Novo livro busca as origens da violência
humana - Homo Ferox encontra na biologia evolutiva, na psicologia
e na cultura explicações para a brutalidade da nossa
espécie
por Edison Veiga / FSP sobre:
Reinaldo José Lopes
- “Homo Ferox: As Origens da Violência Humana
e o que Fazer para Derrotá-la” (
Não dá para fugir do fato: o ser humano
é um bicho que mata. Não só outros animais,
justificado pela necessidade básica da alimentação.
Ele mata outros seres humanos. Desde sempre. Por muitas razões.
Porque disputa a mesma parceira sexual, porque quer
dominar o mesmo território, porque simplesmente não
suporta o comportamento diferente do outro.
Mas há um marco fundador dessa violência?
Achados arqueológicos apontam para 10 mil anos atrás,
às margens do lago Turkana, entre os atuais Quênia
e Etiópia.
Ali foram encontrados restos mortais em posições
indicadoras de uma atrocidade que resultou em pelo menos dez mortes,
inclusive a de uma mulher grávida. Evidências mostram
que as vítimas foram amarradas antes de executadas, com uma
arma feita com obsidiana, um vidro vulcânico.
![](../../NOT/Img_Nots/img_2021/Origens_violencia_humana_01.jpg)
Para o jornalista Reinaldo José
Lopes, que se debruçou nos últimos três
anos sobre o tema da crueldade perpetrada pelo Homo sapiens para
escrever o recém-lançado “Homo Ferox:
As Origens da Violência Humana e o que Fazer para Derrotá-la”
(editora HarperCollins), essa fotografia preservada pela natureza
retrata algo que sempre ocorreu, desde o advento da espécie.
Com variações cronológicas,
é verdade. “Houve um crescimento da violência
ao longo do tempo, com um ‘meio do caminho’ muito violento.
Mas uma queda vertiginosa a partir da organização
dos Estados”, explica ele, que é colunista da Folha.
Se entre os primeiros grupos de humanos, os tais
caçadores-coletores, os homicídios não eram
tão recorrentes, a partir do ponto em que a agricultura foi
dominada e as pessoas assumiram a posse de territórios, essas
disputas começaram a aumentar.
Pois então passou a haver por que brigar,
afinal. Terra, poder, controle social. As primeiras civilizações
foram criadas, e o efeito colateral foi o aumento exponencial da
violência.
No livro, Lopes mergulha em explicações
biológicas, psicológicas, históricas e culturais
para traçar esse panorama.
“Não é muito certo pensar em
termos evolutivos lineares. O grande tema é esse paradoxo
em vários níveis”, comenta ele.
Afinal, se a criação do Estado moderno,
com suas instituições e as relações
normatizadas entre pessoas e países, funciona como um anteparo
social que, em tese, deve zelar para que crimes não aconteçam,
é também essa estrutura toda que permite a ocorrência
de guerras cada vez mais letais —e nem precisamos pensar nas
possibilidades de armamentos deste milênio, já que
carnificinas históricas foram vistas das conquistas napoleônicas
às duas grandes guerras mundiais do século 20.
Porém, tratando esses momentos bélicos
como exceção, a sociedade contemporânea tende
a ser menos violenta - fruto dessa invenção cultural
que é a própria civilização, com seus
instrumentos jurídicos e princípios éticos
e morais.
No dia a dia, a maior parte das mortes é
resultado das chamadas desinteligências, como qualquer policial
do departamento de homicídios de uma grande cidade está
cansado de saber. São as brigas por causa de futebol ou mesmo
porque um está querendo a mulher do outro.
Sim, na maior parte, são desavenças
masculinas. No livro, Lopes explica bem que isso é um reflexo
do que se chama de má adaptação, uma característica
evolutiva que acaba tendo efeitos nocivos no cotidiano.
Antigamente o Homo sapiens disputava para perpetuar
seus genes. E, biologicamente, o homem tem a capacidade de gerar
muito mais descendentes do que a mulher. Então essas disputas
pela procriação ocorriam com frequência - era
um tempo em que ninguém pensava em perguntar para a donzela
se ela queria ser rifada entre dois agressivos competidores.
“Eu costumo dizer que o problema do mundo
é o homem, e isso é das coisas mais centrais”,
afirma o jornalista.
“A gente evoluiu para essa competição
entre membros do sexo masculino, por prestígio, por posição,
por bens e, em última instância, uma disputa por acesso
sexual. Isso moldou a psicologia humana da violência.”
Contudo, conforme Lopes enfatiza, isso hoje “é
uma mentira”. A monogamia está instituída por
sistemas legais, há métodos anticoncepcionais, ninguém
parece estar disputando quem vai ter a maior prole.
“Um homem com mais filhos hoje não
vai ter mais poder político. Se bem que, no caso do Bolsonaro,
a gente fica um pouco em dúvida”, comenta Lopes.
“Mas os incentivos psicológicos, hormonais
e biológicos que foram instalados no nosso ‘software’
para seguir esse caminho ainda estão lá. É
a má adaptação que se instaurou e essas coisas
continuam acontecendo”, reflete.
Outro aspecto residual é o chamado tribalismo,
a tendência de nos unirmos em grupos com nossos semelhantes.
Como a sociedade abarca esses diversos grupos, os ingredientes para
conflitos estão à mesa.
Essa divisão entre nós e eles já
foi útil em um passado remoto. Questão de sobrevivência.
Hoje, porém, só serve como pólvora para briga
no almoço de domingo — e alimenta ímpetos de
chegar às vias de fato.
“Quando não havia arbitragem estatal
eficaz para conflitos, isso era preciso de alguma maneira. Hoje
há mecanismos muito mais eficazes do que partir para a justiça
com as próprias mãos, mas o instituto continua lá
[no cérebro] e, para domar esse negócio é preciso
muito esforço, educação, sistemas políticos
e de Estado funcionando”, argumenta.
É por isso que, como já comprovado
por diversos estudos científicos comparativos entre sociedades
com legislação mais ou menos permissiva, a liberação
de armas não é uma boa ideia.
“As desinteligências são a principal
causa de violência letal e isso é um dos motivos pelos
quais a ideia de armar a população é uma idiotice
total completa”, afirma Lopes.
Em termos estatísticos, prossegue o autor,
se não é possível alterar a programação
que faz do ser humano alguém propenso a cometer certas imbecilidades,
o melhor é diminuir o acessos a ferramentas que o ajudem
nisso.
“Há uma constante. Mas podemos girar
o botão de intensidade dela de maneiras significativas, dependendo
de como a sociedade está funcionando naquele momento”,
explica.
A boa notícia é que, “Homo Ferox”
demonstra isso, o mundo está menos violento hoje.
Uma explicação é econômica.
Antigamente as guerras valiam mais a pena: a organização
financeira do planeta garantia mais poder a quem detivesse o controle
de regiões onde ouro fosse extraído, por exemplo.
“Confrontos militares significavam mais recursos,
mais escravos, mais riquezas. Eram guerras produtivas”, descreve.
“Valia a pena do ponto de vista econômico fazer guerra.”
Hoje a conta parece não fechar. E talvez não seja
à toa que o presidente americano Joe Biden tenha retirado
suas tropas do Afeganistão e declarado que não pretende
meter o bedelho na questão dos talibãs.
“Consegue-se com muito menos dor de cabeça
se tornar uma potência criando um Vale do Silício em
seu país do que ocupando territórios novos, extraindo
o monopólio de ouro ou de ferro”, compara.
“Pela maneira como a economia mundial está
estruturada hoje, o fator do bolso é o mais alentador, a
longo prazo. Dá uma esperança.”