Espiritualidade e Sociedade



Pedro Camilo de Figueiredo

>   O espiritismo não deve ser utilizado para justificar escolhas partidárias, nem para legitimar candidaturas ou propostas/planos de governo

Artigos, teses e publicações

Pedro Camilo de Figueiredo
>    O espiritismo não deve ser utilizado para justificar escolhas partidárias, nem para legitimar candidaturas ou propostas/planos de governo

 

 

O Brasil está às portas das eleições municipais e o movimento espírita, mais uma vez, vê-se mergulhado na indevida utilização político-partidária do espiritismo.

Sim, é verdade que a doutrina espírita, como qualquer campo do conhecimento humano (lembremos de que espíritos são pessoas sem seus corpos), possui forte conteúdo político, não somente pelo que ressalta, com maior clareza, do estudo das leis morais, terceira parte de *O livro dos espíritos*, como também pelos reflexos ético-morais do paradigma dualista que abraça, ressaltando a primazia do ser imortal (espírito) sobre a parte finita, perecível (corpo). No entanto, é preciso considerar que o olhar e a forma de relação com esse conteúdo de implicações políticas estão sempre condicionados pelos olhos de quem vê, comportando interpretações e vivências que dizem respeito à realidade de cada um, aí consideradas suas conquistas de outras vidas e as experiências da atual.

Parece indevido aprisionar o discurso espírita em um único viés político, sobretudo quando, por detrás dessa pretensão de domínio discursivo, encontram-se interesses partidários. Neste caso, há uma tendência à distorção do conteúdo espírita para fazê-lo caber nesta ou naquela agenda partidária, com o fim claro de capitalizar adeptos para este ou aquele projeto de grupos/coletivos.

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Assim, é natural que os espíritas, enquanto indivíduos no mundo, inclinem-se sobre as mais variadas ideologias políticas, fazendo-o racionalmente ou não, em virtude das simpatias pessoais e dos muitos interesses que atravessam o existir humano. Pretender que os espíritas sejam ou deveriam ser de direita, de esquerda, de centro ou de qualquer outro arranjo possível dentro do polígono pluripartidário é, no mínimo, desprezar a diversidade inerente à própria natureza humana, quando não for algo respaldado por intenções veladas de manipulação e domínio dos discursos.

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No movimento espírita atual, as faces do polígono das ideologias políticas, inclusive dos partidarismos, encontram-se representadas de muitas formas, ora explícita, ora implicitamente. Há tendências à esquerda que abertamente assim se declaram e que têm, ao menos, o mérito da sinceridade: não escondem o que pensam e o que pretendem, promovem eventos presenciais e virtuais com figuras partidárias, apresentam candidaturas ou apoio a candidatos e defendem o discurso da inserção partidária como mote de transformação social, com exclusão de outros olhares e, no caso de algumas vozes, com a demonização de tudo o que fuja do escopo que apresentam.

Também surpreendemos, por outro lado, espíritas à direita, grande parte dos quais apresentam um discurso manifesto de “neutralidade cristã”, adornado por palavras amenas e “linguagem nobre”, e que, nada obstante, promovem ações diretas ou indiretas de apoio a candidatos e projetos políticos, que vão desde o uso de camisetas com fotos de candidatos nas atividades públicas dos centros (palestras, passes, atendimentos fraternos, ações sociais, dentre outros) à declaração (em palestras públicas, em grupos de estudos ou em reuniões de trabalhadores) de que tais ou quais candidatos são “espíritos missionários”, às vezes até alegando indicação espiritual, e que, por isso, merecem ser alçados aos cargos eletivos para que possam materializar “os planos Deus na Terra”.

Entre uns e outros, há não só os diversos matizes de ideias e ideais, como também de posturas. Muitos que se declaram neutros às vezes o fazem para se preservarem das discussões estéreis e ataques intermináveis, embora tenham clareza daquilo em que acreditam e possam manifestá-lo mais intimamente, mas sem sustentar suas ideias em predestinações ou conceitos estritamente espíritas.

Allan Kardec teve oportunidade de dizer, não só no início, mas também no fim da década de 1860, em números diversos da Revista Espírita, que o debate político-partidário não deveria entrar na pauta dos grupos espíritas. Isso não significa que não possuísse suas preferências, suas inclinações, mas que compreendia o quão imprópria era a mistura de interesses, sobretudo em face do uso indevido – abuso – do espiritismo para fins escusos, face à aura mística e mítica que envolve toda e qualquer abordagem daquilo que o vulgo considera como sobrenatural.

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Na atualidade, esse cuidado de Kardec parece esquecido: não só surpreendemos membros do movimento espírita que, candidatando-se a cargos eletivos, apresentam-se como representantes dos interesses do espiritismo [???], como também aqueles que contorcem conceitos, ideias e propostas para justificarem plataformas partidárias de apadrinhados ou “escolhidos” que se pretende promover, sob a “bandeira” da missão divina, da investidura espiritual, da revolução social ou da defesa dos vulneráveis.

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O espiritismo, em sua ligação histórica com o cristianismo e tal como Jesus, é a favor da defesa das pessoas mais vulneráveis sem, contudo, destituir os “mais privilegiados” da sua condição humana. Alterna, por um lado, propostas mais conservadoras e passíveis de diálogo com um liberalismo ideal, encontráveis em ideias veiculadas pelo próprio Kardec e por espíritos como Erasto, mas jamais com o neoliberalismo e toda a sua desconsideração pela vida, sobretudo pela vida humana. Encerra, por outro lado, forte conteúdo de justiça social e mais próximo de uma esquerda ideal, não partidária e ainda não praticada, tão bem sentida por León Denis e encontrável nas críticas presentes nas leis morais, sobretudo nas discussões sobre as leis de liberdade, igualdade e progresso, que abraço com particular interesse.

O espiritismo, no entanto, não precisa de representantes eleitos para “defesa de seus interesses”. Qualquer um que se anuncie como tal estará, no mínimo, movido pela ingenuidade, senão pela má-fé, demonstrando, por uma e outra razão, que não merece ser eleito, por desconhecer a que se prestam os cargos que pretendem ocupar.

O espiritismo não deve ser utilizado para justificar escolhas partidárias, nem para legitimar candidaturas ou propostas/planos de governo. Estimular o contrário será incorrer em grave desvio de finalidade, não só da doutrina em si, como também do movimento espírita, contribuindo ainda mais para a corrupção de valores que se pretende combater, “em nome do bem”, “em nome da paz”, “em nome do Evangelho”.

Vigiemos e oremos, para não cairmos nos “cantos de sereia”. Vigiemos e oremos, também, para não nos convertermos, ainda que “de boa vontade”, em sereias a encantar os ouvidos menos críticos, menos experientes, mais desavisados.

 

 

Pedro Camilo (Salvador/BA)
Pedro Camilo de Figueirêdo é doutorando em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, mestre em Direito Público e professor universitário. Expositor espírita desde os 16 anos, já proferiu palestras e seminários em diversas cidades do Brasil e em Portugal. Entre livros espíritas, jurídicos, antologias poéticas e obras organizadas, já publicou e participou de mais de 30 livros, além de contribuir com artigos para diversos periódicos espíritas. No trabalho como editor, é responsável pelas publicações da Editora Mente Aberta e da Lachâtre. Tem pesquisado, há mais de 20 anos, a vida e a obra da médium Yvonne do Amaral Pereira, sobre quem já publicou 5 (cinco) livros.

 

 

Fonte:
https://ccdpe.org.br/2020/11/26/espiritismo-movimento-espirita-politica-e-eleicoes/

 

 

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