O uso da palavra falada, escrita ou
transformada em imagem deve sempre ser pautado pelo cuidado e pela
responsabilidade com o que se pretende comunicar. Considerando que
todos nós somos, no círculo mais ou menos amplo em que
nos movimentamos, agentes influenciadores de pessoas, esse cuidado
precisa ser sempre observado, pois não sabemos que tipo de
movimento interno podemos gerar naqueles que nos ouvem/leem.
Quando trazemos essa reflexão
para o movimento espírita, entendemos que esse cuidado deve
ser ainda mais redobrado. Ainda que não consideremos o espiritismo
como religião (é o meu caso), a grande maioria dos espíritas
vive o espiritismo numa perspectiva religiosa. Disso resulta um relacionamento,
quase sempre, de obediência a postulados e a líderes
sem reflexão, sem questionamento, sem ponderar que ideias e
pessoas podem falhar – e o fazem com frequência –,
motivo pelo qual o senso crítico (exemplificado e ensinado
por Kardec) deve sempre ser mobilizado.
Assim, o que falamos/escrevemos/transformamos
em imagens em nome do espiritismo e a partir do espiritismo acaba
por ter repercussões profundas no imaginário de quem
assume o espiritismo como religião, e o manejo equivocado de
ideias e conceitos, sobretudo em contextos sociais espinhosos, pode
não só levar à normalização de
posturas antiéticas, como também revelar contradições
com os próprios princípios doutrinários.
Lembro-me de um fato, ocorrido há
cerca de 6 anos, que ilustra isso: um conhecido expositor e escritor
espírita publicou, em sua rede social, um comentário
no mínimo infeliz sobre a notícia de uma pessoa que,
ao saber da prisão de seu político de preferência,
cometeu suicídio. Em sua rede social, o expositor espírita
que, profissionalmente, atua como psicoterapeuta junguiano, compartilhou
a notícia do suicídio do rapaz acompanhada do seguinte
comentário: “Um de menos”.
Passando ao largo das preferências
político-ideológicas (não é disso que
tratamos aqui), precisamos lembrar que o espiritismo nos ensina que
o suicídio, movido pelo que for, é triste equívoco
que conduz o suicida, a família e a sociedade a muita dor e
sofrimento. Ao assumir a imortalidade da alma e a solidariedade entre
todos como princípios doutrinários, o espiritismo nos
mobiliza na prevenção do suicídio e no acolhimento
de quem gira em seu entorno, seja como espírito a ser acolhido,
seja como pessoa encarnada que tenha essa ideação.
O comentário do confrade foi
antiético e antidoutrinário. Festejar o suicídio
de alguém, ainda que tenha pensamento contrário ao nosso,
trai um sabor de vingança e demonstra o quão pouco está
internalizado o princípio da solidariedade que o espiritismo
abraça quando elege Jesus como referência moral. E, para
além disso, pode induzir as pessoas que têm aquele líder
como referência e que guardem um pendor semelhante a darem vazão
ao sentimento de ódio e de vingança que porventura alimentem
dentro de si.
Curiosamente, em O Evangelho segundo
o espiritismo, o capítulo “Amar ao próximo como
a si mesmo” nos conduz a importantes reflexões sobre
o exercício desse amor, por exemplo, junto àqueles que
considerarmos como “criminosos”. Sem adentrar a discussão
sobre a construção social e jurídica dos chamados
“criminosos”, vale a pena recordar parte do que escreveu
o espírito Isabel de França:
Deveis amar os desgraçados,
os criminosos, como criaturas, que são, de Deus, às
quais o perdão e a misericórdia serão concedidos,
se se arrependerem, como também a vós, pelas faltas
que cometeis contra sua Lei. Considerai que sois mais repreensíveis,
mais culpados do que aqueles a quem negardes perdão e comiseração,
pois, as mais das vezes, eles não conhecem Deus como o conheceis,
e muito menos lhes será pedido do que a vós.
Ainda que se trate de um “desgraçado”,
de alguém em equívoco, desejar ou festejar a sua morte
não se compatibiliza com a lei de amor e com a certeza da imortalidade,
o que nos tornaria mais responsáveis do que esses a quem negamos
perdão e compreensão, pois não conhecem as verdades
que supostamente conhecemos.
Devolvendo a palavra a Isabel de França, ainda podemos ler:
A verdadeira caridade não
consiste apenas na esmola que dais, nem, mesmo, nas palavras de
consolação que lhe aditeis. Não, não
é apenas isso o que Deus exige de vós. A caridade
sublime, que Jesus ensinou, também consiste na benevolência
de que useis sempre e em todas as coisas para com o vosso próximo
Não é aí no
exercício da benevolência, talvez muito mais do que na
esmola que damos, onde devemos mobilizar a nossa vontade? Que tipo
de sentimento dormita em nossos corações quando festejamos
ou desejamos a morte de alguém? Será amor ou ódio?
De volta às páginas de O Evangelho segundo o espiritismo,
registremos um pouco mais das lições de Isabel de França:
Deveis, àqueles de quem
falo, o socorro das vossas preces: é a verdadeira caridade.
Não vos cabe dizer de um criminoso: “É um miserável;
deve-se expurgar da sua presença a Terra; muito branda é,
para um ser de tal espécie, a morte que lhe infligem.”
Não, não é assim que vos compete falar. Observai
o vosso modelo: Jesus. Que diria ele, se visse junto de si um desses
desgraçados?
Embora o espírito fale sobre
criminosos, a observação é pertinente para o
exemplo que trouxemos e para qualquer contexto em que reconheçamos
alguém que, segundo nossa interpretação, esteja
em equívoco: diante dele, o que diria Jesus? É ainda
Isabel de França quem responde:
Lamentá-lo-ia; considerá-lo-ia
um doente bem digno de piedade; estender-lhe-ia a mão. Em
realidade, não podeis fazer o mesmo; mas, pelo menos, podeis
orar por ele, assistir-lhe o Espírito durante o tempo que
ainda haja de passar na Terra. Pode ele ser tocado de arrependimento,
se orardes com fé. É tanto vosso próximo, como
o melhor dos homens; sua alma, transviada e revoltada, foi criada,
como a vossa, para se aperfeiçoar; ajudai-o, pois, a sair
do lameiro e orai por ele.
É isso. Jesus não só
lamentaria o equívoco, como também lhe estenderia a
mão. Não desejaria ou festejaria a morte do “pecador”,
mas a extinção do “pecado”, ou seja, do
equívoco, do erro. E se não nos é possível
também estender-lhe a mão, nosso exercício deve
ser o de “orar por ele, assistir-lhe o Espírito durante
o tempo que ainda haja de passar na Terra”, da mesma forma como
devemos esperar que orem por nós aqueles que nos consideram
equivocados.
Redobremos, pois, nossa atenção
no uso da palavra falada, escrita ou transformada em imagem, sobretudo
quando o fazemos em nome ou a partir do espiritismo. Se é verdade
que somos responsáveis pelo que cativamos, há deslizes
que não só nos levam a mobilizar os maus pendores em
nós e nos outros, como também a nos tornar cativos da
onda de consequências a que dermos causa.
Pedro Camilo
(Salvador/BA)
Pedro Camilo de Figueirêdo é
doutorando em Estudos Contemporâneos pela Universidade de
Coimbra, mestre em Direito Público e professor universitário.
Expositor espírita desde os 16 anos, já proferiu palestras
e seminários em diversas cidades do Brasil e em Portugal.
Entre livros espíritas, jurídicos, antologias poéticas
e obras organizadas, já publicou e participou de mais de
30 livros, além de contribuir com artigos para diversos periódicos
espíritas. No trabalho como editor, é responsável
pelas publicações da Editora Mente Aberta e da Lachâtre.
Tem pesquisado, há mais de 20 anos, a vida e a obra da médium
Yvonne do Amaral Pereira, sobre quem já publicou 5 (cinco)
livros.