Somente Mateus e Lucas tratam do nascimento de
Jesus
"Livro da origem de Jesus Cristo,
filho de Davi, filho de Abraão": antes de falar de José
e Maria, da estrela de Belém, dos magos e do perverso rei Herodes,
é assim que o evangelista Mateus começa a narrativa
que está na origem do Natal: com a genealogia de Jesus.
Entre os quatro Evangelhos canônicos
("oficiais") da Bíblia cristã, o nascimento
e os primeiros anos de vida de Jesus só são abordados
por mais um evangelista, Lucas. Ele prefere deixar a genealogia do
Nazareno para mais tarde, no capítulo 3, quando Cristo inicia
sua pregação.
Curiosamente, enquanto Mateus faz
o que a gente está acostumado a esperar de uma genealogia -
começa com os ancestrais mais antigos e se aproxima do presente
-, Lucas, um tanto barroco, segue o caminho inverso, principiando
com Jesus e voltando rumo ao passado.
Mas as diferenças são
muito mais profundas e interessantes do que isso. O fato é
que as genealogias, em grande parte, não batem. Nomes e números
de gerações se contradizem. E essa é a pista
perfeita para entender que não estamos diante de registros
históricos —ao menos não da maneira como os entendemos
hoje. Cada um à sua maneira, os evangelistas querem explicar
"quem é Jesus" no sentido mais profundo, e não
apresentar o RG de Cristo ao leitor.
Ambos, é verdade, primam pela
simetria. Mateus estrutura sua genealogia em três grandes blocos
de 14 gerações (42 no total, ou, para ser exato, 41;
parece que o primeiro evangelista omite um nome do último bloco);
Lucas, em 77 gerações. Em ambos os casos, são
múltiplos de 7, um dos "números perfeitos"
da Antiguidade.
A diferença no número
de gerações é parcialmente explicada pelo fato
de que, enquanto Mateus usa Abraão, ancestral do povo de Israel,
como o iniciador da linhagem de Jesus, Lucas remonta a origem de Cristo
até Adão, o primeiro ser humano, e ao próprio
Deus (dizendo que Adão, como Jesus, era "filho de Deus").
Tradicionalmente, a divergência
de perspectivas é explicada pela ênfase dada à
tradição judaica no Evangelho de Mateus: nele, Jesus
seria o novo Moisés, um Messias plena e orgulhosamente israelita.
Lucas, por outro lado, escrevendo para cristãos de origem pagã
(não judaica), enfatiza os elos de seu personagem central com
toda a humanidade, desde a criação do mundo.
Faz sentido, mas Mateus tampouco está
totalmente alheio ao universalismo de Jesus, já que sua genealogia
é a única a citar, como ancestrais de Cristo, três
mulheres - Tamar, Raab e Rute - que não eram judias/israelitas,
mas se uniram a antepassados do rei Davi.
Por falar nele, é a partir
desse monarca que Mateus e Lucas ganham diferenças irreconciliáveis.
Enquanto para o primeiro evangelista Jesus descende de Davi, de seu
sucessor Salomão e de todos os reis que vieram depois deles,
Lucas coloca outro filho de Davi, Natã - nunca coroado - na
linhagem do Nazareno. Na narrativa lucana, ao menos nesse ponto, a
herança do trono de Israel parece importar menos.
(Um parêntese rápido:
não adianta tentar resolver essa incompatibilidade sugerindo
que uma das genealogias é a que desemboca em Maria. Ambas as
sequências de ancestrais chegam a José, visto como pai
adotivo/legal de Jesus, e não à esposa do carpinteiro.)
Como cristão, prefiro enxergar
as diferenças como fontes de enriquecimento teológico,
e não de perplexidade. Jesus é tanto profundamente judeu
quanto universal. Para Lucas, ele nasceu na manjedoura; para Mateus,
teve de fugir de Herodes. Ambas as histórias enfatizam, cada
uma à sua maneira, a identificação da criança
com os menores entre nós: o poder de Deus que se revela na
fraqueza e recusa toda dominação e toda violência.
Feliz Natal a todos!
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