José Herculano Pires

>   O Panpsiquismo e a Unidade Espiritual do Homem

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José Herculano Pires
> O Panpsiquismo e a Unidade Espiritual do Homem


Gustave Geley, em seu livro Do Inconsciente ao Consciente, lançou a teoria do panpsiquismo, segundo a qual todas as coisas e seres encerram em si mesmos um dínamo-psiquismo inconsciente que se desenvolve na temporalidade. A psique, ou alma, constituiria assim a essência dinâmica de todas as coisas. Do minério à humanidade se processaria incessantemente o desenvolvimento psíquico universal. Mas Kardec, muito antes de Geley, explicara, em O Livro dos Espíritos, obra básica do Espiritismo, que o espírito se apresenta no Cosmos como um elemento fundamental de toda a realidade conhecida. O Universo inteiro se constitui de dois elementos fundamentais, o espírito e a matéria, de cuja interação resultam, num processo dialético hegeliano, todas as coisas e todos os seres, conhecidos e desconhecidos.

Os gregos já haviam sustentado, seis séculos antes de Cristo, a teoria isoloísta, segundo a qual a Terra é um organismo vivo dotado de alma. Mas o panpsiquismo de Geley tinha por objeto o esclarecimento do processo evolutivo. Ele desejava encontrar, nessa possível dinâmica interior das coisas, a energia esquiva e secreta das metamorfoses universais. Há evidente afinidade dessa teoria com a do elã vital de Bergson, para explicar a dinâmica da vida na matéria e que nela gera espécies vivas, que vão dos chamados insetos sociais até a espécie humana. Pesquisador espírita sucessor de Richet e companheiro de Eugéne Osty no Instituto metapsíquico Internacional de Paris, Geley buscava estabelecer em bases objetivas e pesquisáveis a dinâmica da evolução. Remy Chauvin, entomólogo e diretor de pesquisas do laboratório do Instituto de Cultura Superior de Paris, continua hoje essa tradição científica francesa iniciada por Kardec.

A visão generalizada do processo evolutivo se confirma na sua própria realidade material e nas pesquisas paleontológicas, mas o que interessa atualmente é descobrir a mola oculta desse processo natural. A teoria de Geley é uma contribuição séria e fecunda para essa busca científica. Aceita hoje a teoria da evolução das espécies até mesmo pelas igrejas – como se vê no caso de Teilhard de Chardin –, resta quase virgem o campo das conotações, do modus faciende desse processo. A simples idéia de que uma espécie gera ou pode gerar outra não esclarece o problema, apenas o impõe. A teoria da mônada, que vem de Platão e encontrou em nosso tempo fecundo desenvolvimento em Leibniz, é aceita particularmente no meio filosófico, mas cientificamente não conseguiu ainda passar do campo teórico. Kardec chegou a propor que a distância entre o animal e o homem é tão grande quanto a distância entre o homem e Deus, sugerindo assim a existência de uma possível genealogia do espírito humano, que poderá ser descoberta e definida cientificamente. Nesse sentido, Chauvin deu uma contribuição como ontomólogo, ao mostrar-se surpreso de que os insetos sociais não tenham dado o salto para a humanização e supondo que isso possa ter acontecido em outro planeta.

Alguns etnólogos e mitólogos, como Antré Lang e Max Freedom Long, citados por Ernesto Bozzano, chegaram a aceitar a possibilidade de traços e características animais em raças humanas. Essas suposições, de origem evidentemente totêmicas, não passam do plano especulativo. O homem não se define pela sua aparência corporal, onde as marcas da animalidade ancestral podem aparecer de maneira generalizada e não específica. O espírito humano, que é a essência do homem e a única ficha de sua identidade evolutiva, revela em toda parte e em todos os tempos a sua unidade espiritual. Essa unidade não provém da forma corporal, mas da consciência. A diferenciação das espécies, particularmente das superiores, torna-se pregnante nas suas características psíquicas. A unidade do espírito humano é perfeita e invariável em todas as raças do passado e do presente. Porque as espécies superiores, tanto nos reinos mineral, vegetal, animal e humano, revelam sempre a supremacia espiritual da espécie, que se despe das heranças da ganga das metamorfoses para se fixar no plano superior da vida. A animalidade humana revela apenas a deficiência do progresso espiritual e da vitória do espírito no ser em desenvolvimento. As potencialidades do ser, suficientemente definido no processo evolutivo como desta ou daquela espécie, sofrem naturalmente atrasos acidentais, dando aos observadores desprovidos de dados de observações de pesquisas mais completas a impressão de resíduos das espécies superadas.

Como ensinou Kardec, o ser que se define num plano superior mantém a sua unidade psico-afetiva sob controle e ação iluminada pela consciência. É um produto acabado e perfeito da evolução, que só continuará a modificar-se no ambiente e nas condições do estágio evolutivo que atingiu. As experiências da domesticação animal dos hominóides provaram que falta a estes a condição superior para exercer funções correspondentes ao nível em que se pretende incluir. Essa irredutibilidade do homem animal à condição animal superior exclui toda possibilidade, tantas vezes tentada, de se empregar animais nas atividades específicas do homem. A hierarquia natural da criação é determinada pelas leis da evolução e nela se encontra todo o edifício da ordem Universal.

É evidente que o homem pode se rebaixar – e freqüentemente se rebaixa – ao plano animal, em virtude de suas ligações sensoriais com o corpo. Mas sempre que isso acontece o homem abdica temporariamente de sua condição humana e sofre a reação da consciência, o que geralmente lhe acarreta situações íntimas penosas. O instinto de conservação vigia as suas quedas e o ameaça com o perigo de sua precipitação em planos inferiores, onde o seu desajustamento o pune e o força a voltar ao plano de que se afastou para uma experiência temerária, usando indevidamente o seu livre-arbítrio. Por isso Kardec advertiu que não há arrastamentos irresistíveis no plano das tentações. O espírito preguiçoso vê-se então compelido, pelo seu próprio remorso da morte, a sujeitar-se ao círculo vicioso das reencarnações repetitivas. Como o ouvinte do Bolero de Ravel, que depois de repassar o bolero em toca-discos centena de vezes, acabou quebrando em desespero os seus instrumentos, o espírito retorna ao caminho certo que abandonara.

As Filosofias da Existência estabeleceram a diferença entre viver e existir, não só por necessidade de distinção e clareza na abordagem dos problemas humanos, mas também, e principalmente, pela conveniência de se ver cada coisa em seu lugar e em sua função. Enquanto isso, ao mesmo tempo em que se processava essa revolução conceptual no plano filosófico, Kardec desenvolvia suas pesquisas audaciosas sobre a separação real entre o vivente e o existente. Foi essa uma das maiores façanhas psicológicas de todos os tempos, mas que só repercutiu com proveito no meio espírita. Esses trabalhos foram publicados na Revista Espírita. Através da mediunidade dos médiuns de sua confiança (que não se referia à honestidade do médium, mas ao seu grau de sensibilidade mediúnica) ele recebia nas sessões da Sociedade Parisiense as manifestações de espíritos de pessoas vivas. Não empregava o magnetismo nem qualquer espécie de evocação ritual. Verificava no registro das pessoas que se dispunham a servir na experiência aquelas que, segundo o registro, estariam naquele momento em disponibilidade. A seguir consultava o espírito orientador (o controle como Geley designava esse espírito) e este o autorizava a pensar ou não nessa pessoa. Estabelecida a ligação silenciosa do seu pensamento com a pessoa visada, logo esta se manifestava e se identificava, passando a responder pelo médium à inquirição do pesquisador. As verificações posteriores comprovavam a identificação do espírito manifestante, anteriormente desconhecido dos participantes da experiência. Kardec obtinha assim o existente separado do vivente, que naquele momento dormia em sua casa. Até mesmo o trajeto percorrido pelo espírito do vivo para chegar à sede da sociedade, na Passage Santane e os possíveis percalços do caminho, eram levados em consideração. Era assim que, enquanto o famoso teólogo dinamarquês Kierkegaard realizava suas cogitações sobre a vida e a existência, na Dinamarca, Kardec verificava ao vivo, em Paris, a possibilidade natural de exame isolado desses dois aspectos do homem. O que mais importava nessa pesquisa era o conhecimento das condições reais da situação. Claro que havia relação entre os propósitos, os métodos e os objetivos visados pelos dois investigadores. Kierkegaard não era filósofo nem cientista, mas teólogo. Kardec era filósofo, cientista, psicólogo e médico. Kierkegaard não desejava penetrar no campo filosófico, mas dava, sem querer, com suas cogitações, início às Filosofias da Existência. Ele mesmo declarou que não tivera propósitos filosóficos, mas apenas interesse teológico. Kardec objetivava somente descobrir a mecânica, por assim dizer, da relação corpo-espírito, que interessava às suas pesquisas mediúnicas.

O desprezo voltado ao Espiritismo pelos filósofos e cientistas da época, receosos de se meterem no campo perigoso das bruxarias, não permitiu, até hoje, o aparecimento de um trabalho aprofundado sobre essa coincidência à distância na investigação de ambos. Vemos assim o desinteresse com que os problemas fundamentais de uma cultura real do humano, que surgia na segunda metade do nosso século, foram tratados naquela fase.
 
O vivente, aquele que vive simplesmente, entregue às exigências corporais do homem, permanece ainda no plano animal. O existente, pelo contrário, é aquele que afirma o seu existir na vida e luta por transcendê-la. Só esse conta na escala humana, pois os viventes ainda não se integraram nela.
 
O corpo dorme, mas o espírito se liberta e se manifesta através da sensibilidade mediúnica de outra pessoa. Como se produziu a prova científica desse fato, com os métodos objetivos exigentes da Ciência Moderna? Kardec rompeu a barreira da sistemática materialista, mostrando a necessidade de adequação do método à natureza específica do objeto. A metodologia que elaborou, excluído o aparelhamento tecnológico atual, é praticamente a mesma que Rhine, Pratt e Mac Dougal empregaram no desenvolvimento das pesquisas parapsicológicas atuais. A metodologia espírita de pesquisa dos fenômenos paranormais antecipou de muito os métodos da psicologia experimental e aprofundou os seus objetivos, atingindo a sondagem do inconsciente quando Freud ainda freqüentava a escola primária, vestido com a roupagem da inocência.
 
Não mencionamos o problema das antecipações científicas do Espiritismo para nossa vanglória, mas os leigos, em geral, recorrem sempre às novidades atuais como superação do trabalho modelar de Kardec. A bem da verdade histórica e da colocação epistemológica certa da Ciência Espírita, é necessário que tenhamos consciência da anterioridade das descobertas espíritas. Além disso, é justo que se dê o mérito ao seu dono, que se coloquem as fases científicas no seu devido lugar. Os mais atrevidos adversários gratuitos da doutrina, às vezes com a boa intenção de resguardar o patrimônio científico, querem afastar do quadro das ciências a vigorosa e decisiva contribuição dos pioneiros espíritas. Colocar à margem da história das ciências o esforço persistente dos grandes cientistas que comprovaram as descobertas de Kardec, desde meados do século passado até este momento, não representa apenas uma injustiça, mas também uma traição à verdade dos fatos.
 
Esquecer os fundamentos científicos do Espiritismo, as grandes batalhas solitárias de Kardec contra as forças culturais dos dois últimos séculos, tem sido um meio de negar o valor e a influência da doutrina no desenvolvimento científico da atualidade. E com que interesse se faz essa negação, se não o de se manter em vigor o prestígio de instituições arcaicas, irremediavelmente peremptas, em detrimento evidente e interesseiro da evolução espiritual do homem?
 
Nas circunstâncias atuais essa tentativa se torna ridícula, o analfabetismo das massas, apoiado e alimentado pelos sabichões de que falava Richet, esses analfabetos ilustres que falam do que sabem e do que não sabem, favorecem a modorra doirada dos vivos na existência em suas cadeiras acadêmicas, em suas tribunas místicas e em seus púlpitos em decadência. Por tudo isso, a posição dos espíritas, no panorama atual do mundo, não pode ser o de acomodação às conveniências, mas a de luta em favor do esclarecimento dos homens. Os tempos mudam rapidamente e para o espírita convicto não há tempo a perder nesta hora de transição cultural.


 

 

Fonte: J. Herculano Pires - in Evolução Espiritual do Homem - (Na Perspectiva da Doutrina Espírita)
Editora Paidéia Ltda

 



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