REINALDO JOSÉ LOPES
por Folha de São Paulo
A riqueza de detalhes e o ritmo de novela da
narrativa exigem boa dose de criatividade
Que o leitor me perdoe pela cabeça de católico,
mas para este escriba a tentação de abordar temas bíblicos
na Semana Santa é quase impossível de vencer. Eis a
razão pela qual gostaria de aproveitar o espaço, desta
vez, para uma brevíssima análise histórica de
"The Chosen" ("Os Escolhidos"), a popular série
de streaming americana que está recontando a trajetória
de Jesus de Nazaré e seus apóstolos. Por enquanto, estamos
na quarta
temporada (de um total projetado de sete).
A riqueza de detalhes e o ritmo de novela da narrativa
exigem boa dose de criatividade, em especial no que diz respeito aos
detalhes da personalidade e da história pregressa dos discípulos
do Nazareno —coisas a respeito das quais os Evangelhos do Novo
Testamento, em geral, silenciam. Os textos canônicos dizem,
por exemplo, que Pedro tinha uma sogra (ou seja, era ou tinha sido
casado) e que ela foi curada por Jesus, mas não fazemos a menor
ideia de como era a relação dele com a esposa ou mesmo
o nome dela.

Outro ponto interessante a destacar
é que, ao tentar criar uma trama única a partir dos
quatro Evangelhos, cada um dos quais com sua própria história
e perspectiva sobre Cristo, "The
Chosen" retoma uma tradição cristã
muito antiga, cujo representante mais famoso leva o sonoro nome de
"Diatessáron" (algo como "a partir de quatro"
em grego). Composta por volta do ano 170 d.C. por Taciano, um erudito
cristão da Assíria (atual norte do Iraque, grosso modo),
a obra tenta eliminar personagens aparentemente duplicados e juntar
os acontecimentos citados por Mateus, Marcos, Lucas e João
numa ordem considerada lógica. (Na maioria das igrejas cristãs,
a ideia acabou não pegando, e Taciano chegou até a ser
considerado suspeito de heresia.)
Na aparência dos personagens,
a série traz uma bem-vinda ruptura diante da velha mania de
Hollywood de retratar os habitantes da Judeia e da Galileia como americanos
ou europeus de olhos azuis. Jonathan Roumie, intérprete de
Jesus e filho de um egípcio de origem síria e uma irlandesa,
muito provavelmente não ficaria deslocado na Nazaré
do ano 30 d.C. Um pouco mais dúbia historicamente é
a presença de atores negros e de origem indiana, mas sabemos
que o alcance "globalizado" do judaísmo é
um fenômeno muito antigo, bem como as conexões de longa
distância do Império Romano (moedas de Roma já
foram achadas até no Vietnã, por exemplo).
Curiosamente, porém, talvez
o grande tropeço das primeiras temporadas tenha a ver justamente
com os romanos e com o papel do vilão Quintus (Brandon Potter).
Pouca gente sabe que, como habitante da Galileia, Jesus não
cresceu sob ocupação romana direta. A terra da família
de Cristo tinha seu próprio governante independente de origem
judaica, Herodes Antipas (20 a.C.-39 d.C.).
A situação era diferente
na Judeia e sua capital, Jerusalém, essas sim ocupadas por
governadores romanos, como o célebre Pilatos.
Na Galileia, porém, os soldados que Jesus e seus discípulos
encontravam podiam muito bem não ter nada a ver diretamente
com Roma, sendo mercenários de regiões vizinhas, como
a Síria, ou até de lugares mais distantes (Herodes,
o Grande, pai de Herodes Antipas, tinha guarda-costas gauleses, por
exemplo —"bárbaros" vindos da atual França).
Quanto ao apóstolo Mateus,
um publicano ou cobrador de impostos, faz menos sentido imaginá-lo
com soldados romanos em seu cangote do que como funcionário
de uma "empresa terceirizada" cobrando as dívidas
de alguém com um banco. Era basicamente assim que funcionava
a cobrança de impostos naquele contexto - havia um valor exigido
por Roma, e o resto do dinheiro ficava nas mãos dos "empresários"
que tinham conseguido aquela concessão. Era, óbvio,
a receita perfeita para cenas de corrupção e extorsão.
Um último ponto: apesar das
incertezas históricas que cercam os Evangelhos, faz bastante
sentido imaginar que a pregação de Jesus e suas parábolas
adotavam uma linguagem simples e direta, que dialogava diretamente
com o cotidiano de seus ouvintes. Quanto a isso, "The Chosen"
acerta em cheio.
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