram teorias que explicassem as estranhas
probabilidades quânticas como manifestações
de uma ordem mais fundamental. E falharam.
Existe, no entanto, uma diferença
essencial entre a fé religiosa e a fé científica:
dogma. Em ciência, o dogma é insustentável,
pois cedo ou tarde mesmo as ideias mais arraigadas --se erradas--
sucumbem á evidência dos dados. Em ciência, a
fé numa ideia errada tem de ser abandonada. Na religião,
a evidência dos dados é elusiva ou mesmo irrelevante,
o que faz com que a fé seja uma proposta sempre viável.
Estamos passando por um momento
curioso na física de altas energias e na cosmologia. Algumas
teorias populares podem não ser testáveis. Isso significa
que não podemos determinar se estão erradas, o oposto
da proposta científica. Feito um zumbi que nunca morre, é
possível que uma teoria siga sempre sendo redefinida de forma
a escapar do alcance dos experimentos. É o caso, por exemplo,
da supersimetria, uma simetria hipotética da natureza onde
cada partícula de matéria (elétrons, quarks...)
tem uma parceira supersimétrica. Propostas há quatro
décadas, essas partículas nunca foram encontradas.
No ano que vem, o Grande Colisor
de Hádrons na Suíça dobra sua energia em busca
delas. Se forem encontradas, ótimo. E se não forem?
Minha previsão é que, enquanto alguns físicos
abandonarão a supersimetria, outros continuarão a
crer nela, dizendo que ela ocorre a energias inalcançáveis
por nossas máquinas. Nesse caso, essa hipótese científica
se tornará um artigo de fé.