Postado em
11/10/2020 - Atualizado em: 13/10/2020
O espiritismo não
deve ser utilizado para justificar escolhas partidárias,
nem para legitimar candidaturas ou propostas/planos de governo.
O Brasil está às portas
das eleições municipais e o movimento espírita,
mais uma vez, vê-se mergulhado na indevida utilização
político-partidária do espiritismo.
Sim, é verdade que a doutrina espírita, como qualquer
campo do conhecimento humano (lembremos de que espíritos
são pessoas sem seus corpos), possui forte conteúdo
político, não somente pelo que ressalta, com maior
clareza, do estudo das leis morais, terceira parte de *O livro dos
espíritos*, como também pelos reflexos ético-morais
do paradigma dualista que abraça, ressaltando a primazia
do ser imortal (espírito) sobre a parte finita, perecível
(corpo). No entanto, é preciso considerar que o olhar e a
forma de relação com esse conteúdo de implicações
políticas estão sempre condicionados pelos olhos de
quem vê, comportando interpretações e vivências
que dizem respeito à realidade de cada um, aí consideradas
suas conquistas de outras vidas e as experiências da atual.
Parece indevido aprisionar o discurso espírita em um único
viés político, sobretudo quando, por detrás
dessa pretensão de domínio discursivo, encontram-se
interesses partidários. Neste caso, há uma tendência
à distorção do conteúdo espírita
para fazê-lo caber nesta ou naquela agenda partidária,
com o fim claro de capitalizar adeptos para este ou aquele projeto
de grupos/coletivos.
Assim, é natural
que os espíritas, enquanto indivíduos no mundo,
seres-aí, inclinem-se sobre as mais variadas ideologias
políticas, fazendo-o racionalmente ou não, em
virtude das simpatias pessoais e dos muitos interesses que atravessam
o existir humano. Pretender que os espíritas sejam ou
deveriam ser de direita, de esquerda, de centro ou de qualquer
outro arranjo possível dentro do polígono pluripartidário
é, no mínimo, desprezar a diversidade inerente
à própria natureza humana, quando não for
algo respaldado por intenções veladas de manipulação
e domínio dos discursos.
No movimento espírita atual,
as faces do polígono das ideologias políticas, inclusive
dos partidarismos, encontram-se representadas de muitas formas,
ora explícita, ora implicitamente. Há tendências
à esquerda que abertamente assim se declaram e que têm,
ao menos, o mérito da sinceridade: não escondem o
que pensam e o que pretendem, promovem eventos presenciais e virtuais
com figuras partidárias, apresentam candidaturas ou apoio
a candidatos e defendem o discurso da inserção partidária
como mote de transformação social, com exclusão
de outros olhares e, no caso de algumas vozes, com a demonização
de tudo o que fuja do escopo que apresentam.
Também surpreendemos, por
outro lado, espíritas à direita, grande parte dos
quais apresentam um discurso manifesto de “neutralidade cristã”,
adornado por palavras amenas e “linguagem nobre”, e
que, nada obstante, promovem ações diretas ou indiretas
de apoio a candidatos e projetos políticos, que vão
desde o uso de camisetas com fotos de candidatos nas atividades
públicas dos centros (palestras, passes, atendimentos fraternos,
ações sociais, dentre outros) à declaração
(em palestras públicas, em grupos de estudos ou em reuniões
de trabalhadores) de que tais ou quais candidatos são “espíritos
missionários”, às vezes até alegando
indicação espiritual, e que, por isso, merecem ser
alçados aos cargos eletivos para que possam materializar
“os planos Deus na Terra”.
.
Entre uns e outros, há não só os diversos matizes
de ideias e ideais, como também de posturas. Muitos que se
declaram neutros às vezes o fazem para se preservarem das
discussões estéreis e ataques intermináveis,
embora tenham clareza daquilo em que acreditam e possam manifestá-lo
mais intimamente, mas sem sustentar suas ideias em predestinações
ou conceitos estritamente espíritas.
Allan Kardec teve oportunidade de
dizer, não só no início, mas também
no fim da década de 1860, em números diversos da Revista
Espírita, que o debate político-partidário
não deveria entrar na pauta dos grupos espíritas.
Isso não significa que não possuísse suas preferências,
suas inclinações, mas que compreendia o quão
imprópria era a mistura de interesses, sobretudo em face
do uso indevido – abuso – do espiritismo para fins escusos,
face à aura mística e mítica que envolve toda
e qualquer abordagem daquilo que o vulgo considera como sobrenatural.
Na atualidade, esse cuidado
de Kardec parece esquecido: não só surpreendemos
membros do movimento espírita que, candidatando-se a cargos
eletivos, apresentam-se como representantes dos interesses do
espiritismo [???], como também aqueles que contorcem conceitos,
ideias e propostas para justificarem plataformas partidárias
de apadrinhados ou “escolhidos” que se pretende promover,
sob a “bandeira” da missão divina, da investidura
espiritual, da revolução social ou da defesa dos
vulneráveis.
O espiritismo, em sua ligação
histórica com o cristianismo e tal como Jesus, é a
favor da defesa das pessoas mais vulneráveis sem, contudo,
destituir os “mais privilegiados” da sua condição
humana. Alterna, por um lado, propostas mais conservadoras e passíveis
de diálogo com um liberalismo ideal, encontráveis
em ideias veiculadas pelo próprio Kardec e por espíritos
como Erasto, mas jamais com o neoliberalismo e toda a sua desconsideração
pela vida, sobretudo pela vida humana. Encerra, por outro lado,
forte conteúdo de justiça social e mais próximo
de uma esquerda ideal, não partidária e ainda não
praticada, tão bem sentida por León Denis e encontrável
nas críticas presentes nas leis morais, sobretudo nas discussões
sobre as leis de liberdade, igualdade e progresso, que abraço
com particular interesse.
.
O espiritismo, no entanto, não precisa de representantes
eleitos para “defesa de seus interesses”. Qualquer um
que se anuncie como tal estará, no mínimo, movido
pela ingenuidade, senão pela má-fé, demonstrando,
por uma e outra razão, que não merece ser eleito,
por desconhecer a que se prestam os cargos que pretendem ocupar.
O espiritismo não deve ser utilizado para justificar escolhas
partidárias, nem para legitimar candidaturas ou propostas/planos
de governo. Estimular o contrário será incorrer em
grave desvio de finalidade, não só da doutrina em
si, como também do movimento espírita, contribuindo
ainda mais para a corrupção de valores que se pretende
combater, “em nome do bem”, “em nome da paz”,
“em nome do Evangelho”.
Vigiemos e oremos, para não
cairmos nos “cantos de sereia”. Vigiemos e oremos, também,
para não nos convertermos, ainda que “de boa vontade”,
em sereias a encantar os ouvidos menos críticos, menos experientes,
mais desavisados.