Quadro "Family Portrait", do holandês
Anthonie Palamedes, pintado em 1635
- Anthonie Palamedes/Royal Museum of Fine Arts Antwerp
por REINALDO JOSÉ LOPES
da Folha de SP
O modelo de relações
familiares imposto pelo cristianismo na Europa Ocidental desde o começo
da Idade Média acabou moldando a psicologia de habitantes da
região e seus descendentes espalhados pelo mundo, afirma um
novo estudo.
Ao insistir que as famílias
fossem formadas por um único casal e seus filhos, vivendo de
forma independente, e ao combater casamentos entre parentes, a Igreja
medieval teria ajudado os europeus a se tornarem mais capazes de cooperar
com estranhos e menos presos a grandes grupos familiares do que a
média da população mundial.
Publicado na edição
desta semana da revista especializada Science, o modelo, desenvolvido
por pesquisadores nos EUA e no Canadá, é uma tentativa
ousada de explicar porque certos aspectos do perfil psicológico
dos moradores de países desenvolvidos são distintos
do que se vê no resto do mundo.
A diferença entre essas populações
e o restante da humanidade é significativa o suficiente para
que os especialistas criassem uma sigla apenas para designá-las.
Trata-se do termo “Weird”, literalmente “esquisito”
em inglês, mas que contém as iniciais de “ocidentais,
educadas, industrializadas, ricas e democráticas”.
Testes psicológicos de laboratório,
que incluem tanto questionários quanto jogos econômicos
e comportamentais, indicam que os membros de populações
ditas “Weird” são mais individualistas, menos conformistas
(ou seja, menos propensas a seguir normas sociais e autoridades sem
questioná-las), confiam mais em estranhos e tendem a favorecer
menos seus parentes do que povos do resto do mundo.
As raízes das diferenças
entre as populações “Weird” e as demais
não estão claras. Postular, por exemplo, que elas surgiram
graças ao aparecimento de instituições democráticas
na Europa e na América do Norte nos últimos 200 anos
poderia ser visto como uma inversão da causa e do efeito, para
alguns especialistas – sem uma tendência pré-existente
a questionar autoridades e cooperar com estranhos em busca de um objetivo
comum, a democracia não teria chegado a surgir, argumentam
eles.
No novo estudo, a equipe liderada
por Joseph Heinrich, do Departamento de Biologia Evolutiva Humana
da Universidade Harvard, realizou uma grande quantidade de análises
estatísticas, cruzando dados sobre o perfil psicológico
e comportamento de populações mundo afora e variáveis
históricas (a influência do Império Romano ou
a ascensão do cristianismo, por exemplo) e geográficas
(temperatura, fertilidade do solo etc.).
Heinrich e companhia partiram do pressuposto
de que certas religiões provavelmente tiveram impacto importante
no aumento da complexidade política e social. Com efeito, sociedades
que formaram Estados e impérios, com cooperação
complexa entre seus membros, quase sempre se baseiam nos chamados
“Deuses Grandes”, entidades divinas vistas como garantidoras
da justiça e da ordem.
No entanto, algumas dessas religiões
com “Deuses Grandes” podem reforçar elos tradicionais
no interior de clãs e tribos, favorecendo o casamento entre
primos de primeiro grau, por exemplo, enquanto outras defendem a chamada
exogamia (uniões entre pessoas sem parentesco claro entre si).
O segundo caso foi justamente o que
aconteceu na Igreja medieval do Ocidente (que deu origem tanto ao
catolicismo quanto ao protestantismo na Europa), afirma o novo estudo.
A partir do século 6º d.C., papas, sínodos (assembleias
de bispos) e outros órgãos da Igreja promulgaram regras
que transformaram cada vez mais a formação de novas
famílias num assunto relativamente individualizado.
Além de combater o concubinato
e a poligamia, típicos de instituições tribais,
a Igreja também proibiu o levirato (no qual o irmão
do marido morto é obrigado a se casar com a viúva) e
instituiu regras de incesto cada vez mais estritas. Chegou a barrar,
por exemplo, casamentos entre primos de sexto grau ou entre “parentes
espirituais” (uniões entre o filho de uma madrinha e
a afilhada dela, por exemplo). As normas eclesiásticas também
costumavam exigir que os recém-casados se mudassem para outra
casa, hábito conhecido como residência neolocal.
“Os dados estatísticos
mostram que, por volta do ano de 1500, já está estabelecido
o que os historiadores chamam de padrão de casamentos europeu,
formado por famílias nucleares monogâmicas. Dados menos
quantitativos sugerem que o mesmo já valia para algumas regiões
europeias séculos antes disso”, disse Heinrich à
Folha.
Ocorre que há uma associação
estatística estreita entre a presença das características
“Weird” e o tempo de presença da Igreja nas diferentes
regiões da Europa, segundo a análise conduzida pelo
grupo. Isso vale tanto para o que se vê no nível dos
países quanto no de regiões geográficas menores
do continente, dentro das fronteiras nacionais de hoje – 440
foram usadas na análise. Ou seja, quanto maior o “tempo
de exposição” às medidas da Igreja, maior
a presença dos traços psicológicos “Weird”.
É claro que a associação,
embora forte, não é perfeita. A correlação
média entre o “efeito cristão” e esses padrões,
calculam os cientistas, é de 0,63. Isso indica que não
se trata do único fator em jogo que levou ao surgimento da
personalidade “Weird” – se fosse, a correlação
seria de 1 (o equivalente a 100%).
Os mecanismos por trás do processo
também não estão totalmente claros. Heinrich
diz que faz sentido imaginar que se trata de um efeito colateral.
Ou seja, a Igreja medieval promulgou suas regras com o objetivo de
evitar incestos e relacionamentos considerados imorais, mas a estrutura
social que surgiu com essas medidas acabou enfraquecendo laços
tribais e elos entre famílias estendidas, o que, indiretamente,
estimulou o individualismo e as conexões sociais entre não
parentes. Em 2020, o pesquisador de Harvard deve publicar um livro
sobre os achados.
Como a Igreja medieval
transformou casamentos -- e a psicologia social também
Defesa de famílias nucleares teria influenciado
como a mente ocidental funciona
1) Se comparados com populações do
resto do mundo, povos da Europa Ocidental e seus descendentes nas
Américas e na Oceania tendem a ter um perfil psicológico
distinto:
- Mais individualistas
- Menos conformistas (resistência a obedecer
tradições e autoridade)
- Confiam mais em estranhos
2) Uma nova pesquisa relaciona essas características
com medidas impostas pela Igreja a partir do começo da Idade
Média:
- Proibição do concubinato e da poligamia
- Tabus de incesto impostos mesmo no caso de primos
de sexto grau e parentes por afinidade (sem relação
de sangue, como cunhados etc.)
- Exigência de que recém-casados fossem
morar em casa diferente da dos pais/sogros etc.
3) Essas exigências teriam criado o modelo de
pequenas famílias nucleares europeias, gerando, como subproduto,
as características típicas de populações
ocidentais
Com efeito, quanto mais longo o tempo de presença
do cristianismo numa região da Europa, maior a correlação
com características psicológicas descritas no item 1.
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