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A REPORTAGEM DA BBC BRASIL
No dia 17 de abril de 2024, a BBC
publicou uma interessante matéria, intitulada “A crença
espírita no 'Vale dos Suicidas' que angustia parentes em luto”.
A matéria começa com a experiência de Maria Cecilia
Cencini, que teve um filho vitimado pelo suicídio e que, a
partir daí, foi em busca de informações que lhe
trouxessem explicações e consolo, tendo “esbarrado”
na obra Memórias de um suicida, cuja leitura
não conseguira concluir.
Em linhas gerais, o texto da jornalista Mariana Alvim passa em revista
conceitos e ideias sobre suicídio presentes em O livro
dos espíritos e O céu e o inferno,
de Allan Kardec, demarcando e enfatizando a prática do suicídio
como transgressão grave às leis divinas e a dureza dos
sofrimentos que pode passar quem escolhe esse caminho.
Em seguida, a matéria trata de aspectos do livro Memórias
de um suicida, psicografado pela médium Yvonne do
Amaral Pereira e publicado em 1956, enfatizando o “caráter
bastante excessivo” das descrições sobre um Vale
dos Suicidas e os suplícios ali enfrentados, sempre questionando
a existência e as características dos sofrimentos relatados
na obra.
Tratando da angústia de familiares de suicidas ante a perspectiva
de que seus entes queridos possam estar em sofrimento na vida espiritual,
bem como de aspectos do luto e de como tais informações
podem ter repercussão negativa, Marina Alvim apresenta também
diversos olhares críticos, que partem de lideranças
espíritas e de estudiosos simpatizantes, em contraste com a
opinião de uma liderança espírita que tenta ressaltar
os aspectos positivos não somente da visão espírita
sobre o suicídio, como também da obra de Yvonne Pereira.
No último parágrafo, a jornalista registra, com a fala
de Bruno, irmão de alguém que cometeu suicídio,
aquilo que se apresenta como sua conclusão e principal fio
condutor da matéria:
“Tá certo que [o suicídio]
é uma atitude antinatural. Mas a gente vê que Deus
é misericordioso. Jesus na cruz falou para o ladrão:
'Se se arrependeu de coração, eu te digo hoje, estarás
comigo no paraíso'", diz Bruno. "Então,
essa fala de Jesus é contraditória com essa afirmação
do Vale dos Suicidas. Sempre me pauto por Cristo, as ações
dele no Evangelho, e me pergunto: 'Como ele lidaria com esse assunto
hoje?'"
CRÍTICA E AUTOCRÍTICA
Sim, é verdade que nós,
os espíritas, precisamos olhar para o suicídio e os
suicidas com outros olhos, numa perspectiva mais humana, empática
e acolhedora. No entanto, ao que parece, as críticas que são
apresentadas na reportagem referem-se muito mais a leituras e repetições
equivocadas do que, propriamente, àquilo a que de fato o espiritismo
se propõe: uma doutrina que consola e conforma, que esclarece
e educa.
Primeiro, é necessário lembrar que os escritos de Kardec
sobre a condição dos suicidas no além partem
das informações trazidas pelos próprios espíritos,
seja os responsáveis pela consolidação da teoria
espírita (como é o caso, marcadamente, de O
livro dos espíritos), seja de suicidas que retornaram
para contar como se sentiam (como é o caso de O céu
e o inferno, que apresenta relatos de casos).
De um modo geral, o suicídio
contraria o fluxo natural da vida, e é compreensível
que a interrupção violenta de um fluxo vital acarrete
consequências para o espírito. Essas consequências
são apresentadas em uma teorização que parte,
inclusive, do que dizem os espíritos que passaram por tais
experiências – e essas experiências sempre apontam
para possibilidades, nunca para determinantes incondicionais. Isso
quer dizer que, conquanto todo suicida sempre se defronte com a mesma
realidade (a vida continua, para além da morte do corpo físico,
e os problemas de que tentou fugir, em certa medida, também
permanecem, não sendo possível “ausentar-se”
de si mesmo, mesmo depois de morrer), a natureza, a forma e a intensidade
dessa nova experiência será sempre particular, guardando
relação com o “conjunto da obra”: conhecimentos,
crenças, valores e hábitos de vida, sem falar do momento
em si do suicídio (a condição psicológica
mais ou menos alterada, a presença ou não de transtornos
mentais e afetivos) e suas motivações.
Assim, cada caso sendo um caso, relatos
como os apresentados em O céu e o inferno
são sempre exemplificativos, apontam para possibilidades, para
os registros colhidos da escuta daqueles personagens, jamais significando
fatalidades que alcançarão a toda e qualquer pessoa
que percorra esse caminho, pois sempre será “o seu”
caminho.
O senso comum no meio espírita,
entretanto, contribui para a difusão irrefletida de assertivas
e relatos como se se tratassem de regras fatais e que ignoram as condições
individuais. Disso resulta uma simplificação que leva
a conclusões implacáveis, que replicam crenças
em castigos, punições e sofrimentos intermináveis,
reforçando antigas crenças segundo as quais as pessoas
que cometem suicídio são os piores seres que existem
ou já existiram. Não são!
A OBRA MEMÓRIAS DE UM
SUICIDA
Grande parte da confusão de
ideias e conceitos sobre o suicídio, no meio espírita,
advém de uma leitura apressada e acrítica (e, às
vezes, que critica sem o devido conhecimento de causa) do livro Memórias
de um suicida, que ora é tomado como uma verdade absoluta
e aplicável a todos os casos de suicídio, ora como um
devaneio da médium e do espírito e que, por isso, é
a pura expressão de uma fantasia, não devendo ser levado
a sério.
O livro, psicografado pela médium fluminense
Yvonne do Amaral Pereira e ditado pelo espírito Camilo Castelo
Branco, apresenta as memórias, como o título indica,
de UM suicida, e não o registro do que acontece, em regra,
com TODOS os suicidas. Trata-se, portanto, do relato do quanto aquele
espírito viveu, segundo seu sistema de conhecimentos, crenças,
valores e hábitos.
Além disso, o livro foi escrito
com a feição de um romance, e todo romance, ainda que
baseado em fatos reais, é sempre uma criação
literária que, em vários momentos, sob o influxo do
estilo de seu autor, terá a possibilidade de criar e recriar
os fatos, não somente ao sabor da vontade de seu autor, como
também, e principalmente, conforme sua capacidade de compreensão.
Por isso, tudo o que se descreve é sempre a partir do olhar
de alguém (no caso, do espírito autor), segundo sua
capacidade de assimilação e explicação.
A isso se pode juntar os problemas da transmissão mediúnica
pela psicografia, com todos os percalços da tradução
do pensamento do espírito pelo médium.
O Vale dos Suicidas descrito no livro
nem é uma região de punição criada por
Deus, nem é o único espaço que alguém
que se matou vai ocupar no Além. Trata-se do ambiente que o
espírito Camilo Castelo Branco encontrou, em sua experiência,
e em que surpreendeu outras tantas pessoas que fizeram a mesma opção
pelo suicídio.
Considerando que o meio em que os
espíritos se movimentam reflete as condições
psíquicas de quem o ocupa, as condições dessa
região refletem, consequentemente, o estado psíquico
daqueles espíritos, o que a tornava passível de atrair
outros espíritos em condições vibratórias
semelhantes. Não se trata, pois, de local de castigo determinado
por Deus, mas do reflexo da construção mental e emocional
de seus ocupantes.
As qualificações que
são feitas do suicida partem, principalmente, do sentimento
do espírito em relação a si mesmo, o que guarda
estreita relação com a demonização que
as religiões de seu tempo – marcadamente o catolicismo
– faziam dos suicidas. As caracterizações como
“criminoso”, “réprobo”, “desgraçado”,
“trânsfuga da lei” e assemelhadas expressam esse
sentimento íntimo, fruto de uma educação precária
e de um forte sentimento de culpa internalizado, jamais representando
uma classificação divina para essas pessoas.
As descrições fortes,
pesadas, que são feitas nos dois primeiros capítulos,
contato a partir do qual muitos se desestimulam a prosseguir na leitura
do livro, precisam ser contextualizadas levando-se em conta os seguintes
fatores:
– o livro foi escrito entre
1926 e 1942, sendo publicado em 1956;
– naquela época, os romances eram excessivamente
descritivos, para levar o leitor a formar a ideia mais próxima
possível do que se desejava dizer;
– além disso, não havia qualquer
discussão, no meio acadêmico ou religioso, sobre o trato
humanizado do luto e das pessoas enlutadas;
– por essa época, acreditava-se que era
possível educar pelo medo, o que conduziu a médium e
o espírito a aceitarem a possibilidade de desestimular a prática
do suicídio pelo medo/pavor que pudessem despertar nos possíveis
candidatos;
– o espírito autor, tendo sido um suicida
e “vivido na própria pele” as agruras dessa condição
no Além, tende naturalmente a superlativizar os lances da própria
experiência, o que empresta ao relato uma dimensão excessiva;
– a médium do livro, Yvonne Pereira,
admitia que também fora suicida em outras vidas, o que, inclusive,
marcou sua vida com um estado depressivo que durou mais de 50 anos,
e essa condição também contribuiu para impulsionar
a superlativização dos relatos do autor espiritual.
Todos esses fatores contribuíram
para carregar essa narrativa com um discurso de culpabilização
e punitivismo, embora não seja essa a conclusão a que
se chega ao final do livro.
Assim sendo, não podemos exigir que um livro
que foi escrito há 82 anos e publicado há quase 70 tivesse
os cuidados e as atenções dos dias de hoje, em que tantas
conquistas já foram feitas em torno da temática suicídio
e dos “poréns” e “senões” dos
meandros da mente humana (especialmente dos problemas e desafios do
processo mediúnico).
As críticas precisam ser feitas para
corrigir a compreensão equivocada e os discursos punitivistas,
mas sempre considerando, de forma honesta e serena, os contextos e
as variáveis apresentadas.
A MENSAGEM ESPÍRITA É DE ESPERANÇA!
Ao apresentar a sobrevivência da alma à
morte do corpo como uma realidade passível de comprovação
científica, como apontam, dentre outros, os estudos em torno
de casos sugestivos de reencarnação, de experiências
de quase e de “cartas consoladoras”, o espiritismo dissemina
uma mensagem de esperança às pessoas enlutadas pelo
suicídio de pessoas queridas.
Os escritos de Allan Kardec são elucidativos nesse sentido,
ao mostrarem que, ainda que cometamos erros e que a consciência
de culpa possa pesar em nós, ao despertarmos na realidade espiritual,
sempre seremos acolhidos por espíritos dedicados à nossa
felicidade. Guias espirituais, parentes desencarnados e outros espíritos
com quem tenhamos laços de amor estão sempre de prontidão
para nos auxiliar no “reencontro conosco mesmos” e na
reconstrução dos passos incertos que tenhamos dado,
no passado.
Nesse quesito, embora o livro Memórias de um suicida
seja marcado, pelo senso comum e pelo olhar apressado, como uma obra
que reforça a culpa e o punitivismo, ele aponta para o caminho
oposto.
Quem ultrapassa os dois primeiros capítulos e avança
pela história até o final, surpreende a trajetória
de seu autor espiritual, Camilo Castelo Branco, rumo à descoberta
de que continua “vivo”, apesar de “morto”,
tendo a possibilidade de reconstituir seus caminhos, sob a Misericórdia
Divina.
Memórias de um suicida é, antes de
tudo, o registro de uma história de superação
e esperança. Seu enredo começa com o despertar doloroso
de alguém que comete suicídio, passa pelas descobertas
da vida espiritual, atravessa as experiências de aprendizado
e crescimento desse espírito e culmina com a sua decisão
consciente de reencarnar para, numa nova existência física,
edificar a própria paz.
É graças a isso que, nesses quase 70 anos de publicação,
tem dissuadido muitas pessoas da prática do suicídio,
contribuindo para que reavaliem suas existências, ressignifiquem
as dificuldades que atravessam e decidam-se por continuar, apesar
dos pesares.
Memórias de um suicida também foi uma
das inspirações para a criação, no Brasil,
do Centro de Valorização da Vida (CVV), fundado em 1962
por Flávio Focássio, Jacques Conchon e Valentim Lorenzetti.
No livro Pelos caminhos da mediunidade serena, organizado
por mim e publicado, em 2006, pela Lachâtre, a médium
Yvonne Pereira fala das visitas que recebia de Jacques Conchon e de
como sua obra o influenciou na fundação do CVV.
É nesse sentido que afirmamos que a mensagem espírita,
tanto sobre as pessoas que escolhem o suicídio quanto para
os entes queridos que ficam, é de esperança –
um “esperar com temperança” não só
pelo reencontro, alhures, no além, como também pelas
novas oportunidades com que a Misericórdia Divina sempre nos
acena, mais hoje, mais amanhã.
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