Gustave Geley, em seu livro Do
Inconsciente ao Consciente, lançou a teoria
do panpsiquismo, segundo a qual todas as coisas e seres encerram
em si mesmos um dínamo-psiquismo inconsciente que se desenvolve
na temporalidade. A psique, ou alma, constituiria assim
a essência dinâmica de todas as coisas. Do minério
à humanidade se processaria incessantemente o desenvolvimento
psíquico universal. Mas Kardec, muito antes de Geley, explicara,
em O Livro dos Espíritos, obra
básica do Espiritismo, que o espírito se apresenta
no Cosmos como um elemento fundamental de toda a realidade conhecida.
O Universo inteiro se constitui de dois elementos fundamentais,
o espírito e a matéria, de cuja interação
resultam, num processo dialético hegeliano, todas as coisas
e todos os seres, conhecidos e desconhecidos.
Os gregos já haviam sustentado, seis séculos antes
de Cristo, a teoria isoloísta, segundo a qual a Terra é
um organismo vivo dotado de alma. Mas o panpsiquismo de Geley tinha
por objeto o esclarecimento do processo evolutivo. Ele desejava
encontrar, nessa possível dinâmica interior das coisas,
a energia esquiva e secreta das metamorfoses universais. Há
evidente afinidade dessa teoria com a do elã vital de Bergson,
para explicar a dinâmica da vida na matéria e que nela
gera espécies vivas, que vão dos chamados insetos
sociais até a espécie humana. Pesquisador espírita
sucessor de Richet e companheiro de Eugéne Osty no Instituto
metapsíquico Internacional de Paris, Geley buscava estabelecer
em bases objetivas e pesquisáveis a dinâmica da evolução.
Remy Chauvin, entomólogo e diretor de pesquisas do laboratório
do Instituto de Cultura Superior de Paris, continua hoje essa tradição
científica francesa iniciada por Kardec.
A visão generalizada do processo evolutivo se confirma na
sua própria realidade material e nas pesquisas paleontológicas,
mas o que interessa atualmente é descobrir a mola oculta
desse processo natural. A teoria de Geley é uma contribuição
séria e fecunda para essa busca científica. Aceita
hoje a teoria da evolução das espécies até
mesmo pelas igrejas – como se vê no caso de Teilhard
de Chardin –, resta quase virgem o campo das conotações,
do modus faciende desse processo. A simples idéia
de que uma espécie gera ou pode gerar outra não esclarece
o problema, apenas o impõe. A teoria da mônada, que
vem de Platão e encontrou em nosso tempo fecundo desenvolvimento
em Leibniz, é aceita particularmente no meio filosófico,
mas cientificamente não conseguiu ainda passar do campo teórico.
Kardec chegou a propor que a distância entre o animal e o
homem é tão grande quanto a distância entre
o homem e Deus, sugerindo assim a existência de uma possível
genealogia do espírito humano, que poderá ser descoberta
e definida cientificamente. Nesse sentido, Chauvin deu uma contribuição
como ontomólogo, ao mostrar-se surpreso de que os insetos
sociais não tenham dado o salto para a humanização
e supondo que isso possa ter acontecido em outro planeta.
Alguns etnólogos e mitólogos, como Antré Lang
e Max Freedom Long, citados por Ernesto Bozzano, chegaram a aceitar
a possibilidade de traços e características animais
em raças humanas. Essas suposições, de origem
evidentemente totêmicas, não passam do plano especulativo.
O homem não se define pela sua aparência corporal,
onde as marcas da animalidade ancestral podem aparecer de maneira
generalizada e não específica. O espírito humano,
que é a essência do homem e a única ficha de
sua identidade evolutiva, revela em toda parte e em todos os tempos
a sua unidade espiritual. Essa unidade não provém
da forma corporal, mas da consciência. A diferenciação
das espécies, particularmente das superiores, torna-se pregnante
nas suas características psíquicas. A unidade do espírito
humano é perfeita e invariável em todas as raças
do passado e do presente. Porque as espécies superiores,
tanto nos reinos mineral, vegetal, animal e humano, revelam sempre
a supremacia espiritual da espécie, que se despe das heranças
da ganga das metamorfoses para se fixar no plano superior da vida.
A animalidade humana revela apenas a deficiência do progresso
espiritual e da vitória do espírito no ser em desenvolvimento.
As potencialidades do ser, suficientemente definido no processo
evolutivo como desta ou daquela espécie, sofrem naturalmente
atrasos acidentais, dando aos observadores desprovidos de dados
de observações de pesquisas mais completas a impressão
de resíduos das espécies superadas.
Como ensinou Kardec, o ser que se define num plano superior mantém
a sua unidade psico-afetiva sob controle e ação iluminada
pela consciência. É um produto acabado e perfeito da
evolução, que só continuará a modificar-se
no ambiente e nas condições do estágio evolutivo
que atingiu. As experiências da domesticação
animal dos hominóides provaram que falta a estes a condição
superior para exercer funções correspondentes ao nível
em que se pretende incluir. Essa irredutibilidade do homem animal
à condição animal superior exclui toda possibilidade,
tantas vezes tentada, de se empregar animais nas atividades específicas
do homem. A hierarquia natural da criação é
determinada pelas leis da evolução e nela se encontra
todo o edifício da ordem Universal.
É evidente que o homem pode se rebaixar – e freqüentemente
se rebaixa – ao plano animal, em virtude de suas ligações
sensoriais com o corpo. Mas sempre que isso acontece o homem abdica
temporariamente de sua condição humana e sofre a reação
da consciência, o que geralmente lhe acarreta situações
íntimas penosas. O instinto de conservação
vigia as suas quedas e o ameaça com o perigo de sua precipitação
em planos inferiores, onde o seu desajustamento o pune e o força
a voltar ao plano de que se afastou para uma experiência temerária,
usando indevidamente o seu livre-arbítrio. Por isso Kardec
advertiu que não há arrastamentos irresistíveis
no plano das tentações. O espírito preguiçoso
vê-se então compelido, pelo seu próprio remorso
da morte, a sujeitar-se ao círculo vicioso das reencarnações
repetitivas. Como o ouvinte do Bolero de Ravel, que depois de repassar
o bolero em toca-discos centena de vezes, acabou quebrando em desespero
os seus instrumentos, o espírito retorna ao caminho certo
que abandonara.
As Filosofias da Existência estabeleceram a diferença
entre viver e existir, não só por necessidade de distinção
e clareza na abordagem dos problemas humanos, mas também,
e principalmente, pela conveniência de se ver cada coisa em
seu lugar e em sua função. Enquanto isso, ao mesmo
tempo em que se processava essa revolução conceptual
no plano filosófico, Kardec desenvolvia suas pesquisas audaciosas
sobre a separação real entre o vivente e o existente.
Foi essa uma das maiores façanhas psicológicas de
todos os tempos, mas que só repercutiu com proveito no meio
espírita. Esses trabalhos foram publicados na Revista
Espírita. Através da mediunidade dos
médiuns de sua confiança (que não se referia
à honestidade do médium, mas ao seu grau de sensibilidade
mediúnica) ele recebia nas sessões da Sociedade Parisiense
as manifestações de espíritos de pessoas vivas.
Não empregava o magnetismo nem qualquer espécie de
evocação ritual. Verificava no registro das pessoas
que se dispunham a servir na experiência aquelas que, segundo
o registro, estariam naquele momento em disponibilidade. A seguir
consultava o espírito orientador (o controle como Geley designava
esse espírito) e este o autorizava a pensar ou não
nessa pessoa. Estabelecida a ligação silenciosa do
seu pensamento com a pessoa visada, logo esta se manifestava e se
identificava, passando a responder pelo médium à inquirição
do pesquisador. As verificações posteriores comprovavam
a identificação do espírito manifestante, anteriormente
desconhecido dos participantes da experiência. Kardec obtinha
assim o existente separado do vivente, que naquele momento dormia
em sua casa. Até mesmo o trajeto percorrido pelo espírito
do vivo para chegar à sede da sociedade, na Passage Santane
e os possíveis percalços do caminho, eram levados
em consideração. Era assim que, enquanto o famoso
teólogo dinamarquês Kierkegaard realizava suas cogitações
sobre a vida e a existência, na Dinamarca, Kardec verificava
ao vivo, em Paris, a possibilidade natural de exame isolado desses
dois aspectos do homem. O que mais importava nessa pesquisa era
o conhecimento das condições reais da situação.
Claro que havia relação entre os propósitos,
os métodos e os objetivos visados pelos dois investigadores.
Kierkegaard não era filósofo nem cientista, mas teólogo.
Kardec era filósofo, cientista, psicólogo e médico.
Kierkegaard não desejava penetrar no campo filosófico,
mas dava, sem querer, com suas cogitações, início
às Filosofias da Existência. Ele mesmo declarou que
não tivera propósitos filosóficos, mas apenas
interesse teológico. Kardec objetivava somente descobrir
a mecânica, por assim dizer, da relação corpo-espírito,
que interessava às suas pesquisas mediúnicas.
O desprezo voltado ao Espiritismo pelos filósofos e cientistas
da época, receosos de se meterem no campo perigoso das bruxarias,
não permitiu, até hoje, o aparecimento de um trabalho
aprofundado sobre essa coincidência à distância
na investigação de ambos. Vemos assim o desinteresse
com que os problemas fundamentais de uma cultura real do humano,
que surgia na segunda metade do nosso século, foram tratados
naquela fase.
O vivente, aquele que vive simplesmente, entregue às exigências
corporais do homem, permanece ainda no plano animal. O existente,
pelo contrário, é aquele que afirma o seu existir
na vida e luta por transcendê-la. Só esse conta na
escala humana, pois os viventes ainda não se integraram nela.
O corpo dorme, mas o espírito se liberta e se manifesta através
da sensibilidade mediúnica de outra pessoa. Como se produziu
a prova científica desse fato, com os métodos objetivos
exigentes da Ciência Moderna? Kardec rompeu a barreira da
sistemática materialista, mostrando a necessidade de adequação
do método à natureza específica do objeto.
A metodologia que elaborou, excluído o aparelhamento tecnológico
atual, é praticamente a mesma que Rhine, Pratt e Mac Dougal
empregaram no desenvolvimento das pesquisas parapsicológicas
atuais. A metodologia espírita de pesquisa dos fenômenos
paranormais antecipou de muito os métodos da psicologia experimental
e aprofundou os seus objetivos, atingindo a sondagem do inconsciente
quando Freud ainda freqüentava a escola primária, vestido
com a roupagem da inocência.
Não mencionamos o problema das antecipações
científicas do Espiritismo para nossa vanglória, mas
os leigos, em geral, recorrem sempre às novidades atuais
como superação do trabalho modelar de Kardec. A bem
da verdade histórica e da colocação epistemológica
certa da Ciência Espírita, é necessário
que tenhamos consciência da anterioridade das descobertas
espíritas. Além disso, é justo que se dê
o mérito ao seu dono, que se coloquem as fases científicas
no seu devido lugar. Os mais atrevidos adversários gratuitos
da doutrina, às vezes com a boa intenção de
resguardar o patrimônio científico, querem afastar
do quadro das ciências a vigorosa e decisiva contribuição
dos pioneiros espíritas. Colocar à margem da história
das ciências o esforço persistente dos grandes cientistas
que comprovaram as descobertas de Kardec, desde meados do século
passado até este momento, não representa apenas uma
injustiça, mas também uma traição à
verdade dos fatos.
Esquecer os fundamentos científicos do Espiritismo, as grandes
batalhas solitárias de Kardec contra as forças culturais
dos dois últimos séculos, tem sido um meio de negar
o valor e a influência da doutrina no desenvolvimento científico
da atualidade. E com que interesse se faz essa negação,
se não o de se manter em vigor o prestígio de instituições
arcaicas, irremediavelmente peremptas, em detrimento evidente e
interesseiro da evolução espiritual do homem?
Nas circunstâncias atuais essa tentativa se torna ridícula,
o analfabetismo das massas, apoiado e alimentado pelos sabichões
de que falava Richet, esses analfabetos ilustres que falam do que
sabem e do que não sabem, favorecem a modorra doirada dos
vivos na existência em suas cadeiras acadêmicas, em
suas tribunas místicas e em seus púlpitos em decadência.
Por tudo isso, a posição dos espíritas, no
panorama atual do mundo, não pode ser o de acomodação
às conveniências, mas a de luta em favor do esclarecimento
dos homens. Os tempos mudam rapidamente e para o espírita
convicto não há tempo a perder nesta hora de transição
cultural.