Se a história é
a narrativa dos fatos, da vida e das ideias, o livro do cinquentenário
da USE cumpre apenas uma parte desse objetivo.

O livro “USE, cinquenta
anos de unificação”, assinado por Eduardo
Carvalho Monteiro e Natalino D’Olivo tem sua gênese
quando a USE, por seus presidente e diretor, respectivamente, Atílio
Campanini e Antônio César Perri de Carvalho me solicitam
apoio para a escritura de um livro histórico, o qual integraria
as futuras comemorações do cinquentenário de
fundação da instituição.
A ideia, a princípio, pareceu-me viável, mas logo
me recordei dos idos de 1984, quando tomei a iniciativa de propor
à Federação Espírita de São Paulo
um projeto semelhante que foi aprovado por sua diretoria, mas não
saiu do papel por conta das barreiras erguidas pela desconfiança
e falta de apoio de pessoas que na Federação ocupavam,
então, postos chaves na liberação de documentos.
Perdi um ano de trabalho e ainda fui perseguido por alguns diretores
para liberar à Federação documentos que havia
conseguido por esforço, custo e tempo próprio fora
da instituição.
Havia, porém, algumas diferenças substanciais no convite
dos diretores da USE: a iniciativa partiu deles e este ponto é
capital; a USE tinha minha admiração e ali consegui
implantar alguns trabalhos que obtiveram resultados positivos, como
é o caso da transformação do jornal Unificação
em Dirigente Espírita, na gestão de Perri; finalmente,
a história da USE é a história rara da vivência
democrática no meio espírita, servindo ela nesse campo
como modelo para qualquer outra instituição de mesmo
gênero e finalidades em nível nacional.
Mas o tempo exíguo para a realização do trabalho
me preocupou. Depois de alguns dias de reflexão, conversei
com o Eduardo Carvalho Monteiro e propus a ele assumir a condução
do projeto. Eduardo já possuía larga experiência
nesse terreno e estava em melhores condições para
tal. Foi o que de fato ocorreu depois de aceito pela direção
useana.
O tempo conspirava contra. Eduardo, então, envolveu-se integralmente
com o projeto e aceitou a contragosto a colaboração
de Natalino D’Olivo, um bom quadro da USE, mas sem o preparo
para tal cometimento. Por mais de uma vez confessou-me sua contrariedade
com as dificuldades criadas por esse colaborador. E fez questão
de registrar ao final de suas “palavras necessárias”
um elogio ao seu coautor e dizer que “a redação
do texto desta obra é de minha inteira responsabilidade”.
Tinham eles visões opostas e ideia completamente diferente
de como desenvolver o projeto, com a diferença a favor de
Eduardo por ter experiência no assunto.
Eduardo, porém, era daqueles que pescava o peixe e se necessário
arrastava o rio para perto de casa. Seu faro por documentos, sua
capacidade de mergulhar na pesquisa e a energia com que se lançava
ao trabalho diuturno eram garantia de que a obra seria concluída.
O que de fato aconteceu e surpreendeu ao mais otimista dos espectadores.
O livro possui mais de 330 páginas.
Em sua explicação sobre o livro, Eduardo tomou o cuidado
de registrar que a obra produzida em curto espaço de tempo
estava sujeita a imperfeições que poderiam ser superadas
no futuro. Isso é fato. Ou seja, há lacunas inevitáveis
e é possível corrigir muitas delas. E mais, diante
da montanha de documentos que Eduardo recolheu e das dezenas de
depoimentos que obteve, o autor sentou-se em sua cadeira e deixou-se
levar pelas teclas do computador, com um só desejo: registrar
os fatos segundo a melhor costura e a análise mais coerente
que lhe fosse possível.
Eduardo, na condição de escritor (escrevemos em parceria
quatro livros) sempre optou por se ocupar mais do conteúdo
que da forma. Tinha verdadeiro prazer em localizar documentos raros
e ouvir testemunhas oculares, mas não o fazia apenas pela
pesquisa em si, senão porque seu espírito era ávido
de reconhecer e compreender essa intricada rede de fatos que denominamos
história. Via-se compelido a colocar no papel tudo o que
lhe vinha às mãos, na convicção de que
os documentos não lhe pertenciam, mas à sociedade
e ao ser humano, além de julgar a todos de igual importância.
Se isso é elogiável, por um lado, é também
perturbador, por outro, pois se a forma não cuida de explicar-se
e aos fatos, os documentos se perdem no vácuo da não
significação.
Desde o seu primeiro livro – A extraordinária vida
de Jésus Gonçalves – em que o texto final precisou
passar por profunda revisão formal e editorial, até
o livro do cinquentenário da USE lançado em 1997,
Eduardo progrediu muito nos cuidados com a forma final, mas ainda
assim não deixou de sacrificar essa forma em benefício
do conteúdo quando julgou preciso. É o caso do livro
em análise. Por todas as razões expostas.
Eduardo era um escritor emocional, não só por consequência
de sua personalidade, mas porque não tinha receio de tomar
partido e assumir causas alheias se isso lhe parecesse importante
e combinasse com suas ideias. Diz-se que o bom historiador é
aquele que se coloca na devida distância dos acontecimentos
para compreendê-los em sua condição factual.
Mas não deixa de ser historiador aquele cuja distância
dos fatos é quase imperceptível e ainda assim é
capaz de colocar tais acontecimentos à vista dos estudiosos,
mesmo que aplique sua interpretação particular. Ademais,
é preferível ao autor expor sua interpretação
dos fatos que resumir-se a relatá-los, simplesmente. As interpretações
são mais sensíveis à mudança.
É por isso que a história será sempre uma sucessão
contínua de percepções dos historiadores.
No livro do cinquentenário, Eduardo assume por inteiro a
causa da Use e emite conceitos pessoais sobre os fatos, ou seja,
aplica adjetivos que deixam o leitor mais crítico insatisfeito.
Eduardo chega a adotar um ufanismo que bem ressalta sua ligação
emotiva. Esse é um detalhe que fala contra a própria
obra enquanto história da Use, porque expressa pensamentos
que são em si mesmos parciais e defendidos por grupos que
disputam o poder. E neste tipo de comportamento não se consegue
evitar falhas perceptivas e até mesmo injustiças para
com personagens envolvidos.
É curioso que Eduardo o tenha feito sem ter, até que
foi convidado para o projeto do livro, demonstrado maior proximidade
com a USE e sua história. Não que essa história
não possa ou deva ser analisada no contexto em que se deu,
do qual surge como conquista excepcional e ainda mais admirável
se percebido que se vivia um momento político e econômico
conturbado e o país tradicionalmente privilegiava as estruturas
piramidais, com o poder emanado de cima, estruturas que também
marcavam fortemente o movimento espírita de então.
Ao assumir uma ideia e defendê-la sem, contudo, ter vivido
a ambiência da USE, os fatos geradores ou até mesmo
o contexto no qual se deram os acontecimentos, o autor assume o
risco da contradita ao mesmo tempo em que expressa o seu sentimento
ou sua percepção comprometida.
Eduardo optou por escrever o livro como sendo ele próprio
a voz da USE: aquele que a defende e aquele que a elogia. E um historiador
cioso torcerá certamente o nariz também aí.
Essa a origem do posicionamento pelo autor de uma Use que às
vezes beira às raias do sagrado porque gestada com indiscutível
apoio espiritual superior. Não se pode olvidar que o modelo
inspirador para Eduardo é a própria história
da FEB escrita com tintas brilhantes para convencer da sua escolha
por parte da espiritualidade superior. Aplicada essa ideia à
USE, resulta em contradição histórica e em
desnecessidade argumentativa. Ao longo do seu texto, a Eduardo surge
com especial destaque as mensagens assinadas por espíritos
de significativo apoio aos esforços do bem, logo tomadas
como apoio à causa unificacionista empunhada pela USE. As
circunstâncias do aparecimento dessas mensagens são
vistas pelo ângulo pelo qual se olha a realidade, a qual é,
contudo, um conjunto de muitos outros ângulos.
Essa mesma posição será assumida em relação
a outras instituições semelhantes à Use,
em cuja história conhecida o cheiro do sagrado é sentido
por todos os lados.
Ao mesmo tempo e de forma positiva na análise, Eduardo, por
convicção ética, não se permite furtar
à narrativa de acontecimentos e conflitos que marcam profundamente
a existência da Use, acontecimentos que seriam facilmente
ignorados por outros pelo simples desejo de registrar apenas os
fatos agradáveis à ideologia do poder. Apesar disso,
o olhar analítico de Eduardo é sempre o olhar useano,
de dentro e de entre os que estão no poder.
Creio que uma das principais falhas de Eduardo na composição
da história da Use tenha sido a grande confiança depositada
em alguns documentos que, indiscutivelmente, narram acontecimentos
sem o rigor necessário e, pelo contrário, não
escondem o comprometimento com os fatos e o desejo de adorná-los
de forma a passar uma ideia tendente a formar mitos. Tomá-los
por fontes primárias e atribuir-lhes valor de verdade é
correr riscos desnecessários.
Um exemplo claro está logo no início do primeiro capítulo,
que deseja reconstituir os primeiros passos do espiritismo no Brasil.
Ao resumir a criação da FEB, Eduardo toma como orientação
o livro “Esboço Histórico da Federação
Espírita Brasileira”, publicado pela própria
FEB, e o faz apartado do olhar perquiridor indispensável.
E por não tomar cuidado, escreve: “A pesarosa crise
encaminhava a Feb para a extinção, mas um sopro do
Alto guindou à sua presidência, em 3 de agosto de 1895,
o médico e político Adolfo Bezerra de Menezes…”.
As aspas são minhas, a frase é de Eduardo. Não
há sinais indicativos de que fez transcrição,
mas a ideia não tem sua fonte no autor, com certeza. Foi
por ele assumida.
Muitas das narrativas de Eduardo estão centradas nesse tipo
de documento e não são poucas as vezes em que ele
se vale de transcrições literais e as toma como orientação
para sua percepção. É assim que a escritura
do autor e as transcrições se misturam e formam uma
narrativa integrada, constituindo uma só ideia. Daí
por que o livro peca em grande medida pela omissão do contraditório,
da percepção contrária, da ausência daquele
jogo de opiniões diferentes em torno do mesmo acontecimento
em análise. Se por ventura aparece aqui e ali essas opiniões
e percepções contrárias, tão necessárias
para qualquer reflexão mais profunda, elas estão de
certa maneira ordenadas que resultam inevitavelmente em reforço
à opinião ou conclusão do autor.
É interessante registrar também a clara opção
do autor por personalidades que lhe eram muito queridas e pelas
quais tinha grande admiração. Essas personalidades
são tomadas, quase imperceptivelmente por Eduardo, como autoridades
cuja palavra está acima das demais. Nosso querido Pedro de
Camargo, Vinicius, que foi objeto de estudo biográfico por
nós co-assinado, é claramente uma dessas personalidades
que em alguns momentos terá a primazia da decisão
correta, mesmo que enfrentando outras personalidades tão
dignas quanto. Por isso, Eduardo não terá como evitar
a contradição interna de seu texto nesses momentos.
No registro a seguir, não apenas a opinião do autor
sobressai como também ressalta uma percepção
que certamente será contraditada por quem conviveu de perto
com alguns dos citados: “Confrades de gênio difícil
de lidar como Trindade, Milano Neto, Caetano Mero, D’Angelo
Neto, em contraposição à afabilidade e humildade
de Carlos Jordão, Vinícius, Anita Brisa, Aristóteles
Rocha…”. De todos os citados, Eduardo teve contato direto
e breve apenas com Anita Brisa, a quem entrevistou para o livro.
Sobre os demais nada acrescenta que possa orientar sobre o julgamento
que faz de suas personalidades.
Na pressa da escritura, mas muito também pelo estilo de abordagem
escolhido ou assumido, Eduardo analisa superficialmente alguns acontecimentos,
a outros apenas menciona e a alguns mais dá o seu tom pessoal,
que é ao mesmo tempo interpretação e opinião.
Diante de conflitos de grande monta, deixa transparecer que sofre
pressões e dá a entender que algumas delas se originaram
a partir da decisão pessoal de abordar tais conflitos, enquanto
outras parecem pressões auto assumidas, ou seja, a percepção
da repercussão que deverá causar o torna arrojado
ou contido.
O episódio da fusão da USE com a Feesp, cuja gênese
Eduardo localiza no segundo congresso, bem como o da disputa eleitoral
de 1986, que opôs o grupo de Santos ao dos religiosos são
exemplos de fatos que carecem de melhor abordagem seja na forma
narrativa, na interpretativa e dos fatos em si. Personagens importantes
desses acontecimentos precisam e devem ser ouvidos.
Por fim, às características relacionadas some-se o
fato de Eduardo ter deixado o livro em boa medida relatorial, o
que o torna cansativo à leitura e dispersivo quanto à
relação entre muitos dos fatos históricos,
embora permita que os interessados em história possam tomar
das dezenas de documentos ali reproduzidos e ressignificá-los
numa perspectiva mais interpretativa e contextual, ou seja, menos
emotiva.
Conclusão: o livro do cinquentenário da USE, uma instituição
modelar quanto à sua origem democrática (resultou
da decisão de dirigentes de centros espíritas e nesse
particular constitui experiência única e pioneira no
Brasil) possui, entre seus méritos, o fato de reunir documentos
importantes sobre sua história institucional no estado de
São Paulo e no Brasil. Padece, contudo, da necessidade de
resolver seus pontos obscuros e de ampliar a compreensão
de episódios diversos que são, em si mesmos, partes
delicadas, mas necessárias à vida do espiritismo brasileiro.