A Cultura Espírita, como observou
Humberto Mariotti, filósofo e poeta espírita argentino,
é uma realidade bibliográfica, edificada no plano das
pesquisas e dos estudos. Socialmente se reduzia uma parte mínima
do movimento espírita mundial, pois a maioria dos espíritas
a desconhece. Compreende-se que isso acontece em conseqüência
das campanhas deformadoras e difamatórias das Igrejas e das
Instituições Científicas, especialmente as de
Medicina, contra o Espiritismo. Mas grande parte da culpa cabe aos
próprios espíritas cultos, que, em sua maioria, se mostraram
displicentes, por acomodação indébita ou preguiça
mental. Por outro lado, a vaidade e o pedantismo intelectual de muitos
espíritas os afastaram das pesquisas sobre os mais importantes
aspectos da doutrina, para se entregarem a elucubrações
pessoais gratuitas, dispersivas e não raro absurdas. O desejo
vaidoso de brilhar aos olhos vazios do mundo levou muitos deles a
querer adaptar o Espiritismo às conquistas científicas
modernas, ao invés de mostrarem a subordinação
dessas conquistas ao esquema doutrinário. Outros quiseram atrevidamente
atualizar a doutrina e outros ainda se aventuraram a corrigir Kardec.
Essas atitudes não deram o proveito pessoal que desejavam e
serviram apenas para incentivar as mistificações.
Toda nova cultura nasce da anterior. Das culturas anteriores nasceu
a cultura moderna, carregada de contribuições antigas.
Mas o aceleramento da evolução cultural a partir da
II Guerra Mundial fez eclodir quase de surpresa a Era Tecnológica.
O materialismo atingiu o seu ápice e explodiu para que as entranhas
da matéria revelassem o seu segredo. E esse segredo confirmou
a validade da Cultura Espírita marginalizada no plano bibliográfico.
Começou assim o desabrochar de uma Nova Civilização,
que é a Civilização do Espírito. "A
finalidade da Educação — escreveu Hubert
— é instalar na Terra, pela solidariedade de consciências,
a República dos Espíritos". Essa foi a proclamação
da Nova Era, feita na França de Kardec, na Paris da sua batalha
pelo Espiritismo.
Mas para que uma civilização se desenvolva é
necessária a integração dos homens nos seus princípios
e pressupostos. Uns e outros se encontram nos livros de Kardec, mas
se esses livros não forem realmente estudados, investigados
na intimidade profunda dos textos e transformados em pensamento
vivo na realidade social, a civilização não passará
de uma utopia ou de uma deformação da realidade sonhada.
Por mais frágil e efêmero que seja o homem na sua existência,
é ele que dá vida ao presente e ao futuro, é
ele o demiurgo que modela os mundos. Para o homem espírita
construir a Civilização do Espírito é
necessário que a viva em si mesmo, na sua consciência
e na sua carne, pois é nesta que a relação da
consciência com o mundo se realiza. E para isso não bastam
os livros, é necessário o concurso de todos os meios
de comunicação: a palavra, a imprensa, o rádio,
a televisão, e mais ainda, a prática intensiva e coletiva
dos princípios doutrinários de maneira correta e fiel.
Se o homem espírita de hoje não compreender isso e dormir
sobre os louros literários, a Civilização Espírita
abortará ou será transformada numa simples caricatura
da fórmula proposta, como aconteceu com o Cristianismo. É
disto que os espíritas precisam tomar consciência com
urgência. Ou acordam para a gravidade do problema ou serão
esmagados pelo avanço irrefreável dos acontecimentos
no tempo.
A idéia comodista de que Deus faz e nós desfrutamos
ou suportamos não tem lugar no Espiritismo. Pelo contrário,
neste se sabe que o fazer de Deus no mundo humano se realiza através
dos homens capazes de captar a sua vontade e executá-la. Não
há milagres nem ações mágicas na Natureza,
onde a vontade de Deus se cumpre através dos Espíritos,
desde o controle das formações atômicas até
o crescimento dos vegetais. Dizia Talles de Mileto, o filósofo
vidente, que o mundo está cheio de deuses que trabalham em
toda a Natureza, e deuses, para os gregos, eram espíritos.
Kardec repetiu em outros termos e de maneira mais explícita
e minuciosa essa mesma verdade. No mundo humano os Espíritos
se encarnam, fazem-se homens para modelá-lo. Cada espírito
encarnado trás consigo sua tarefa e a sua responsabilidade
individual e intransferível. O que não cumpre o seu
dever, fracassa. Não há outra alternativa. O fracasso
da maioria dos cristãos resultou na falência quase total
do Cristianismo. O que se salvou foi o pouco que alguns fizeram. E
a partir desse pouco, dois mil anos depois da pregação
do Cristo e do seu exemplo de abnegação total, foi que
Kardec partiu para a arrancada espírita. O exemplo da França
é uma advertência aos brasileiros. A hipnose materialista
absorveu os franceses no imediato e o Espiritismo quase se apagou
de todo nos campos arroteados por Kardec, Denis, Flammarion, Delanne
e tantos outros. A intensa e comovente batalha de Léon Denis,
na França e em toda a Europa, nos congressos espíritas
e espiritualistas de fins do século XIX e primeiro quarto do
nosso século foi contra as infiltrações de doutrinas
estranhas, de espiritualismos rebarbativos, no meio espírita.
Foi gigantesco o esforço do famoso Druida da Lorena, como Conan
Doyle o chamava, para mostrar que o Espiritismo era uma nova concepção
do homem e da vida, que não se podia confundir com as escolas
espiritualistas ancestrais, carregadas de superstições
e princípios individualmente afirmados ou provindos de tradições
longínquas, sem nenhuma base de critério científico.
O mesmo acontece hoje entre nós, sob a complacência de
instituições representativas da doutrina e o apoio fanático
de lideres carismáticos, piegos espirituais e alucinados mentais
a dirigir multidões de cegos.
Todas as tentativas de correção dessa situação
perigosa se chocam com a frieza irresponsável dos que se dizem
responsáveis pelo desenvolvimento doutrinário. E a passividade
da massa espírita, anestesiada pelo sonho da salvação
pessoal, do valor mágico da tolerância bastarda, da crença
ingênua do valor sobrenatural das esmolas pífias (o óbolo
da viúva dado por casais de contas comuns nos bancos), vai
minando em silêncio o legado de Kardec. O medo do pecado que
saí da boca, da pena ou das teclas — enquanto se come
e bebe à farta, semeiam-se migalhas aos pobres e dorme-se na
bem-aventurança das longas digestões — faz desaparecer
do meio espírita o diálogo do passado recente, substituindo
o coro dos debates pelo silêncio místico das bocas-de-siri.
Ninguém fala para não pecar e peca por não falar,
por não espantar pelo menos com um grito as aves daninhas e
agoureiras que destroem a seara.
A imprensa espírita, que devia ser uma labareda, é um
foco de infestação, semeando as mistificações
de Roustaing, Ramatis e outras, ou chovendo no molhado com a repetição
cansativa de velhos e surrados slogans, enquanto as terras secas se
esterilizam abandonadas. O óbolo da viúva não
cai nos cofres do Templo, mas nos desvãos do chão rachado
pela secura maior dos corações, como lembrou Constâncio
Vigil.
À margem dessa imprensa paroquial, feita para alimentar a família,
os jornais que surgem em condições de mostrar ao grande
público a grandeza e o esplendor da Doutrina morrem de inanição,
enquanto jornais mistificadores, preparados com os condimentos da
imprensa sensacionalista e louvaminheira, ou temperados com bocas-de-siri
(quanto mais fechadas, mais gostosas) são mantidos pela renda
de instituições comerciais ou por interesses marginais.
As escolas espíritas marcam passo na estrada comum. Os programas
de rádio são sufocados por adulteradores e substituídos
por improvisações acomodatícias. A televisão
só se abre para sensacionalismos deturpadores. Os recursos
financeiros se são empregados na caderneta de poupança
da caridade visível, que no invisível rende juros e
correções monetárias. As iniciativas editoriais
corajosas - como o lançamento de toda a coleção
da Revista Espírita (*) - morrem
asfixiadas pelo encalhe, ante o desinteresse de um público
apático. Os hospitais Espíritas transformam-se
em organizações comuns, mantidos pelas verbas oficiais
de socorro a doentes que podem carreá-las aos seus cofres,
a antiga e legítima caridade espírita de anos atrás,
sustentada por alguns abnegados que já passaram para o Além,
murcha como flor de guanxuma em pastos ressequidos. Restam apenas,
nessa paisagem desoladora, alguns pequenos oásis sustentados
pelos últimos e pobres abencerragens (**) de uma velha estirpe
desaparecida.
É necessário que se diga tudo isso, que se escreva e
semeie essa verdade dolorosa, para que toque os corações,
na esperança de uma reação que talvez não
se verifique, mas que pelo menos se tenta despertar. Na hora decisiva
da colheita, as geadas da indiferença e as parasitas do comodismo
ameaçam as mínimas esperanças de antigos e cansados
lavradores. Apesar disso, os que ainda resistem não podem abandonar
os seus postos. É necessário lutar, pois o pouco que
se possa salvar poderá ser a garantia de melhores dias. O homem,
as gerações humanas morrem no tempo, mas o espírito,
não. O tempo é o campo de batalha em que os vencidos
tombam para ressuscitar. Quem poderia deter a evolução
do espírito no tempo? A consciência humana amadurece
na temporalidade. A esperança espírita não repousa
na fragilidade humana, mas nas potencialidades do espírito,
que se atualizam no fogo das experiências existenciais. Curta
é a vida, longo é o tempo, e a Verdade intemporal aguarda
a todos no impassível Limiar do Eterno. O homem é incoerência
e paixão, labareda esquiva que se apaga nas cinzas, mas o espírito
é a centelha oculta que nunca se apaga e reacenderá
a chama quantas vezes for necessário, para que a serenidade,
a coerência e o amor o resgatem na duração dos
séculos e dos milênios.
Todas as Civilizações da Terra se desenvolveram, numa
assombrosa sucessão de sombra e luz, para que um dia —
o Dia do Senhor, de que falavam os antigos hebreus — a Civilização
do Espírito se instale no planeta martirizado pelas tropelias
da insensatez humana. Então teremos o Novo Céu e a Nova
Terra da profecia milenar. Os que não se tornarem dignos da
promessa continuarão a esperar e a amadurecer nas estufas dos
mundos inferiores, purgando os resíduos da animalidade. Essa
é a lei inviolável da Antropologia Espírita.
(*) Atualmentea coleção
da Revista Espírita apresenta grande circulação
face ao criterioso valor elucitativo e doutrinário. Conheça
esta coleção - endereço eletrônico:
https://www.ipeak.net/site/conteudo.php?id=164&idioma=1
(**) Indivíduos que se mostram de extrema dedicação
a uma causa; são os derradeiros paladinos de uma idéia.