Wilson Garcia
> Nó de marinheiro
As relações entre o Pacto Áureo, Roustaing,
a mística do “Deus, Cristo e Caridade” e a
última assembleia da Feb que frustrou os planos de Antônio
Cesar Perri de Carvalho de reeleger-se para novo mandato presidencial.
WGarcia, com consultoria jurídica de Milton
Medran
Quem leu os autos do litígio
jurídico entre Luciano dos Anjos e a Federação
Espírita Brasileira (Feb), iniciado em 2003 e concluído
em 2013, há de perguntar se o ardoroso roustainguista estava
no melhor do seu juízo ao publicar, em 2009, um texto em
que se vangloria de ter vencido todas as etapas, até então,
da pendenga jurídica da qual, na verdade, sairia derrotado.
Caso seja positiva a resposta, restará questionar: o que
desejava ele, objetivamente, uma vez que ao dar publicidade ao texto
estava dando um verdadeiro nó de marinheiro no assunto, nó
que só se sustenta enquanto suas quatro pernas estão
presas?
Vamos aos fatos.
Em 2003, o então presidente, Nestor Masotti,
costurava a eliminação do Estatuto da Feb do parágrafo
que a compromete com a difusão e o estudo da obra de Jean
Baptiste Roustaing, aproveitando-se da necessidade de adequação
do Estatuto ao Código Civil Brasileiro. O argumento era de
que a doutrina de Roustaing mais divide do que une os espíritas
e, por consequência, o Conselho Federativo Nacional (CFN).
O parágrafo, único, consta do artigo primeiro e está
assim descrito: “Além das obras básicas a que
se refere o inciso I, o estudo e a difusão compreenderão,
também, a obra de J.-B. Roustaing e outras subsidiárias
e complementares da Doutrina Espírita”.
Tudo indica que Masotti conseguiria seu intento não fosse
a providencial atitude de Luciano dos Anjos que, procurado, concordou
em ser o porta-voz dos adeptos do bastonário francês,
ingressou na justiça e obteve liminar em processo cautelar,
cuja notificação à Feb chegou a tempo de obrigar
a assembleia, já reunida, a retirar da pauta o item correspondente
a Roustaing. Sustentaram Luciano e seus companheiros, para a obtenção
da liminar, sem audiência da parte contrária, ser aquele
item cláusula pétrea, portanto inamovível.
Explica-se: a concessão de uma liminar, adiantando provisoriamente
o atendimento de um pedido presente na ação principal
e sem a instauração do contraditório, é
possível quando o requerente alega duas situações
juridicamente tratadas por estas expressões latinas: a existência
do “fumus boni juris”, ou seja, a fumaça do bom
direito; e do “periculum in mora” (perigo de demora),
hipótese em que o risco de retardamento da decisão
final possa trazer dano de impossível ou difícil reparação.
No caso, o juiz, liminarmente, entendeu estarem presentes esses
dois requisitos e concedeu a medida, que sempre é provisória,
e cuja manutenção irá depender do exame a ser
feito mais profundamente no decorrer da ação.
A partir de então e durante longos 10 anos a questão
rolou nos tribunais até ser concluída em 2013, com
o julgamento de todos os incidentes processuais e do mérito
do pedido. Para Luciano dos Anjos, no entanto, a Feb teria sido
derrotada em todos os recursos interpostos, como se pode ler no
texto que publicou em 2009:
“Durante a tramitação da ação,
a FEB já perdeu quatro vezes: I – Contestou a liminar
concedida que suspendeu os efeitos da estranha assembleia-geral
realizada em 25-10-2003. Concomitantemente, recorreu, em segunda
instância, ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro, através de agravo de instrumento, para cessar
a liminar. Perdeu; 2 – Em resposta à
apelação interposta, resultando provimento em favor
de Luciano dos Anjos, interpôs embargos infringentes no
Tribunal de Justiça. Perdeu; 3 –
Interpôs agravo interno desta decisão. Perdeu;
4 – Interpôs recurso especial cível perante
o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que
foi inadmitido. Perdeu; 5 – Acaba de interpor
agravo de instrumento em recurso especial ao Superior Tribunal
de Justiça, em Brasília, na mais recente tentativa
de reverter a situação. Processo em andamento”.
Em fins de 2013, quando o processo efetivamente
se encerrou, Luciano não se manifestou e em maio de 2014,
dia 3, veio ele a falecer. As perdas que ele atribuiu à Feb
são estranhas, mesmo em se tratando de manifestação
quatro anos antes do encerramento do processo. Vejam-se as peças
por ordem cronológica. Ao que consta, Luciano teria obtido
apenas uma vitória parcial, que lhe valeu sustar provisoriamente
a votação do item na assembleia de 2003 que retirava
Roustaing do Estatuto da Feb. Foi pela medida liminar interposta,
concedida pelo magistrado que a recebeu e entendeu ser-lhe devida.
Todos os recursos processuais interpostos ao longo desse tempo por
Luciano buscaram fazer, sem êxito, com que aquela liminar
fosse mantida. Alegava que a decisão prolatada na ação
principal, e que lhe fora inteiramente desfavorável, não
tinha revogado a liminar prolatada na ação cautelar.
Essa tese foi sucessivamente rejeitada, pois a decisão prolatada
na ação principal termina por fazer com que a ação
cautelar perca o objeto.
Mesmo com esse entendimento claramente exposto nas decisões,
parece que a medida insistentemente repetida pelo autor da ação
acabou prevalecendo não apenas para a ocasião, mas
de forma extensiva, uma vez que, apesar de haver vencido o processo,
a Feb não utilizou, ainda, o direito de alterar quando e
onde desejar o seu Estatuto, pois a decisão final não
reconhece nenhuma cláusula pétrea no referido documento,
senão aquelas que dizem respeito às determinações
do Código Civil Brasileiro. E a alegação de
cláusula pétrea era o principal argumento do processo
movido por Luciano dos Anjos e os recursos que interpôs a
cada decisão do Tribunal contrária aos seus interesses.
O histórico do processo deixa isso bem claro:
- Luciano dos Anjos entrou na justiça com solicitação
de medida cautelar contra a Feb. O objetivo maior era impedir
a realização da assembleia geral, especialmente
a discussão e votação da supressão
da obrigatoriedade do estudo e difusão da obra de Roustaing
sob o argumento de que o item constituía cláusula
pétrea. Dizia Luciano que o artigo 73 do Estatuto limita
a reforma estatutária somente a questões de ordem
administrativa, “vedando, portanto, as de natureza básico-doutrinárias
sob pena de nulidade”.
- A liminar concedida atendeu em parte ao desejo de Luciano, ou
seja, entendeu o magistrado que a assembleia deveria se ater apenas
às modificações exigidas pelo Código
Civil Brasileiro, vedando-lhe tratar da questão Roustaing.
Luciano fez ainda um esforço para estender a liminar à
realização da assembleia como um todo, o que lhe
foi negado.
- Apesar de tentar cancelar a liminar parcial, a Feb não
alcançou seu intento.
-
A manutenção da liminar, que
teria curta duração, como se verá, deu
a Luciano a sensação de êxito no seu intento.
Mesmo assim, não satisfeito, entrou ele com recurso,
alegando “falsidade documental”, entre outros, objetivando
anular os efeitos da assembleia, no que não obteve sucesso.
-
Em suas alegações
na demanda principal, a Feb argumentou: “não existe
motivo a impedir a reforma do estatuto, pois o art. 73 representa
apenas regra de competência a fim de promover a alteração
estatutária. Afirma também que a proposta de reforma
do estatuto não tem como objetivo se afastar das bases
teóricas do espiritismo, pugnando pela improcedência
do pedido do autor”. Com isso, obteve a revogação
da liminar obtida por Luciano dos Anjos lá no início
do feito.
-
Numa nova tentativa frustrada,
Luciano alegou que a Feb havia perdido um prazo processual na
ação principal, o que não foi reconhecido.
-
Em decisão subsequente,
o magistrado declarou formalmente “a perda da eficácia
da liminar”, já que o exame do mérito na
ação principal havia determinado a extinção
daquele processo cautelar. Com essa decisão julgou extinto
aquele feito.
-
Luciano dos Anjos recorre
sob a alegação de que a perda do efeito da liminar
não extingue a ação principal, no que consegue,
provisoriamente, sucesso.
-
Entretanto, nova decisão
em juízo recursal declarou a ação principal
improcedente e a perda do objeto da ação cautelar,
ocasionando outra derrota para Luciano dos Anjos.
-
Luciano entrou com novo recurso,
insistindo na sustentação de que “o julgamento
conjunto da ação cautelar e a correlata ação
principal ofende a autonomia do processo acessório (cautelar),
razão pela qual pugna pelo prosseguimento do processo
cautelar até o trânsito em julgado da ação
principal”.
-
Tal recurso sustenta o seguinte:
no processo principal, Luciano requer a declaração
de nulidade da Assembleia de 25 de outubro de 2003 com base
na afirmação de falsidade documental da sua Ata.
Para ele, houve arbitrariedades do tipo “descumprimento
da medida cautelar, tendo sido votado o seu novo estatuto alterando
o art. 73; omitiu, ainda, diversas intervenções
dos sócios inconformados com as decisões de Nestor
Masotti e, finalmente, alegando que a Ata da Assembleia padece
de falsidade.
-
A Feb, em suas contrarrazões,
nega a alegada falsidade ou que tenha descumprido a liminar,
“afirmando que a alteração estatutária
se limitou a adequar o estatuto aos ditames do Código
Civil”, no que foi acolhida pelo órgão julgador.
Luciano, teve, mais uma vez, uma derrota.
-
Não satisfeito, Luciano
dos Anjos entra com novo recurso, afirmando, entre outros argumentos,
a necessidade de ouvir-se os sócios da Feb em relação
à assembleia, mas a decisão toma em consideração
as próprias palavras de Luciano, em fase anterior, em
que além de não requerer a produção
de provas orais, dispensou-as por entender ser desnecessária
ao caso.
-
Ainda assim, entendeu a decisão
que as manifestações orais durante a assembleia,
não constantes da Ata, visavam tão-somente reforçar
que o parágrafo único do art. 1º não
poderia entrar em discussão em virtude da liminar, o
que de fato não ocorreu, não havendo, portanto,
nenhuma nulidade.
-
Nessa quadra do processo e
já se considerando derrotado em sua demanda, Luciano
dos Anjos usa do artifício de inverter o chamado “ônus
de sucumbência” sob o argumento de que foi a Feb
que deu origem à causa. Ou seja, desejava passar à
Feb as custas do processo, algo que vinha de encontro às
suas afirmações públicas de que não
desejava obter nenhum ganho material com o processo, o que,
em suma, pode ser entendido como não querer causar prejuízo
material à instituição de sua veneração.
-
Luciano dos Anjos interpõe
um agravo de instrumento junto ao Superior Tribunal de Justiça,
em Brasília, buscando reverter as decisões anteriores.
Em decisão de 4 de fevereiro de 2014, o Tribunal negou
provimento ao agravo.
-
Cumpre reproduzir, para
clareza, a decisão prolatada em 11 de setembro de 2013,
favorável à Feb, cuja ementa (síntese do
acórdão) ficou assim: “Apelação
cível. Alteração de estatuto de associação
religiosa. Possibilidade de ausência de disposição
acerca do caráter imutável da norma. Nos 78 artigos
que compõem o estatuto não existe qualquer cláusula
limitadora do poder de reforma, além do comando do art.
73, imposto para adequar-se à norma do art. 19 do Código
Civil de 1916, vigente na época, que estabelecia no capítulo
referente ao registro de pessoas jurídicas, o modo como
seria reformável no tocante tão somente à
administração. Atualmente o dispositivo corresponde
ao artigo 46, incisos III e IV do CC/02. Recurso desprovido”.
Mesmo tendo recorrido a instância superior
em Brasília e, mais uma vez, receber a negativa de acolhimento
do seu recurso, a decisão acima surge como aquela que decreta
o encerramento moral do processo e seu trânsito em julgado,
isto é: Luciano dos Anjos tem a decisão definitiva
e insuscetível de modificação, que coloca por
terra seu argumento de cláusula pétrea para o parágrafo
que aponta para a presença da difusão e estudos da
obra de Roustaing no Estatuto da Feb. Uma vez que isso ficou assentado,
pode a Feb alterar quando e como quiser o seu documento maior, sem
nenhum constrangimento. A questão que fica no ar é
se esse propósito retornará em algum momento e, também,
se essa questão estatutária é de fundamental
importância para o Espiritismo enquanto doutrina.
OS MITOS DO ESTATUTO E OS PAULISTAS NA
FEB
O Estatuto da Feb seria
comum, ou seja, semelhante a qualquer outro não fosse pelos
mitos que se criaram em torno dele, especialmente sobre a questão
Roustaing. Para desfazê-lo o processo de Luciano dos Anjos
contra a instituição acabou colaborando ao proporcionar
um maior acesso ao texto do Estatuto e colocar por terra as fantasias
criadas ao seu derredor, como aquela que tornava obrigatória
a crença na doutrina do advogado francês para acesso
ao quadro associativo. Pode, em algum momento do passado, ter sido
verdadeira a obrigação, mas ela não consta
do Estatuto, como também o comprovam as mudanças ocorridas
na Feb, especialmente a partir da assunção ao cargo
de presidente de Francisco Thiesen, pelas mãos do qual espíritas
não roustainguista ou com dúvidas sobre a crença
tiveram assento no Conselho Superior.
É verdade que a chegada desses indivíduos estranhos
ao contexto febiano, dominado pela ideologia roustainguista, acendeu
a luz vermelha naqueles que perceberam aí um imenso perigo.
O pragmatismo thieseano levou-o a entender a necessidade de ceder
em algum momento para ampliar as bases da Feb, não apenas
via CFN, mas principalmente pelo convencimento de lideranças
expressivas a se tornarem sócios efetivos da instituição,
ao mesmo tempo em que também acendiam a cargos de grande
visibilidade.
Alguns desses líderes galgaram postos chaves, outros ficaram
a meio caminho, mas todos, sem distinção, viram aumentar
o seu cacife político em termos gerais, pelo simples fato
de serem diretores da Feb. Paulo Roberto Pereira da Costa [1],
por exemplo, a quem se atribuía a crença roustainguista,
era egresso da Federação Espírita de São
Paulo, aonde fora vice-presidente e chegou a assumir a presidência
na ausência de Carlos Jordão da Silva. Foi ele dos
primeiros a chegar à Feb pelas mãos de Thiesen. Se
rezava na cartilha de Roustaing, era ao mesmo tempo tido como paulista,
o que certamente lhe valia o selo de desconfiança da parcela
maior dos membros do Conselho Superior.
Outro que chegou cedo, antes até de Paulo Roberto, foi Altivo
Ferreira, que assumiu a condução da revista Reformador.
Também foi levado por Thiesen e, não sendo roustainguista,
acreditava que poderia realizar um trabalho eficiente e ao mesmo
tempo contribuir para a distensão. Sobreviveu aos mandatos
de Thiesen, Juvanir e Nestor, afastando-se por força da idade
e da saúde.
Nestor João Masotti era, pode-se dizer, um político
talhado, como mostrara em seus mandatos presidenciais na Use de
São Paulo, para os quais, pelo menos o primeiro, fora conduzido
no vazio de uma disputa intensa em que o principal candidato –
Eurípedes de Castro, dentista e ex-deputado – falecera
às vésperas do pleito. Nestor sequer era candidato,
mas seu nome surgiu como solução da crise.
Desde então, Nestor tratou de acomodar os ânimos e
distribuir os cargos de forma a contemplar os diversos interesses,
o que lhe permitiu conduzir a Use prezando pela harmonia possível,
mas contando com um secretário de peso, que lhe fora essencial:
Antônio Schiliró, que mais à frente se torna
também presidente da Use.
No âmbito político-ideológico, porém,
Nestor teve de enfrentar dois grandes conflitos e viver dias de
grande conturbação: primeiro, quando pouco tempo depois
de sua posse, o projeto de fusão da Federação
de São Paulo com a Use, há anos gestado pelas duas
instituições ao nível da cúpula, recebe
um golpe final. Em assembleia da Use muito conturbada, onde o assunto
não constava da pauta, mas foi apresentado e votado, o projeto
foi vetado de forma definitiva.
O resultado disso foi a elevação dos ânimos
políticos a um nível máximo. A Feesp passou
a alegar que a Use traiu os acordos que vinham sendo gestados há
anos, acusando Nestor Masotti de fragilidade no comando da Use e
atribuindo-lhe a culpa total pelo fato de deixar que a assembleia,
onde o tema da fusão seria apenas objeto de relatório,
o debatesse e votasse pela sua extinção. Internamente,
Nestor foi alvo da desconfiança dos setores mais radicais,
que temiam pudesse ele mais à frente ceder às pressões
e deixar o projeto da fusão retornar.
Nestor, porém, obedeceu às decisões da referida
assembleia e buscou conciliar os dois lados, sempre, no entanto,
defendendo os direitos da Use. Isso o levou a serenar os ânimos
internos com a acomodação dos diversos interesses,
contando sempre com a credibilidade que Antônio Schiliró
desfrutava, por seus muitos anos de condução da Use
como Secretário Geral.
Outro instante de grande tensão vivido por Masotti foi quando
da decisão da Feesp de, em represália à Use,
aprovar um novo Estatuto em que oficializava sua vontade de desenvolver
ainda mais a sua área federativa, estabelecendo claramente
o confronto. A Use, então, se viu obrigada a responder às
acusações que lhe foram imputadas e a buscar meios
próprios de sobrevivência, uma vez que, até
então, abrigava-se em prédio cedido pela Feesp, tendo
suas principais despesas custeadas por esta.
Essas e outras experiências deram a Nestor uma maior capacidade
de conviver com os diferentes interesses dentro do movimento espírita
brasileiro e facilitaram em muito seus passos futuros.
Na segunda metade dos anos 1980 Nestor vê seu futuro em Brasília,
para onde se transfere. Com a experiência adquirida em São
Paulo, é guindado a diretor da Feb pelo então presidente
Francisco Thiesen. Após integrar várias diretorias,
Nestor ascende ao posto maior em 2001, substituindo Juvanir Borges
de Souza, que comandou a Feb por cerca de 12 anos.
Nestor vai presidir a antiga instituição por vários
mandatos e há quem afirme que sua longa trajetória
ali só foi possível graças à sua capacidade
de dividir o poder entre os diferentes aliados, de modo a manter-se
no cargo. Alguns o criticam exatamente por essa postura, afirmando
que Nestor formou uma espécie de triunvirato, ou seja, cabia-lhe
as funções políticas e de representação,
enquanto que as funções financeiras e administrativas
estavam entregues a dois diretores, os quais possuíam total
liberdade e eram originários do quadro mais conservador do
Conselho Superior.
Na esteira de Nestor, mais um nome de São Paulo chegou à
Feb: Antônio Cesar Perri de Carvalho, que desenvolveu carreira
acadêmica na Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde
fora, inclusive, pró-Reitor e chegou a disputar a reitoria.
Cesar havia ocupado a presidência da Use por dois mandatos,
destacando-se com propostas de modernização da instituição
e, por isso mesmo, tendo de enfrentar a ala mais conservadora que,
em muitas ocasiões, quase inviabilizara o mandato de Nestor.
Após ocupar vários cargos na Feb, Cesar Perri viu-se
guindado ao posto máximo em virtude da grave doença
de que foi acometido o então presidente Nestor Masotti, e
de sua renúncia posterior ao cargo. Era seu vice-presidente
imediato. Concluído o mandato, Cesar Perri é eleito
presidente e prossegue com propostas de abertura da Feb que já
havia iniciado, numa linha de pensamento semelhante à que
empregara na Use.
As gestões de Nestor e Cesar Perri na Use dão uma
mostra significativa do modus operandi de cada um. Em lugar de se
opor à ala conservadora, Nestor sempre preferiu compor para
governar, ou seja, entregava parcelas do poder aos diferentes setores
de interesse. Perri, ao contrário, tinha em mente a ideia
de modernização e nem sempre se importava de enfrentar
os interesses contrários, desde que seu projeto se mostrasse
necessário. Enquanto os conservadores travavam as diversas
ações que julgavam prejudicar o destino da Use, obrigando
Nestor a usar de enorme paciência para não paralisar
tudo, Cesar Perri buscava formas de colocar em funcionamento projetos
que, se levados a votação, encontrariam resistências
muito grandes, podendo fracassar antes de serem executados. Preferia
correr riscos a ficar refém dos conservadores.
Terão sido tais diferenças entre os dois últimos
paulistas presidentes da Feb a razão da longevidade de Nestor
e da brevidade de Cesar Perri no cargo? Seria precipitado afirmar
que sim, pois tudo indica que diversos outros elementos estão
presentes aí. Apesar de seu temperamento conciliador, não
se pode esquecer que Nestor colocara seu cargo em perigo em 2003,
com a tentativa frustrada de tirar Roustaing do Estatuto da Feb.
Mexera ele com algo que poderia ter causado sua destituição
do cargo, mas, ao contrário disso, Nestor permaneceu e se
reelegeu outras vezes.
Segundo se informa, Cesar Perri tinha por objetivo permitir maior
autonomia ao Conselho Federativo Nacional (CFN) que, tradicionalmente,
era mantido e dirigido pelo presidente da Feb com mão de
ferro, amparado no Regimento Interno que lhe dá poderes totais.
Seria pensamento seu deixar que o CFN, na prática, se auto
gerisse, a partir das decisões de seus membros na escolha
dos representantes dos cargos ou na decisão pelos projetos
de interesse da maioria.
Ações desse tipo, se não amparadas em alterações
do Regimento Interno, correm sempre o risco de serem impedidas legalmente,
senão de forma aberta, pelo menos através dos mecanismos
políticos disponíveis. Ante a possibilidade de ver
o CFN fugir do controle da Feb e vir algum dia a se tornar plenamente
independente, é perfeitamente previsível o surgimento
de movimentos contrários a gerar conflitos de difícil
solução.
Por outro lado, consta que Cesar Perri, tão logo se vira
empossado no cargo, iniciara mudanças, implantando um novo
modelo de gestão, o que, sempre que ocorre, implica em redução
de poder que afeta interesses. Então é de se perguntar
se Cesar Perri tinha noção clara e ampla do que essas
ações gerariam no centro nervoso do poder da instituição,
o seu Conselho Superior.
A tradição em curso na Feb, de reeleger seu presidente
indefinidamente, teria levado Cesar Perri a acreditar que, apesar
dos diversos interesses contrariados, a própria força
dos fatos se incumbiria de aplacar os descontentes e respaldar seu
objetivo de continuar na presidência, repetindo o que, de
certa forma, ocorreu na Use? Contaria ele, ainda, com o fato positivo
gerado pelo clima de abertura do CFN, tornando-o mais ágil
e atuante, como fator capaz de desfazer qualquer movimento contrário
à sua permanência?
O fato é que o Conselho Superior da Feb, de forma surpreendente
para Cesar Perri e a maioria dos seus aliados, tomou a decisão
de eleger um outro presidente, colocando por terra sua pretensão.
Pouco tempo antes da eleição surgiram os primeiros
sinais de que algo ocorria nos bastidores e mexia com o clima interno.
Cesar Perri parecia estar sendo alertado de que estava prestes a
perder o poder, diante de uma realidade inexorável: a grande
maioria de seus aliados o queriam, mas estes não tinham voto
no Conselho Superior. O tempo era curto demais para reverter o quadro.
Cesar Perri não percebeu o momento político em ebulição
ou não lhe deu a devida atenção senão
quando já nada mais podia fazer.
Poucos dias antes do pleito pipocaram notícias preocupantes
sobre o andamento do processo eletivo; após a assembleia,
acusações envolvendo questões éticas
sérias foram feitas contra o próprio Conselho da Feb.
O fato é que o poder voltou às mãos dos adeptos
de Roustaing.
Quanto a isto, parece não restar muitas dúvidas. De
repente, um nome, presente há muito tempo no Conselho Superior,
mas desconhecido do próprio movimento espírita, acende
ao poder máximo. Sua primeira entrevista à imprensa
tem duas versões: a que foi publicada e a que de fato deu.
Na primeira faz, fundamentalmente, sua apresentação
pessoal e busca acalmar os ânimos. Mas na parte que não
foi ao ar fala de Roustaing e sua importância para o Espiritismo
na visão dos adeptos do advogado francês.
MUDANÇAS PERIFÉRICAS
E AS RAÍZES DO PODER
O que é pouco para alguns pode ser demasiado
para outros. A recente tentativa frustrada de reeleição
de Cesar Perri à presidência da Feb pode ser, apenas,
a ponta do iceberg que parecia estar afundando, mas que volta a
emergir nos mares gelados da ação roustainguista.
Segundo fontes seguras, pode-se raciocinar em termos de duas possibilidades
para o episódio. A perda de espaço da ideologia roustainguista
parecia acentuar-se nos últimos anos, perda essa que teve
início, de fato, com a estratégia Thiesen de incluir
lideranças de outros estados no corpo diretivo da Feb e sua
certeza de que os ganhos seriam maiores que as perdas. Essa seria
uma das causas da mudança de rumos.
Por outro lado, o episódio da tentativa de retirada de Roustaing
do Estatuto da Feb, em 2003, certamente acendeu a luz vermelha,
podendo ter sido visto como o começo de uma ação
mais incisiva e desastrosa para o futuro dessa ideologia.
Sabe-se que a presidência de Perri alterou a forma como o
comando era exercido na diretoria da Feb ao tempo de Masotti. Perri
teria instituído um tipo de gestão em que o poder
centrado na figura do presidente tem sua condução
rígida e mesmo quando este distribui os cargos, não
deixa de controlar os diversos projetos de cada área. Essa
forma, baseada também em gestão por orçamentos,
significa na prática limitação do poder dos
que estavam acostumados a exercer seus cargos com maior autonomia.
Essa teria sido, e penso que apenas aparentemente, a principal razão
para uma mudança interna e no Conselho Superior.
Aqueles que urdiram o movimento de retomada do poder por parte dos
roustainguistas podem ter agido pelas razões acima, mas principalmente
pelo medo da perda da ideologia, tão centenária quanto
a própria instituição. Se esta ideologia está
na essência das preocupações, pode-se questionar
se ela constitui, na atualidade, em preocupação dominante
e real e se, extinguindo-a do estatuto se estará fazendo
um movimento concreto na direção da mudança
da própria Feb, mudança que seja de fato tão
profunda quanto capaz de permitir que o cenário se altere
na medida da necessidade do movimento, onde autonomia e liberdade
possam de fato ser exercidas pelas federativas e demais setores
ligados ao CFN.
Não se pode encarar a realidade sem um olhar pragmático,
do contrário as ilusões tendem a encobrir a verdade.
A questão Roustaing já teve sua época fecunda
e divisionária, ocasião em que os críticos
dela se batiam contra sua presença por entenderem, com certa
razão, que ela sustentava uma situação negativa,
altamente prejudicial ao progresso do Espiritismo. Pergunta-se:
essa situação se mantém?
Qualquer estudo de ordem cultural há de mostrar que a questão
roustainguista, embora ainda constitua uma mancha na doutrina legada
por Kardec, há muito deixou de ser o fator principal, pois,
não podendo ser contida quando orientava a formação
da cultura febiana, já não representa hoje, por si
mesma, o nó da questão, porque a cultura febiana da
religiosidade exacerbada, da centralização da doutrina
num cristianismo baseado em hábitos antigos que deveriam
ser eliminados se espalhou de tal forma que aquilo que era dominante
intramuros tornou-se dominante no movimento oficial.
Não estamos mais diante de uma ideologia exercida pela Feb
apenas dentro de seus domínios institucionais; é o
movimento como um todo que se deixou contaminar, em nome da paz
e da união encarecida por figuras exponenciais como Bezerra
de Menezes espírito. Se consultado, Herculano Pires denominaria,
com ironia, mas também com acentuado censo crítico,
esse movimento de paz de remanso, águas paradas propícias
à formação do lodo que aos poucos consome todo
o oxigênio da liberdade.
Sob esse ponto de vista, a Feb cedeu e as federativas estaduais
também cederam; a Feb assumiu o risco de sofrer abalos em
sua ideologia central e o movimento espírita como um todo
resolveu colocar a mão na bandeira da paz, desfraldada inteligentemente
pela Feb, sem se incomodar e talvez com certa dose de ingenuidade
de estar agindo em benefício da doutrina. Preocupava-se mais
com as chamadas de atenção do Bezerra de Menezes espírito,
na sua pregação pela unificação. E mesmo
não desejando, fez do processo unificacionista um processo,
também, uniformizador, que ajuda e asfixia ao mesmo tempo.
Boa parte dos que assumiram comando na Feb a partir da gestão
Thiesen não professava e não veio a professar o ideário
de Roustaing; a maioria absoluta dos espíritas brasileiros
sequer conhece o roustainguismo e não o professa. Mas essa
não é mais a questão principal. O que está
na essência da cultura febiana e, aí sim, orientado
pela doutrina de Roustaing, é esse cristianismo embolorado
que se opõe à proposta kardequiana e que reduz o emprego
da razão para as questões da crença. Quando
isso se assenta, o crer por crer retorna dominante e desaloja o
crer por saber, especialmente quando os principais esforços
são direcionados à divulgação da proposta
do homem novo idealizado. O Cristo assumiu o lugar de Jesus, o homem.
Este se dirige à razão, aquele se reveste simbolicamente
de um corpo fluídico.
Assim, sem necessidade de conhecer e assumir intencionalmente o
roustainguismo, o movimento espírita o divulga na forma de
uma cultura subsumida, numa permanente exaltação dos
atributos formais do Cristo em livros, palestras, seminários
e congressos, até mesmo em mensagens nas redes sociais, repetitivas,
padronizadas, enquanto o homem Jesus, que Kardec privilegia, fica
subjugado pela força da massa dos frequentadores obedientes
às lideranças sonhadoras, que ainda esperam pelo paraíso,
como se vê na recente Carta de Santos que a Use publicou.
O episódio da não reeleição de Cesar
Perri à presidência da Feb reacendeu em alguns um questionamento
antigo, em vista da circulação de mensagens pesadas
à atitude dos membros do Conselho Superior da instituição:
as federativas estaduais seriam capazes de dar início a um
processo de enfrentamento da casa de Ismael, via CFN? Segundo as
poucas vozes que se manifestaram, o CFN corre um sério risco
de perder importantes avanços conquistados, especialmente
nos últimos anos da presidência de Cesar Perri. Entre
esses avanços estariam mais poder de decisão e grau
de liberdade maior, que permitiriam ao próprio CFN determinar,
por decisão própria, seu futuro.
Não há sinais de que isso possa ocorrer e se ocorrer
desmentirá a própria história de quase setenta
anos do chamado Pacto Áureo, que não registra nenhum
movimento de tal magnitude, embora fosse mais fortemente contestado
por expressivas lideranças nas primeiras décadas de
sua formalização. Essas lideranças, contudo,
eram poucas e agiam em nome pessoal.
Na última entrevista dada pouco antes de seu desencarne,
o médico Luís Monteiro de Barros, que participou com
Carlos Jordão da Silva das tratativas que levaram à
assinatura do Pacto Áureo, reclama do descumprimento do acordo
feito pelo então presidente da Feb, Wantuil de Freitas. E
o fez de forma enfática, porque já não acreditava
mais na promessa de autonomia do CFN.
As lideranças comprometidas com o Pacto Áureo nunca
foram capazes de enfrentar o comando da Feb, apesar de sabidamente
serem contra muitas das atitudes e interesses de seu presidente.
Nem de forma pública, nem no plano interno. Esperavam candidamente
que a Feb, numa atitude elevada, desse a carta de alforria do CFN,
para que este, por seus membros, definisse a melhor forma de gerir
seu destino.
Wantuil de Freitas e os que o substituíram, contudo, tinham
em mente outra coisa: aumentar o poder da Feb, contornando os conflitos
e apaziguando as ovelhas. Estavam cientes de que era esse poder
que os instrumentalizaria para a construção daquilo
que de fato importava: a cultura febiana, manifesta no dístico
“Deus, Cristo e Caridade”.
A questão agora já não é saber se o
CFN mudará, mas se a cultura do movimento espírita
encontra tempo e razão para também mudar.
Fonte:
http://www.expedienteonline.com.br/no-de-marinheiro
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