Uma obra erudita geralmente é avaliada por um crítico
sério após lê-la e relê-la por diversas
vezes, tendo em vista que ele precisa se familiarizar, primeiramente,
com o assunto abordado e com a forma como a abordagem é feita,
para, depois, supridas as eventuais deficiências de conhecimento
sobre o que vai analisar, ele possa fazê-lo da melhor forma
possível.
Ora, todo estudioso espírita já leu e releu O Livro
dos Espíritos uma infinidade de vezes, se não de ponta
a ponta, pelo menos de forma livre, consultando freqüentemente
esta ou aquela questão, as respostas a ela dada pelos Espíritos
e o comentário pertinente colocado pelo Codificador antes
de passar à questão seguinte.
Pois bem, apesar de esta obra basilar da Doutrina Espírita
já ter sido objeto de incontáveis estudos pelos mais
diversos estudiosos de várias partes do mundo, cremos que
a sua Questão Primeira contém um significado que passou
despercebido até hoje para a maioria dos espíritas.
Dizemos isso porque temos ouvido a toda hora oradores e escritores
respeitáveis e cultos referindo-se a Deus como “o Criador”
ou “o Pai Criador”, a despeito de não terem os
Espíritos usado tal designação em sua resposta,
fato este, a meu ver, de uma significância profunda que precisa
ser mais bem entendida.
A pergunta de Kardec foi de imensa sabedoria. Intuído, como
sempre, por Espíritos de grande adiantamento, o Codificador
não criou restrições para a resposta, o que
teria feito se tivesse perguntado “Quem é Deus?“
Em vez disso, para não condicionar a resposta, ele perguntou
“Que é Deus?“.
Notável resultado obteve Kardec com a sua pergunta, pois,
ao responderem os Espíritos que Deus é “a
inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas”,
eles, também, deixaram claro que Deus não era localizável
pelo homem em qualquer escala por ele conhecida hoje ou que venha
a sê-lo no porvir.
O termo “criador”, por outro lado, está associado
em nosso entendimento a uma criatura, um ser que cria alguma coisa.
É assim que os agnósticos se divertem com os crentes
perguntando a eles: “Já que vocês dizem que Deus
criou o Universo, nos digam quem criou Deus”.
O homem primitivo, ainda habitante das cavernas ou de precários
abrigos e vivendo da caça e da coleta, carecia de conhecimento
sobre o porquê das coisas. Desse modo, para ele, em sua religiosidade
simples, tudo o que ele desconhecia, ele julgava ser obra direta
de um deus criador. Para ele, um deus havia criado tudo, fosse concreto
ou abstrato.
Com o avanço da civilização, os homens foram,
pouco a pouco, entendendo os mecanismos da natureza e verificando
que as causas para tais mecanismos eram passíveis de verificação.
As religiões que haviam sido congeladas nas interpretações
primitivas do porquê das coisas resistiram o mais que puderam
ao avanço do conhecimento humano mas este, no fim de contas,
acabou-se libertando das amarras da religião, alçando
o vôo próprio que até hoje teme o contato com
aquela que um dia lhe tolhia os movimentos.
Alguns religiosos, no entanto, com a mente aberta diante do avanço
da ciência, procuravam encontrar nela um nicho onde lhes fosse
possível colocar Deus, como se Deus pudesse ser colocado
em algum lugar restrito. Houve, pois, o tempo em que, diante da
teoria da evolução de Darwin, eles não mais
diziam que Deus tinha feito os animais e as plantas, mas que havia
feito os mundos e a mecânica do universo. Depois, com os avanços
da astronomia e as teorias de formação de estrelas
e planetas, tiveram que restringir Deus a criador das leis que governam
o universo. Mais tarde, veio a teoria do “big-bang”,
colocando-o como o início do universo conhecido e de suas
leis, e Deus foi colocado como o criador do “big-bang”.
Quanto mais avançava a ciência, mais para trás
colocavam o deus “criador”.
Quanta sabedoria, portanto, tiveram os Espíritos na sua resposta!
Causa primeira, em um universo onde todo efeito possui causa,
é um conceito claro. Antes do que é primeiro
não há nada. A causa primeira é a única
causa incausada. Não há necessidade de mudar essa
definição à medida que a ciência evolui.
Ela era válida no século XIX, é válida
hoje, no século XXI e o será para todo sempre. Se
nos perguntarem, portanto “que é Deus?” ou, mesmo,
“quem é Deus?”, saibamos responder como os Espíritos
o fizeram, dizendo apenas: “Deus é a inteligência
suprema, causa primeira de todas as coisas”.