por Reinaldo José Lopes
reportagem Folha de SP
Após o nascimento de Jesus, ele e sua família
foram visitados por pastores de Belém ou pelos Magos vindos
do Oriente? Quando ele ainda era bebê, José e Maria fugiram
às pressas para o Egito para salvá-lo do temível
rei Herodes ou voltaram sossegadamente para Nazaré?
Leitores casuais dos Evangelhos não costumam prestar atenção
nessas incongruências ou as combinam numa única grande
narrativa informal (primeiro chegaram os pastores e depois os Magos,
por exemplo).
Mas a maioria dos historiadores atuais concorda que tais divergências
refletem diferentes retratos de Jesus nas tradições
cristãs primitivas.
MEMÓRIAS CRIATIVAS
Alguns exemplos de como a tradição cristã recriou
a história de Jesus



Para o americano Bart Denton Ehrman, professor de
estudos religiosos da Universidade da Carolina do Norte em Chapel
Hill, as diferenças indicam que as memórias originais
a respeito de Jesus passaram por inúmeras transformações
quando ainda não passavam de tradição oral, antes
de serem registradas nos livros que hoje compõem o Novo Testamento.
As mutações complexas dessas primeiras memórias
cristãs são o tema do livro mais recente de Ehrman,
"Jesus Before the Gospels" ("Jesus Antes dos Evangelhos").
Além de analisar os textos bíblicos em busca de pistas
sobre sua "pré-história", o pesquisador propõe
um interessante diálogo com as diferentes ciências que
estudam a memória humana, em especial a psicologia e a etnologia
(normalmente estuda a cultura de populações tradicionais
não urbanizadas).
Em resumo, Ehrman busca responder duas perguntas: dá para confiar
na memória humana? E quanto à memória de povos
que se valem mais da tradição oral: ela é melhor
do que a nossa?
As respostas curtas são, respectivamente, "mais ou menos"
e um sonoro "não".
É importante deixar claro por que o historiador decidiu investigar
esses temas. Ehrman lembra que o consenso entre os pesquisadores é
que os relatos bíblicos sobre a vida de Jesus – Evangelhos
de Mateus, Marcos, Lucas e João – foram escritos entre
40 anos e 60 anos após a morte de Cristo. As cartas do apóstolo
Paulo são um pouco mais recentes – duas a três
décadas depois da crucificação.
Isso significa que as informações sobre a vida e os
ensinamentos de Cristo passaram por um longo período de transmissão
oral.
Existe a ideia popular de que grupos que dependem da oralidade para
transmitir suas tradições sagradas possuem uma memória
mais treinada e fidedigna do que a de quem depende da escrita. Esse
mito não corresponde aos fatos, mostra Ehrman.
Estudos em diferentes locais e sociedades mostram que as tradições
mudam o tempo todo, em intervalos relativamente curtos, dependendo
de quem as está recontando ou até quando a mesma pessoa
a relata em dias diferentes.
Também parece ser muito fácil criar memórias
"culturais" de um evento impactante. Em 1992, por exemplo,
um avião bateu num prédio perto de Amsterdã.
Dez meses depois, psicólogos holandeses perguntaram a 200 voluntários
se eles haviam visto o vídeo do acidente. Mais da metade disse
que sim. Detalhe: esse vídeo nunca existiu.
Outros estudos também mostram que até testemunhas oculares
de um evento raramente o recordam com precisão. O mais comum
é criarem uma memória com lacunas e elementos distorcidos.
RECRIANDO O MESTRE
Para Ehrman, esses erros naturais da memória
humana explicam parte das discrepâncias entre os relatos presentes
nos Evangelhos.
Outras diferenças, no entanto, podem ser creditadas
à parte criativa do funcionamento da memória.
Isso têm a ver com outra característica
central das lembranças humanas: elas também servem para
dar sentido ao presente. No caso de Jesus, as diferentes comunidades
cristãs usaram as memórias do Mestre para enfrentar
dilemas de seu presente, e com isso as moldaram de formas peculiares.
Isso ajuda a entender por que o Evangelho de Mateus
mostra um Jesus preocupado com os detalhes da legislação
religiosa judaica (o evangelista provavelmente vivia numa comunidade
de judeus convertidos ao cristianismo), enquanto o apóstolo
Paulo dá detalhes de morte de Cristo, mas praticamente não
fala de sua vida (para ele, o mais importante era a salvação
trazida pelo sacrifício na cruz).
Não é fácil reconstruir um Jesus
"puramente histórico" a partir dessas visões.
Mas elas são tão legítimas quanto qualquer interpretação
de outro personagem histórico cujo objetivo é torná-lo
relevante para o presente.
JESUS BEFORE THE GOSPELS
AUTOR Bart D. Ehrman
EDITORA HarperOne
QUANTO R$ 41,39 (livro eletrônico); 341 págs.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2016/12/1844229-memorias-reais-e-distorcidas-deram-origem-aos-evangelhos.shtml
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