Em um sistema perverso, como o prevalecente
no planeta de forma geral, falar de justiça, ética
e filosofia de vida são coisas do idealismo utópico,
embora o idealismo utópico ainda alimente mentes e corações
livres das peias dos sistemas. O pragmatismo nos impõe a
ousar nas brechas do perverso sistema, para não deixar morrer
as belas letras do sonho que alimenta a esperança de um futuro
melhor. Lembra-me a insistente conversa de Chico Xavier, nos anos
1970, com o livreiro Stig Roland Ibsen, advertindo-lhe de que era
preciso vender os livros com lucro sob pena de ver sua livraria
as portas da falência. A fala de Chico era extensiva ao espiritismo
brasileiro, especialmente àqueles que exerciam constante
crítica aos valores desses mesmos livros e os comercializavam
a preço de custo, dentro da ideia de torná-los mais
acessíveis aos menos favorecidos socialmente.
Volto, pois, ao discurso da razão
do que está por trás dos atuais congressos ditos espíritas,
que implementam o sentido do espetáculo como forma de alcançar
um grande número de pessoas, enchendo salões e corredores
dos imensos espaços custosos previamente alugados para atrai-las.
É o espetáculo, na sua formulação teórica,
resultante da densa crítica de que a espetacularizacão
esconde uma questão ética de fundamental importância,
que é a justiça social. É ela uma das piores
facetas de um sistema dominante pendular apenas em aparência,
pois que impõe o permanente consumo de bens e serviços
sob a capa da necessidade e do desejo de tornar feliz a estada provisória
do ser no planeta.
Uma vez que não se pode viver
fora do sistema, vamos raciocinar com ele e com as ferramentas que
ele oferece sorridente, com as quais ensina a ser vitorioso na vida,
algo, acredita o sistema, válido para todos, de forma que
o discurso do ‘todos” é o discurso da justiça
social do sistema, ajustado à sua ética particular.
Então, parte-se de uma dúvida já posta: por
que nossos congressos estão modelados na dimensão
do espetáculo? Será por conta do justo desejo de alcançar
o grande público, retirando das pequenas salas dos centros
espíritas o desafio de lograr chegar a ele, uma vez que,
sendo pequenos, estes centros estão incapacitados de atender
ao discurso do espiritismo para as massas?
Veremos que não.
É preciso, em primeiro lugar, verificar que a grande maioria
dos atuais congressos espíritas é patrocinada pelas
federativas estaduais, elas que, não faz muito tempo, eram
contra esse tipo de evento, especialmente no formato em que estão
sendo propostos. O que as fizeram mudar de ideia é uma longa
e pertinente discussão, que deve ser feita em momento especial.
O fato indiscutível é que o primeiro congresso espírita
no Brasil em nível nacional foi realizado em 1939, no Rio
de Janeiro, sem o patrocínio da balançante ideia do
espetáculo, mas foi feito, como os demais 10 congressos que
o seguiram, com o objetivo de exercitar a liberdade de pensamento
e expressão para bem do progresso da doutrina. Mas, então,
o evento sofreu por muitos anos a crítica do poder estabelecido,
entre estes as federativas. Em dado momento da história,
as federativas, à frente a brasileira, deixaram de lado sua
postura e assumiram a realização dos congressos espíritas,
mas não no modelo inicial, senão como forma de controlar
a opinião e ampliar o alcance massivo deles.
Tomemos as ferramentas do sistema
para demonstrar com elas mesmas que a adaptação pelas
federativas ao sistema se dá apenas nos limites dos seus
interesses. Se a ideia da massificação do espiritismo
só pode ser feita pela adoção de estímulos
presentes no sistema, logo a espetacularização se
mostra eficiente às finalidades, porque os diversos fragmentos
sobre os quais a sociedade atual se assenta são muito bem
atendidos. Ou seja, a espetacularização do saber espírita
oferece meios e formas que atendem a massa diversa e fragmentada,
incapaz de acorrer ao espaço do conhecimento com a oferta
única do próprio conhecimento. Com isso, as federativas
se veem justificadas duplamente: em oferecer o espiritismo às
massas e em ter a massa presente no espaço público
que abrem.
Mas do ponto de vista mercadológico,
o que temos? Um eficiente modo de atrair a massa e, ao mesmo tempo
– eis o de se lamentar continuamente – um desvio de
finalidade disfarçado por uma ação que será
elogiada insistentemente pelo público amante do espetáculo.
Qual a finalidade precípua das federativas? A resposta vem
pelo próprio sistema: o público alvo das federativas
são os centros espíritas e a “massa” de
dirigentes que os compõem. Ora, se o sistema mostra como
agir em nível massivo para “vender” seu produto,
o mesmo sistema faz questão de afirmar, enfaticamente, que
todo esforço mercadológico de sucesso parte da clareza
que se precisa ter do público alvo ao qual o produto deve
ser oferecido.
Historicamente, as federativas estaduais,
junto à brasileira, ignoram de modo indisfarçável
seu próprio público, seja negando-lhe o direito de
pensamento e expressão, seja agindo segundo a filosofia do
próprio sistema, que estabelece uma interatividade dialógica
na base de premissas que não coloquem em perigo o seu domínio,
mas que “pareçam” um esforço sério
e honesto de dar voz à sua audiência. Um outro dado
histórico se mostra importante aqui: todas as federativas
aceitas oficialmente, menos uma, surgiram de ações
e interesses individuais e ainda mantêm, salvo exceções,
a mesma estrutura baseada numa organização que confere
o poder do voto a eleitores escolhidos. A única federativa
que teve no seu nascedouro o voto decisivo das casas espíritas
chama-se USE-SP, ela mesma que hoje mostra à saciedade que,
embora sua estrutura original ainda em vigor filosoficamente, promove
na prática desvios de finalidade e do seu público
alvo.
Ora, a eleição da
massa como objetivo no que toca aos congressos e ter a massa como
destinatária do conhecimento espírita faz com que
o desvio de objetivo não seja percebido, mesmo quando se
entende, com clara ignorância dos instrumentos mercadológicos
ou por má fé, que a massa contempla também
as lideranças dos centros espíritas. Cientificamente,
é impossível falar a dois públicos distintos
ao mesmo tempo e o próprio André Luiz, na sua singeleza,
lembra que não se pode ter os pés em duas canoas quando
se lança às águas da vida. O espaço
ideal da conversa com o dirigente espírita não é
o do espetáculo, ao mesmo tempo em que sem diálogo
não há como alcançar minimamente a massa. Ora,
o que menos existe num congresso em que o espetáculo é
o modo de estar junto é o diálogo, pois o que se quer
dar e o que se quer receber não é a obrigação
de pensar, mas o desejo de respostas produzidas e muito bem embaladas
por artistas-palestrantes. E quando, por um deslize imperdoável,
alguém resolve contrariar a tese e cria um momento especial
de diálogo, corre-se o perigo de situações
grotescas, como ocorreu recentemente em Goiânia, envolvendo
a respeitável figura do grande batalhador que é Divaldo
Pereira Franco. Onde não há, permita-me a paródia,
potencialmente disposição para o diálogo, tudo
o que se tem de fato é o monólogo, que mais não
é que o modo de ver particular de alguém. Em Goiânia,
o exíguo momento do diálogo foi organizado na base
do “você pergunta isso, eu interpreto e dirijo a alguém
e esse responde com sua autoridade inquestionável”.
Um disfarce com aparências de diálogo e a crença
de que a autoridade não será questionada. Apesar do
sufrágio pelos aplausos intensos da massa envolta pela emoção
do contexto, as coisas não saíram como planejado,
pois fora do espaço do espetáculo há pessoas
independentes e críticas, prontas a exercer o seu direito
de opinar e expressar.
Em certos lugares do Brasil, temos
congressos organizados por grupos e não federativas, mas
o que se vê é o predomínio da ideia do espetáculo.
Alguns desses grupos, que fugiram da espetacularização,
veem seu espaço cada vez mais reduzido, em vista da redução
constante da verba para sustentar as crescentes despesas. Outros,
que levam a espetacularização aos limites possíveis
se encontram com o caixa cada vez mais cheio, porque os eventos
que promovem têm público garantido e ávido.
Neste ponto, os excessos do orgulho por uma obra que ingenuamente
entendem invejável leva os organizadores a cometerem absurdas
formas de participação, incluindo respeitáveis
pensadores do mundo moral sem a mínima aderência aos
fundamentos espíritas. Não se pejam de lhes pagar
polpudos cachês, pois sabem que a massa não distingue
o conhecimento espírita do não espírita. De
outro lado, os próprios palestrantes espíritas, ressalvadas
as meritórias exceções, acostumaram-se com
a garantia de que não serão sacrificados com despesas
de locomoção e estadia para participar desses congressos
espetáculos e massivos. Todos, de certa maneira, se veem
implicados com as finalidades elegidas pelos organizadores e, não
raras vezes, constrangidos pelo distinto convite que os limita a
repetir discursos que são desejáveis e esperados,
pois, a liberdade oferecida não é ampla o bastante
para discursos críticos do sistema e dos formatos.
As federativas, de modo geral, assumiram-se
como condutoras e serviçais da massa, esse contingente de
pessoas que percorrem diariamente os seus salões e corredores
de sua sede, atendidas com água fluidificada, preces repetidas,
avisos, regras e formalidades. Seu patrimônio cresce a olhos
vistos com doações recebidas de pessoas que partem
da Terra ou de entidades governamentais. Chico Xavier viu-se envolvido
nessas artimanhas do destino e, livremente ou por conselho dos espíritos,
resolveu repassar as doações vultosas às entidades
espíritas. Foi a maneira que encontrou para evitar o desvio
de finalidade. As federativas vivem situação diferente,
talvez movidas pelos traumas da falta de dinheiro do passado; recebem
doações patrimoniais e logo se sentem na obrigação
de cuidar delas, oferecendo-lhes destinação diversa
daquela para a qual foram fundadas. Eis um tipo frequente de desvio
de finalidade que tende a esgotar os seus parcos recursos de mão
e mente de obra.
Enquanto isso…