Luiz
Signates *
> A Fraternidade Substituída
Luiz Signates é jornalista, pesquisador
e professor adjunto da Faculdade de Comunicação e
Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialista
em Políticas Públicas pela UFG, Mestre em Comunicações
pela UnB e Doutor em Ciências da Comunicação
pela ECA/USP.
É coordenador do Núcleo de Pesquisas
em Comunicação e Política - NPCP/UFG/CNPq,
do Curso de Marketing Político da UFG e do curso de Publicidade
e Propaganda da Faculdade Cambury, de Goiânia. Em movimentos
sociais, atua hoje como presidente do Instituto de Comunicação
Social Espírita - ÍCONE e da Fundação
de Rádio e Televisão Educativa e Cultural de Goiás
– FRTVE; é Diretor de Política Nacional de Comunicação
da Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo
- ABRADE.
"Os agrupamentos
espiritistas necessitam entender que o seu aparelhamento não
pode ser análogo ao das associações propriamente
humanas. Um grêmio espírita-cristão deve
ter, mais que tudo, a característica familiar, onde o
amor e a simplicidade figurem na manifestação
de todos os sentimentos"
Emmanuel
O Consolador, questão 363
Os processos de institucionalização
da vida são uma das mais fortes características do chamado
período moderno da história ocidental e têm sido
um dos principais objetos dos estudos contemporâneos de sociologia.
Tais processos, dentro desse período histórico, tiveram
como característica essencial desenvolver sistemas institucionais
vinculados a uma racionalidade do tipo instrumental, isto é,
aquela cuja relação as pessoas é mediada pelo
interesse ou pelo dinheiro. Esse tipo de relacionamento atua quase
sempre substituindo os processos de entendimento, cuja característica
básica é operar pela via do diálogo ou da identidade
mútua.
Dois amigos, por exemplo, relacionam-se entre si por laços
de reciprocidade, mesmo pelo simples prazer de estar juntos. Por outro
lado, dois negociantes vinculam-se um ao outro se e enquanto existem
possibilidades de lucro para si mesmos dentro da relação.
A diferença fundamental entre ambos os exemplos de relacionamento
está nos processoas de mediação, que no primeiro
caso, são o afeto e o entendimento e, no último, o dinheiro
e o interesse. O fato de homens de negócio não terem
de se tornar necessariamente amigos significa claramente que o mecanismo
de coordenação da fraternidade tornou-se dispensável
para que houvesse a convivência entre eles, pois foi substituído
pelo mecanismo da instrumentalização.
Chamamos a atenção para este assunto, porque o Espiritismo
vive atualmente um período histórico caracterizado por
um intenso processo de institucionalização e sistematização
de suas práticas. Já quase inexistem os pequenos grupos
familiares, formados por pessoas simples de vizinhanças humildes,
ou as agremiações improvisadas em galpões e casa
de fazenda. O centro espírita acompanhou o processo de urbanização
da população brasileira e, hoje em dia, se estrutura
dentro de uma lógica empresarial, com seus planejamentos estratégicos,
políticas financeiras e de recursos humanos, assessorias jurídicas
e departamentarização de atividades, as quais se tornam
cada vez mais ocupadas por profissionais contratados ou especialistas.
Não consideramos de todo ruim esse movimento, até porque
ele demonstra a inserção do Espiritismo na sociedade,
mimetizando o período histórico correspondente. Entretanto,
é preciso ter cuidado para que a trajetória da institucionalização
não esqueça o Espiritismo, no meio do caminho, como
parece ter ocorrido com a Igreja Católica, nos primeiros séculos,
que, ao se estruturar materialmente, acabou deixando o cristianismo
primitivo de lado.
E isso o dizemos sem qualquer preocupação quanto a uma
hipotética "pureza doutrinária", a qual costuma
estar vinculada a procedimentos anti-fraternos de censura e fiscalização.
O alerta que procuramos fazer diz respeito ao grande risco embutido
no processo de institucionalização do Espiritismo: o
de que as estruturas e sistemas organizados venham a substituir a
fraternidade. Tal substituição pode ocorrer de duas
maneiras: dispensando a fraternidade existente ou criando na vida
interna da instituição uma aparência de fraternidade,
mascarada nos demonstrativos de lucros e de eficácia. Os quadros
descrevendo a quantidade de pessoas atendidas, os valores aplicados
(normalmente subsidiados pelos governos) e a grande organização
da instituição podem significar espiritualmente muito
pouca coisa, se a casa espírita se tornar uma mera empresa.
Ora, centro espírita bom é aquele dentro do qual as
pessoas se amam, se compreendem, se perdoam e se toleram. É
aquele onde inexistem processos de exclusão e onde as direções
compartilham responsabilidades com todos, num processo em que o diálogo
e a fraternidade jamais são substituídos por resoluções
formais e, ainda assim, resolvam todos os problemas, sem exceção
de um só. É, enfim, uma comunidade dentro da qual os
beneficiários não são distinguidos dos benfeitores,
seja pela aparência física, seja pelo tratamento que
recebem, seja pelas práticas que executam.
O centro espírita, portanto não pode simplesmente se
basear em modelos sistemáticos de produtividade, ou tomar por
objetivo último manipular os freqüentadores no sentido
de transformá-los em trabalhadores, pois com isso estará
instrumentalizando as pessoas, em função das estruturas
que existem para servi-las. O dirigente espírita não
pode pretender simplesmente alcançar volume e eficiência
nas atividades, e sim deve compreender que a medida do sucesso da
instituição que dirige está no grau de fraternidade
existente entre os que ali convivem.
E, o mais sério, é que não raro tais providências
e estruturações acabam alterando as mediações
internas, isto é, convertendo relações entre
irmãos em relações patrão-empregado ou
chefe-subordinado, e, com isso, substituindo a fraternidade do prazer
de estar junto e compartilhar os sentidos da ação cristã,
pelas obrigações descritas nos organogramas e cronogramas,
simbolizadas por critérios de eficiência e eficácia
e mascaradas de sucesso aparente, graças aos demonstrativos
de produção e consumo de bens e serviços espíritas.
Quando e onde isso acontece, funda-se de novo o sinédrio e
Jesus volta para as ruas, para conviver no meio do povo, a fim de
ensinar e vivenciar o "Amai-vos uns aos outros",
somente possível onde o cotidiano das pessoas não se
vê substituído pelas estruturas instrumentalizantes "das
associações propriamente humanas."
Fonte: http://www.ieja.org/portugues/Estudos/Artigos/p_afraternidadesubstituida.htm
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