PARTE 1:
Amigos muito queridos:
Enfim, arranjei um tempinho para falar de comunicação
social espírita.
Vou pedir a licença para um
registro histórico que me obriga ao risco de algum cabotinismo,
pelo qual peço perdão antecipado. Peço, contudo,
que registrem, para que o debate sobre esse importante assunto seja
tão proveitoso quanto possível.
A expressão "comunicação
social espírita" foi criada em Goiânia,
em meados da década de 80, dentro da Federação
Espírita do Estado de Goiás. Lembro-me como
se fora ontem da reunião, da qual participávamos eu
e a jornalista Ângela Moraes, até hoje
abnegada parceira minha naquela instituição. A expressão
considerada por nós à época era "comunicação
espírita", ao que um velho amigo jornalista, de nome
Erasto Valim Franco, ponderou que poderia ser confundida
com a mediunidade e, por isso, deveríamos interpor o adjetivo
"social", e, daí, passamos a adotar "comunicação
social espírita". No ano de 1980, promovemos o I Congresso
de Comunicação Social Espírita do Estado de Goiás,
no qual contamos com as presenças de Merhy Seba
(que levou o conceito ao CFN, sendo ele, até hoje, o "Assessor
para assuntos de Comunicação Social Espírita"),
Idelfonso do Espírito Santo e Éder
Fávaro. Em 1993, participei da comissão de
redação da reforma estatutária da Feego, momento
em que esta casa cria uma nova diretoria - a "Vice-Presidência
de Comunicação Social Espírita" (até
hoje a única federativa com a comunicação instaurada
como vice-presidência), e, em outubro de 1996, criamos o ÍCONE,
Instituto de Comunicação Social Espírita,
que, hoje, ocupa humilde, porém orgulhosamente, um assento
no recém-criado Conselho Nacional de Divulgadores do Espiritismo,
da Abrade.
A noção de comunicação
social espírita vinha, em um primeiro momento, alavancar a
idéia de "divulgação doutrinária",
alterando a concepção restrita em que esta se mantinha.
Interessávamos por duas superações fundamentais:
a primeira, de índole instrumental, era o avanço
tecnológico. Surgido em forma impressa (livro e revista),
o Espiritismo não acompanhara o desenvolvimento das tecnologias
da comunicação, e a idéia de comunicação
social espírita vinha bradar ao movimento por essa evolução.
A segunda superação, que, depois, nos pareceu a principal,
era de natureza filosófica: a superação
ética. Nossa postulação era superar
as formas monologais para formas dialógicas
de relação comunicativa. Mais tarde, o aprofundamento
teórico que temos feito nos estudos acadêmicos da comunicação
demonstrou que trata-se, na verdade, de uma mudança
paradigmática, de um modelo de comunicação
expresso na velha fórmula mecanicista "emissor/meio/mensagem/receptor"
para um molde construtivista e sócio-interacionista,
para o qual há agentes em interação e o conhecimento
assume a forma de uma negociação de sentidos e significados.
Atualmente, esses estudos vêm se consolidando no que pode ser
um ensaio para uma teoria social da fraternidade.
Esse migrar para o desenvolvimento
de uma teoria social partiu de uma constatação empírica:
a de que o "atraso" dos espíritas nas práticas
de comunicação não surgia apenas de um mero preconceito,
como tem sido a constatação meio superficial dos batalhadores
da área, e sim da ausência de uma teoria social
no Espiritismo. Isso significa que o espírita tende
a ver a sociedade a partir do indivíduo (a velha questão
da reforma íntima como a condição não
apenas necessária, mas suficiente da reforma social que se
espera do Espiritismo), algo perfeitamente natural no movimento de
uma doutrina que nasceu nos albores do positivismo francês.
Uma visão atomista de sociedade não tem os instrumentos
para enxergar o homem como grupo, como cultura, como história
coletiva, como linguagem, como instituições. O
risco de ingenuidade política é altíssimo.
E, claro, a comunicação aparece como perfumaria, como
"exterioridade" sem importância.
PARTE 2:
Retomo as minhas palavras sobre Comunicação Social Espírita.
Naquele texto, mencionei: o surgimento
do conceito, as preocupações iniciais que o fizeram
surgir e um breve diagnóstico do motivo que consideramos principal
para a relativa omissão dos espíritas em relação
a essa atividade.
Dedicarei este email a considerações
sobre questões epistemológicas que conectam a idéia
de comunicação ao Espiritismo. O texto é resumido,
tanto quanto possível, e busca eliminar citações
bibliográficas e discussões muito especializadas, a
fim de que se torne mais palatável para a maior parte dos companheiros
da lista, que não têm obrigação de manejar
as categorias da filosofia e das ciências sociais de forma especializada.
Claro que, por estar aberto ao debate (este, aliás, é
o motivo pelo qual se posta essas coisas na lista), existe toda disposição
em aclarar e resolver dúvidas eventuais, bem como mudar de
idéia, ante argumentos e informações que contribuam
para uma ampliação de vistas. Vamos lá.
Uma revisão da história
do Espiritismo sob uma perspectiva comunicativa revela-nos
a natureza altamente dialógica da codificação,
em Allan Kardec. É trivial afirmar que o notável professor
lionês não apenas "ouviu" as revelações
espirituais, mas dialogou com seus protagonistas.
Sua postura ante os espíritos jamais foi passiva e acatadora.
Ao contrário, ele interagiu fortemente com os conhecimentos
espirituais que diversos médiuns lhe disponibilizavam. Esse
perfil ativo de Allan Kardec se revela em dois aspectos: no de interlocutor
e no de editor. Como interlocutor, ele escolhia espíritos a
serem evocados, definia a temática a ser debatida, efetuava
indagações a respeito e propunha objeções
ao que lhe era dito. E, como editor, ele selecionava as mensagens
que considerava válidas e, mesmo entre as selecionadas, procedia
a cortes e adaptações. Há registros de queixas
feitas por alguns intelectuais espíritas da época a
seu perfil centralizador, no âmbito da metodologia.
Nosso interesse, entretanto, neste
resumo, não é efetuar juízos morais a respeito
das atitudes de Kardec, mas identificar as condições
e limites da construção do conhecimento espírita,
em sua origem, a partir de uma perspectiva sócio-interativa.
Ora, tendo sido Kardec um intelectual francês que assume e de
certa forma centraliza a coleta, a seleção e a definição
de princípios e textos da doutrina nascente, parece natural
concluir que o Espiritismo surgiria fortemente marcado pelas preocupações
pessoais e culturais de seu codificador e, por conseguinte, do contexto
em que ele vivia. Isso, de fato, pode ser facilmente demonstrado nas
tematizações, nas opções epistemológicas
e em grande parte das soluções oferecidas para os problemas
aventados, dentro da obra básica. Tratando muito en passant
este assunto, podemos, com certeza, dizer que o Espiritismo
surge marcado por preocupações iluministas,
algumas delas marcadamente de época, e pela solução
racionalista típica da França daqueles tempos (em oposição,
por exemplo, à tendência empirista da vertente anglo-saxônica
da filosofia européia). A opção cartesiana
é nítida na filosofia espírita nascente,
como, por exemplo, na eleição explícita que faz
Allan Kardec, no segundo capítulo da Introdução
de "O Evangelho Segundo o Espiritismo", da Razão
(assim mesmo, com "r" maiúsculo, pois a concepção
da época era a da razão única e suficiente para
solver os enigmas do Universo, modo de pensar que culminou no positivismo)
como um dos pilares da construção do conhecimento espírita.
Os espíritos, além disso, dialogam com Kardec em condições
positivistas. O leque de conceitos básicos do Espiritismo
é, todo ele, de teor positivista (segundo Canuto de
Abreu, a vertente saint-simoniana, e não a comteana), o que
se pode constatar na centralidade de conceitos como "evolução",
"progresso", "leis naturais",
"fato", "bom senso", "razão",
etc. Mesmo no campo da discussão religiosa, a que Kardec não
se furtou, ele evidencia a preocupação positivista,
como na busca pela conexão entre ciência e religião
e nas posturas anti-ritualista e anti-dogmática com que marcou
o pensamento e a proposta de prática espírita.
Observa-se, com isso, que o
Espiritismo é um fenômeno que surge datado e conectado
às questões da sociedade de sua época.
O traço francês da Doutrina Espírita revela-se
até nos espíritos que se comunicam - a maioria são
intelectuais franceses desencarnados ou figuras pertencentes às
tradições da filosofia e da religião européias
que exerceram larga influência no pensamento francês.
Tais constatações, porém,
seriam meras trivialidades (qualquer historiador também chamá-las-ia
de obviedades), se disso não pudéssemos tirar uma conclusão
tipicamente espírita, com elevada importância para a
história das idéias e a epistemologia: a de que o
Espiritismo resulta de uma relação intercultural entre
as sociedades encarnada e desencarnada da França do século
passado. Esta idéia tem tanta importância pelo
que afirma, quanto pelo que nega. Ela nega, por exemplo, a concepção
de que "o Espiritismo é uma revelação
trazida pelos espíritos aos homens", ao afirmar não
apenas o caráter contextualizado da discussão temática
espírita, como também a impossibilidade de que uma revelação
"divina" surja e prospere entre os homens num campo
de conhecimento fora das possibilidades intelectuais e culturais da
sociedade onde se instaure. Ela também nega, embora não
completamente, uma postulação universalista excessiva
para o pensamento espírita, ao argumentar que, além
de o universalismo ser uma questão típica da filosofia
grega que se transfere para o iluminismo, devemos fazer o reconhecimento
dos contextos históricos e culturais do surgimento das idéias,
a fim de não cerrarmos os olhos para outras perspectivas que
possam ser tão ou mais válidas do que as que já
estão consagradas entre nós.
Assim, ao dialogar com os espíritos,
na formação da rede conceitual do Espiritismo, os interlocutores
encarnados e desencarnados realizaram o que pode ser chamado de a
"síntese possível" entre conhecimentos
e preocupações de ambos os lados da vivência cultural
humana, nos limites de seus tempo e lugar.
Eis o que tenho denominado uma visão
comunicativa do Espiritismo. Para esta visão, o processo
da codificação não se insere no modelo condutivista
de que a informação se transmite de um emissor para
um receptor, e sim no modelo sócio-interacionista
de que a informação se constrói na relação
entre interagentes, dentro do quadro de possibilidades e
limites dos próprios agentes em interação. A
mediunidade, nesta ótica, deixa de ser mero "meio"
pelo qual as mensagens fluem, e passa a ser condição
pragmática do conhecimento e da experiência sócio-interacional;
isto é, pela via mediúnica, não há informação
que se transfira, mas experiência e conhecimento que
se compartilha, modificando os saberes envolvidos e desencadeando
novos saberes.
Disso resulta que, também na
mediunidade, a questão da comunicação deixa de
ser um mero problema técnico e passa a ser sobretudo um problema
ético. Em outras palavras, uma relação
mediúnica não pode ser encarada, sem um reducionismo
imperdoável, a uma relação de tipo sujeito/objeto,
e sim a uma relação intersubjetiva, com todas as complexidades
que lhe são conseqüentes. Ou seja, a questão fundamental
das comunicações espirituais não é simplesmente
a da "autenticidade", mas a da natureza
da relação. E a centralidade da questão
dos conteúdos dos ditados mediúnicos transfere-se das
tecnicalidades relacionadas à fidelidade doutrinária
para o campo metodológico das formas dinâmicas
de construção do pensamento espírita.
Na verdade, isso significa em grande
parte um esforço de recuperação metodológica
da prática de Kardec, pois o nosso codificador foi
bem mais do que um simples racionalista e positivista francês.
Ele, de fato, entreviu essas questões. Mas, as antecipações
de âmbito epistemológico feitas por Kardec são
assuntos de um próximo email.
PARTE 3:
Na parte 2, referi-me ao contexto cultural de Kardec e à natureza
comunicativa e intercultural do Espiritismo, em seu surgimento, o
que torna o problema da comunicação uma questão
ética, mais do que técnica. Nesta parte, procurarei
ressaltar que, apesar do contexto e das limitações próprias
da época, Kardec ultrapassou, em alguns sentidos, o
positivismo e vislumbrou a ética e a metodologia comunicativas,
operando interessantes antecipações desse pensamento.
A primeira é a postura diferenciada
com que pensou o uso da razão como método,
explicitada no segundo capítulo da Introdução
de "O Evangelho Segundo o Espiritismo",
quando, ao lado da razão (percebida a partir de uma perspectiva
positivista, como mencionei na parte anterior), o codificador justapôs
o que denominou "controle universal do ensino dos espíritos",
como critério de aferição da verdade no processo
de construção do pensamento espírita. Define-se
o controle universal da seguinte maneira: considera-se correta a proposição
que obtenha a adesão da maioria absoluta dos espíritos
identificados como superiores.
Esta idéia de Kardec tem duas
características singulares. Primeiro, é escandalosa
para o pensamento positivista, pois lança o critério
de verdade para o campo dos juízos das pessoas (encarnadas
e desencarnadas, mas isso é detalhe), relativizando a importância
da verificabilidade lógica e empírica das proposições.
Em outras palavras: não basta ter lógica e ser referenciada
em fatos (critérios básicos da epistemologia positiva),
mas é preciso que uma proposição seja admitida
por pessoas razoáveis e ilustradas, para ser aceita. A segunda
característica é de natureza empírica. O controle
universal é uma proposta de difícil prática,
se a pensarmos em termos metodológicos (há companheiros
espíritas estudiosos, como o Gilberto Guarino,
que afirma, com todas as letras, ser sua prática não
apenas difícil, mas impossível). Diversos problemas
de difícil solução se reúnem nessa questão:
quem e como se definem os espíritos superiores? quando se torna
possível dizer que eles já se declararam? como separar
os fatores intervenientes, como as questões de condicionamento
cultural e de interferência mediúnica, na prática
de tais juízos? E assim por diante.
Ano passado, dialogando com o Guarino
a respeito, eu argumentava que a proposta de Kardec seria não
metodológica, mas epistemológica. Com isso, eu queria
dizer que o nosso codificador propunha não uma técnica
de aferição da verdade, e sim uma postura filosófica
diante do conhecimento. Em outros termos, Kardec vislumbrou a epistemologia
consensualista, para a qual verdade é o consenso dos
especialistas. Convencido, passei a denominar o "controle
universal" de "consenso intersubjetivo interexistencial",
aproveitando a rica noção de interexistencialidade,
de Herculano Pires e, o que considero muito proveitoso,
deslocando definitivamente o debate sobre o assunto para o terreno
da filosofia, e, especificamente, da epistemologia
(parte da filosofia que estuda o conhecimento), retirando-o assim
do debate metodológico, onde faz pouco sentido. Esse movimento
implica ainda atualizar o conceito de razão, ou efetuar
a superação do positivismo dentro do Espiritismo,
mas essa é outra discussão, de que não tratarei
aqui, ao menos por enquanto.
Na verdade, ainda penso assim, mas
hoje pode-se acrescentar uma análise de contexto, que amplia
a noção de consenso intersubjetivo interexistencial
para uma dimensão política. Homem em seu tempo, Allan
Kardec vivia o auge da experiência da esfera pública
burguesa, isto é, a de uma visão de sociedade civil
separada do Estado e formada pelas "pessoas de bem",
que, por meio do livre debate e da crítica das idéias,
efetuava a emancipação política da cidadania
como condição da democracia. Ora, tal visão de
sociedade postulava, necessariamente, o homem como ser racional e,
portanto, a relação social e política como movidas
pela racionalidade. O "controle universal", portanto,
tinha algo também de uma proposta política - a da "esfera
pública espiritual" - que, para se cumprir, demanda
condições comunicativas, isto é, a manutenção
do diálogo e do intercâmbio de diferenças entre
os agentes em interação.
E foi exatamente isso que, de certo
modo, o movimento espírita, ao surgir no Brasil, passou a perder,
devido, entre diversos fatores, a um que considero principal: o processo
de institucionalização, cujos problemas chamam
a atenção para a urgência em nosso meio de um
amplo debate sobre ética comunicativa ou,
em outros termos, sobre comunicação social espírita.
Mas, esse é assunto de um próximo email.
PARTE 4:
Na parte anterior, referi-me ao consenso intersubjetivo interexistencial,
sem detalhar-lhe a conceituação, como uma respeitosa
atualização da noção de controle universal
do ensino dos espíritos, de Kardec, procurando com isso, primeiro,
situar essa questão no domínio da epistemologia e da
política, e, segundo, refletir sobre a forma como, através
dela, o codificador supera, em alguns termos, o positivismo de sua
época e vislumbra uma ética comunicativa.
Não basta, contudo, como talvez
diria, fundamentado em Wittgenstein, o amigo e professor
Denizard de Souza, observar a construção
da proposta espírita em Kardec, mas é fundamental compreender
como é lida e praticada pelo movimento que
essa proposta gerou. E, nesse caso, é singular verificar que
ela não vingou historicamente, nem na Europa, assolada pelas
guerras mundiais e por ditaduras que perseguem o movimento nascente
(como é o caso típico da Espanha); nem no Brasil, onde
assume um perfil específico, e só sobrevive e cresce
dentro de um modelo peculiar.
Abro aqui um parêntesis para
dizer que não adoto, como perspectiva de leitura histórica,
a idéia de "distorção". Acho
que os movimentos sociais devem ser considerados para além
de uma consideração purista, fundada no que a antropologia
denomina os mitos de origem. Infelizmente, os textos que temos disponíveis
na literatura espírita, em sua maioria, incluem explícita
ou implicitamente uma lamentação desse tipo. Ora Kardec
é esquecido, ora é conspurcado por "idéias
estranhas", que ofendem a identidade espírita genuína,
autêntica, verdadeira. Para esse tipo de argumento, chamo a
atenção dos companheiros que ainda estejam tendo a paciência
de me ler para as considerações que ultimamente têm
sido feitas pelo Denizard de Sousa, quanto ao risco de essencialismo.
Os significados e os processos de significação não
são dados a priori, mas construídos no interior de práticas
sociais e linguageiras concretas. Cada época ou sociedade tem
os seus problemas específicos, trabalha-os dentro de óticas
próprias e coordena soluções a partir das possibilidades
disponíveis.
Pensando assim, não é
de modo algum inteligente esperar que os conteúdos espíritas
vertidos nas obras de Kardec, à medida que se tornam disponibilizados
e admitidos por baianos, cariocas e pernambucanos, vão determinar
uma prática correspondente àquela postulada e praticada
pelo mestre francês. Observar o abrasileiramento do
Espiritismo como distorção é, no mínimo,
desconhecer processos simples de aculturação ou de negociação
intercultural. O que não elimina a possibilidade de questionamento,
o que, aliás, é o espírito desse texto. Procuro
fazê-lo, porém, a partir de uma ótica
filosófica e sociológica, e não de um
simplismo purista ou doutrinário.
Eu mesmo estou entre os que se entristecem,
por exemplo, com o esquecimento do "aspecto científico"
do Espiritismo no Brasil, ou, falando em português mais claro,
com o fato de os espíritas não fazerem pesquisa (salvo
raríssimas e honrosíssimas exceções, que
confirmam a regra) e utilizarem a idéia de "ciência"
como argumento ideológico, sem qualquer prática ou metodologia
que o sustente. Entretanto, como observador do movimento social espírita
brasileiro, suspeito também (e peço a licença
para especular um pouco) que se o modelo de Espiritismo brasileiro
tivesse sido científico, se tivéssemos banido da prática
social qualquer idéia de religião, como quer a Nícia,
nós talvez não estaríamos discutindo aqui, pois
provavelmente não teríamos um movimento desse porte
em nosso país.
Há um termo na antropologia
da cultura que me parece servir muito bem para descrever
isso: apropriação. O Brasil se apropriou
das idéias espíritas e construiu um movimento espírita
à sua maneira. Espiritismo como religião, caridade
como filantropia institucionalizada, mediunidade como terapêutica
e doutrina como pregação romântica. A
fé raciocinada virou fé que já raciocinou mas
que não precisa raciocinar mais (viveríamos a fase de
praticar a doutrina pronta), a identidade espírita perde um
caráter universalista e adquire contornos de identidade cultural
a ser defendida e a relação com a sociedade é
pensada em termos de transmissão de informação.
Pensar se isso poderia ser diferente é fazer especulação
histórica, mas uma coisa é inegável: foi
assim que deu certo, foi assim que o movimento espírita
ganhou cidadania e legitimidade social no Brasil.
Em síntese, ocorre
com o Espiritismo algo muito comum ao desenvolvimento do tronco judaico-cristão
das religiões ocidentais. Todas elas, com pequenas
variações e de forma complexa, cumprem quatro fases,
que, na prática, não raro se superpõem: (1) surgem
a partir de um ato fundador revolucionário, contestando estruturas
vigentes e propondo soluções novas; (2) sofrem uma rejeição
violenta, às vezes com o martírio de seus iniciadores;
(3) cooptam as camadas médias e altas e uma fração
da intelectualidade da sociedade, ganhando legitimidade; e (4) se
institucionalizam, pela via de processos de dogmatização
(institucionalização ideológica) e ritualização
(institucionalização das práticas), quando, então,
orientadas estruturalmente para si mesmas, para a manutenção
do próprio status quo, tais estruturas perdem a sensibilidade
das necessidades sociais do entorno e tornam-se conservadoras, passando
a movimentar processos de exclusão semelhantes aos que sofreram
no princípio, processos esses justificados na exigência
de observância aos dogmas e ritos agora institucionalizados.
A mim me parece que vivemos o processo
de afunilamento e consolidação desta última fase,
no Espiritismo brasileiro. Caso isso seja verdadeiro, a pergunta a
se fazer é se podemos efetuar suficientemente a crítica
e a ruptura com essa racionalidade sistêmica (num sentido habermasiano
da palavra, de colonização dos processos orientados
ao entendimento na dinâmica comunicativa do mundo da vida).
Confesso-lhes, amigos, que sou espírita, num sentido identitário
do termo, pela crença nessa possibilidade. Na possibilidade
de uma política de comunicação social espírita,
percebida a comunicação não como "divulgação
doutrinária", que é conceito aferrado ao modelo
vigente, mas como construção de uma ética de
relação dos espíritas entre si e com a sociedade,
encarnada e desencarnada. Assunto para o próximo email...
PARTE 5:
Prossigo, de maneira muito sintética, expondo a vocês
os principais resultados teóricos de minhas reflexões
e pesquisas dos últimos anos, a respeito da temática
da comunicação social espírita.
Na parte anterior, referi-me, dentro
de uma perspectiva pragmatista, aos usos que os espíritas,
especialmente os brasileiros, historicamente fizeram da proposta kardequiana,
especialmente daquilo que, dentro dela, significou a superação
possível, pelo codificador, do positivismo iluminista e racionalista
de sua época. Aproveitei, também, para uma rápida
crítica do conceito de "distorção",
que nos arrisca muito facilmente ao essencialismo e, deste, ao dogmatismo,
chamando a atenção dos amigos para uma compreensão
mais sócio-cultural do processo de abrasileiramento
do Espiritismo. Entretanto, procurei igualmente evidenciar
que nos arriscamos a repetir equívocos que temos cometido ao
longo dos séculos, na história do cristianismo, e, dentre
eles, destaquei a institucionalização ideológica
e ritualística como a que me parece mais preocupante. Este
o ponto a ser comentado neste texto, mantendo, como for possível,
o caráter bastante sintético dessa seqüência.
Ao invés, contudo, de efetuar
uma crítica ao "caráter religioso",
que não passa às vezes de uma tomada de posição
cientificista (retorno a postulados positivistas que não mais
se sustentam, na medida em que a antropologia atual observa e valoriza
o caráter de socialização e fundador de identidades
dos movimentos religiosos), desenvolvo esse questionamento a partir
de uma teoria social específica, para a qual convido os companheiros
atentos a meditar: a teoria habermasiana de sociedade.
A partir dela, pretendo introduzir um diálogo sobre as possibilidades
emancipadoras de nosso movimento e, por conseguinte, da ação
comunicativa espírita.
A teoria de sociedade de Jürgen
Habermas se fundamenta num diálogo vigoroso e denso com a tradição
da modernidade. A partir da sociologia de Max Weber,
estabelece-se a partir da admissão de que a história
moderna do pensamento humano tem sido a história da perda dos
fundamentos absolutos das religiões em favor de um profundo
processo de racionalização social, que se desencadeia
na criação e na valorização de estruturas
racionais, das quais se esperava, até o final do século
passado, a plena abundância e a justiça social. A exploração
industrial, subproduto da transformação tecnológica
da economia que eclode neste século na forma do desequilíbrio
ambiental e da concentração injusta da renda nas sociedades
capitalistas, e os regimes ditatoriais, subproduto dos processos de
racionalização no plano político, que mostram
sua face negra na forma dos genocídios em massa do nazi-fascismo
e, mas recentemente, na crueldade fria e calculista das guerras tecnológicas;
ambos estes resultados ocasionam na filosofia uma enorme e insuperável
suspeita de que a razão não daria conta das promessas
do humanismo iluminista.
A extraordinariamente rica filosofia
do século XX - com a qual os espíritas ainda não
dialogaram - se desdobra em diversas alternativas, as quais,
em linhas gerais e de forma até meio reducionista, poderiam
ser agrupadas em duas tendências principais: a da crítica
da razão e a da razão crítica (devo
esta subdivisão especialmente a Ernildo Stein).
A crítica da razão começa em Nietszche
e Heidegger, para se desdobrar em seguida na chamada
filosofia pós-moderna; para esta linha, a
razão alcançou os seus limites e produziu a catástrofe
e a violência, com a fragmentação da sociedade,
a desterritorialização das culturas e o aperfeiçoamento
técnico da tirania, seja sob sua forma política (ditaduras),
seja sob sua forma econômica (globalização). A
razão crítica se estabelece especialmente pelos filósofos
da Escola de Frankfurt, desde Adorno
e Horkheimer até Habermas;
para estes (especialmente o último), a postura pós-moderna
é niilista e conservadora, pois, o que na verdade teria ocorrido
é que não há mais uma única razão,
a serviço da dominação e da infelicidade humana,
e sim várias racionalidades, instaladas na
complexificação social e dentro da luta entre a busca
do poder sobre as pessoas e busca da emancipação por
elas, ou seja, nem todas a serviço de processos de reprodução
da injustiça e do egoísmo. A razão, portanto,
ainda oferece uma saída e, segundo Habermas, essa saída
é a da ética.
Habermas, então, em acordo
com Weber, mas ultrapassando-o, argumenta que a sociedade, ao se modernizar,
ou ao se racionalizar, se movimenta a partir de dois tipos
de ação: a orientada a fins,
subdividida em ação estratégica, quando mediada
pelo poder (critério de busca da dominação),
e ação instrumental, quando mediada pelo dinheiro e/ou
a técnica (critério de busca da eficiência); e
a ação orientada ao entendimento, ou
ação comunicativa, quando mediada pela linguagem (critério
de busca do consenso). As ações orientadas a fins se
institucionalizam de modo sistêmico (no sentido de Talcott
Parsons) na forma do Estado e da economia, pela apropriação
e a colonização das estruturas do mundo social, enquanto
que as ações orientadas ao entendimento representam
o espaço do cotidiano, que Habermas denomina, a partir da fenomenologia,
mundo da vida (ou, o vivido no mundo), semi-institucionalizadas na
forma da família (mundo da vida privado, que conecta o cotidiano
ao subsistema da economia) e da esfera pública (mundo da vida
público, que conecta o cotidiano às interações
coletivas antes atribuídas exclusivamente ao Estado).
É realmente incrível
que o debate espírita, preocupado com as questões
menores de identidade cultural (o que é e o que não
é espírita) e de pureza doutrinária (os critérios
e as formas de exclusão da diferença no interior do
movimento), haja passado ao largo do enorme debate sobre a angústia
e o sofrimento humanos, ante as violentas transformações
estruturais pelas quais a sociedade mundial tem passado.
Em verdade, a discussão dos
processos de racionalização das esferas do mundo da
vida tem tudo a ver com uma compreensão mais ampla do Espiritismo
e de sua presença na sociedade contemporânea. Tema para
a próxima parte, pois este já ficou grande demais e,
como vocês já devem ter notado, o assunto é amplo
e complexo... Espero, aliás, que também tenham percebido
ser este um tema da maior importância e, aos que eventualmente
estejam angustiados, indagando o que é que a comunicação
social tem a ver com tudo isso, peço que tenham paciência,
pois logo verão que não apenas tem a ver, como é
indispensável uma base em teoria social para o entendimento
dos processos de comunicação e dos caminhos a serem
seguidos.
PARTE 6:
Na última parte e, provavelmente, nas duas próximas,
estarei sendo muito, muito teórico. Perdoem-me, por favor,
os companheiros menos afeitos ao debate filosófico e sociológico,
mas, sem ao menos definir alguns conceitos básicos, não
é possível dar base e seqüência a esta contribuição
ao pensamento em comunicação social espírita.
Além do mais, não tenho dúvidas de que o Espiritismo
merece o melhor. E, claro, se eu disser algo que não fique
claro, a Internet está aí para isso; é só
perguntar, contestar, propor...
No último texto (5),
deixei propositadamente os conceitos espíritas para explicitar
alguma coisa da teoria social de Habermas, o último
remanescente da Escola de Frankfurt, um senhor de lábios leporinos
que festejou este ano seus oitenta janeiros bem vividos, e cujo trabalho
intelectual se pode hoje adotar ou combater, mas não ignorar.
Devo dizer que a opção por esse autor não é
aleatória. Tenho, ao longo de meu trabalho, buscado não
ser desses que se entusiasmam pela resposta, para depois fazerem a
pergunta. A compatibilidade da proposta teórica habermasiana
com a busca por uma teoria social espírita atualizada em face
da sociedade contemporânea, na qual se insere o movimento espírita,
já vem sendo reconhecida por outros gatos pingados espíritas
que se metem nessa discussão. É o caso, por exemplo,
que descobri este fim de semana, do médico e jornalista João
Paulo Lacerda, um dos responsáveis pela publicação
da revista A Reencarnação, da FERGS,
em cuja edição 418, do primeiro semestre deste ano,
inteiramente dedicada à comunicação social, ele
fez publicar um artigo seu, no qual se lê (p.35): "Jürgen
Habermas: afinidades insuspeitadas com a filosofia espírita",
embora não tenha entrado fundo na análise dessas afinidades.
A visão dual de sociedade,
formada por sistema e mundo da vida, definidos estes a partir dos
processos de racionalização do mundo moderno em ações
estratégico-instrumentais e comunicativas (texto 5), delineia
um esquema sob medida para avaliar o desenvolvimento do modo como
se institucionaliza o Espiritismo, em seu crescimento no Brasil (texto
4). A questão que surge, com interesse de pesquisa sócio-antropológica,
é a de até que ponto ocorre conosco um processo de racionalização
dentro do qual se dispensam as formas lingüísticas de
construção de consensos pragmáticos para a implantação
de relações estratégicas e/ou instrumentais dos
espíritas entre si e destes com as demais esferas sociais.
Isso porque, segundo Habermas, a característica
das ações estratégicas (mediação
do poder) e instrumentais (mediação do dinheiro e da
técnica) é desligar os processos de formação
dos vínculos sociais de suas bases na linguagem; isto é,
o eu, armado de sua pretensão de poder, dispensa a busca do
entendimento pelo qual o outro chegaria a um consenso com ele (ação
comunicativa), e utiliza de capacidades coercitivas, fundadas na possibilidade
de punição (ação estratégica) ou
na disponibilidade de recursos financeiros (ação instrumental),
para obrigá-lo a cumprir com sua vontade.
Um aporte teórico que tem sido
bastante rico para a discussão filosófica desse estudo
das relações sociais, numa perspectiva sócio-interacionista
e orientada à busca pela teoria social que melhor se adequaria
à proposta espírita de transformação da
sociedade, é o da filosofia da alteridade,
oferecida pelo filósofo lituano e teólogo judeu Emmanuel
Lévinas (lê-se "Levinás",
pois este intelectual religioso, desencarnado na década de
80, passou a maior parte da vida na França, tendo publicado
a sua densa obra na lingua de Kardec). Para este pensador, a relação
que caracteriza o ser humano (ser entendido como verbo e humano, como
adjetivo) é a relação ao outro.
O conceito de outro, porém,
ultrapassa em Lévinas a da "outra pessoa":
é o outro, compreendido como aquilo que não sou eu,
isto é, a estranheza, a descoincidência de pontos de
vista, a surpresa, ou, em síntese, a diferença. Diz
ele que a diferença do outro - que ele chama "o rosto
do outro" - se manifesta na forma de escândalo para
o eu e o obriga a uma postura ética, a qual
deve ser a da aceitação e a do diálogo,
pois é na linguagem que as diferenças se encontram
sem terem que se reduzir uma à outra, isto é,
sem a dominação e a anulação do outro
pelo eu. O outro, contudo, para esse autor, não é possível
de ser dominado completamente, sem deixar de ser humano. Afirma ele
que só de um modo é possível dominá-lo
por inteiro: matando-o, mas, então, eis que se o perde completamente...
Com essa idéia, que se desdobra
em uma série de interessantes conclusões filosóficas,
Lévinas quer romper com uma fenomenologia calcada no império
da identidade. Efetivamente, toda a construção social
do pensamento moderno é fundamentado na identidade, ou, em
termos sociológicos, na sociedade dos iguais. O vínculo
social é historicamente dependente da redução
do homem a uma ou duas características (a adesão a uma
crença ou a uma mundividência, como é o caso do
ser espírita, por exemplo) e, em seguida, a marcação
das diferenças em relação aos outros surge como
motivação para a violência e a exclusão.
Revolucionário, Lévinas
propõe genialmente que "nós não é
o plural de eu", ou seja, a sociedade, para se caracterizar
como humana, não pode ser construída a partir da pretensão
de poder e anulação da diferença do outro,
pela qual a autoimagem ou a identidade que o eu constrói para
si possa ser utilizada como paradigma para a redução
dos outros. A anulação do outro ou a consideração
da diferença do outro como problema e fonte de violência,
ao extinguir o diálogo, rompe com a ética da própria
existência humana. Em outras palavras, o outro homem deixa de
ser sujeito para se tornar objeto. Qualquer semelhança com
a relação sujeito/objeto da epistemologia positivista
ou suas sucedâneas não é mera coincidência.
No plano filosófico desta discussão,
Lévinas oferece uma impressionante base para a fundação
de uma ética da fraternidade, por meio da
qual poderemos nos apropriar da teoria habermasiana de sociedade e
buscar assim compor uma sociologia crítica do movimento
espírita e, enfim, apontar rumos para os processos
de comunicação que temos a desenvolver. Assunto suficiente
para vários emails futuros, que virão, com certeza,
se Deus o permitir.
PARTE 7:
Na última parte (número 6), iniciei um interregno de
definições teóricas e conceituais. Já
falei dos conceitos de racionalidade e ação social,
que Habermas classifica em estratégicas, instrumentais e comunicativas;
e falei também da noção de alteridade em Emmanuel
Lévinas. Bem, o presente texto pretende verificar como poderíamos
aplicar tais noções a uma teoria social da fraternidade
relacionada à proposta espírita.
Por longa data, a fraternidade vem
sendo definida, a partir da leitura teológica da vivência
cristã pastoril dos apóstolos, como a "solidariedade
entre os irmãos" (frater, aliás, significa
irmão) ou "irmandade". Fraternidade seria,
pois, a característica daqueles que se agrupam em torno de
seus ideais e características comuns - e vem daí a idéia
de "comunidade".
Essa noção, claro, não
foi inventada pelos cristãos. Ela procede filosoficamente dos
gregos (é daí que vem a explicação muito
vulgarizada de que os homens vivem em sociedade porque têm uma
natureza "gregária"; mas isso é uma
tautologia, um argumento circular que na verdade nada diz, pois é
equivalente a se afirmar que o ser humano enxerga por ter uma "natureza
enxergante" ou que anda por sua "natureza andante").
Os gregos, provavelmente, foram os
inventores do espaço público (ou esfera pública)
enquanto reunião dos iguais, para as deliberações
da cidade. Os "iguais", naturalmente, eram os homens
proprietários nascidos na cidade. Ao postular a igualdade,
como base da democracia, a Grécia antiga instituiu, desde o
início, também, que toda igualdade fundamenta-se numa
redução a uma ou algumas características para
as quais se postula a universalidade, redução essa acompanhada
da exclusão das demais características que a ela não
se enquadrem. Na democracia grega, por exemplo, mulheres, crianças
e escravos eram "coisas" do espaço privado (daí
a origem da palavra: "privado" é adjetivo que qualifica
aquele que sofre a privação da dignidade pública)
e os estrangeiros, bem, estes viviam, como os animais selvagens, no
"caos", isto é, no espaço para além
das fronteiras da cidade e, por isso, eram denominados de forma generalizada
como "bárbaros".
Não foi o cristianismo, mas,
certamente, foi Jesus Cristo quem quebrou de forma mais aguda
uma percepção da fraternidade como sociedade de iguais.
Isso porque, em suas recomendações ao amor,
ele jamais sugeriu que "amássemos os semelhantes",
como é comum dizermos hoje. Penso, cá comigo, que ele
não fez isso por saber, talvez, que os semelhantes e a semelhança
deles nós já amamos sem qualquer esforço. Operamos
a redução dos outros a uma ou mais características
comuns (a consangüinidade, a formação profissional,
o "ideal espírita", alguns critérios morais
de conduta, ou o simplesmente "estar de acordo conosco")
e a tais semelhanças dedicamos o nosso amor.
A ética de Jesus Cristo,
porém, é ética da diferença.
A orientação dele, explícita e multiplicada nos
textos que restaram, é a de amar os inimigos, de reconciliar
com o adversário, de ser o menor, de não resistir ao
mal, de amar o próximo. É evidente que o cristianismo,
na medida que se institucionalizou, esqueceu-se dessa ética
e a modernidade dentro da tradição judaico-cristã
se construiu no paradigma da sociedade dos iguais, sendo, talvez,
o sindicato e a religião os exemplos modelares dessa institucionalidade,
o primeiro, na defesa corporativa dos interesses e das idéias
dos comuns, e, a segunda, no projeto de exclusão dos diferentes
e de conversão do mundo à mesmidade.
É preciso, neste momento, esclarecer
que uma ética da diferença não é,
nem pode ser, contrária à luta pelos direitos humanos,
que é luta por igualdade de condições e de direitos.
A igualdade aqui criticada é a das homogeneizações
e a da exclusão; e, por conseguinte, a diferença aqui
defendida não é a postulada pelas posições
neoliberais, que usa a diferença como critério de exclusão.
Diferença, amigos queridos, não é o mesmo que
desigualdade. Aceitar a diferença do outro é
justamente o contrário de expulsá-lo de nosso convívio
por causa da diferença dele. Eis porque, sob esse
ponto de vista, poderíamos postular que uma ética da
fraternidade com base na diferença é também uma
ética da igualdade relacional: tratar o outro como igual é
respeitar a diferença dele; aceitar sua diferença é
observar a diferença dele em termos de direitos iguais aos
nossos. Igualdade e diferença, pois, numa
perspectiva relacional, são faces da mesma moeda, são
conceitos dialéticos.
A fraternidade é, pois, mais
do que a relação entre iguais. Esse conceito reducionista
de fraternidade serviu de argumento para os cruzados da Idade Média
se unirem para arrasar os muçulmanos e tomar-lhes as riquezas
(e, claro, também para que os muçulmanos fizessem o
mesmo com os cristãos).
Eis que, então, podemos partir
para uma definição fundamental e axiomática.
Fraternidade é a relação pacífica
e inclusiva com a diferença do outro. Na próxima
parte, retornaremos ao Espiritismo e à comunicação,
enriquecidos por este conceito.
PARTE 8:
Retorno, aos poucos e eventuais interessados, com minha despretensiosa
contribuição teórica em torno da Comunicação
Social Espírita. Uma peregrinação que começou
com definições conceituais e históricas, efetuou
considerações breves em torno da teoria do conhecimento
espírita, quando citou dentro de uma visão contextualizada
o aspecto altamente comunicativo da prática de Kardec, adentrou
em seguida a teoria social em Habermas e a filosofia da alteridade
em Lévinas, para, por fim, adentrar no âmago da questão:
a ética da fraternidade, elemento fundante da teoria
social espírita.
Daqui para frente, trataremos de saber
como se define uma teoria assim, em dois âmbitos básicos:
primeiro, o de uma sociologia do movimento espírita
brasileiro; e, segundo, o das práticas de
comunicação social.
Nesta parte, por uma questão
de espaço, tratarei apenas deste primeiro.
Uma sociologia do movimento
espírita brasileiro, no quadro de uma teoria
social da fraternidade, trata sobretudo de saber até
que ponto as relações dentro do movimento espírita
(1) têm deixado de ser uma prática
familiar livre e cotidiana para se tornar um rito institucional sob
forte controle das hierarquias e (2)
têm deixado de ser uma relação orientada ao entendimento
(ou comunicativa) para se estabelecer como relações
autoritárias ou instrumentais, nas quais o critério
da fraternidade passa a ser substituído por critérios
de obediência e eficácia. Há ainda uma sub-pergunta,
que diz respeito, dentro do mesmo quadro analítico, (3)
às pretensões espíritas em sua relação
junto à sociedade.
Tendem a ser, todas elas, questões
polêmicas e de viés altamente crítico, num sentido
teórico-metodológico desses termos.
A primeira questão refere-se
ao que temos denominado "processo de institucionalização"
(vide o texto n. 4), definido como consolidação
de uma identidade cultural, defendida por instituições
fortes, em relações específicas de poder, e fundada
em critérios dogmáticos e rituais que tipificam a teoria
e a prática espíritas, criando com isso fronteiras e
zonas de exclusão. O processo segue relativamente avançado
no Espiritismo brasileiro. As práticas domésticas quase
não mais existem; a mediunidade deixa de ser uma "faculdade"
agregada ao ser humano e passa a ser uma "atividade" demarcada
da casa espírita; ocorrem radicalizações relacionadas
à demarcação de textos que ganham aura de sacralização,
tornando-se indiscutíveis; e tipificam-se detalhes de reuniões
- especialmente as mediúnicas, que se tornam privativas da
instituição e censuráveis em ambientes públicos
ou domésticos. Todas estas providências se unem num mesmo
objetivo: salvaguardar uma identidade espírita clara, que estabeleça
as diferenças para afastá-las.
O segundo caminha ao lado do primeiro.
Instrumentalizam-se as relações e, cada vez
mais, o centro espírita passa a ser visto como empresa fornecedora
de bens e serviços. Realiza-se no Espiritismo o sonho
estrutural-funcionalista norte-americano. Estruturada (há companheiros
que falam em um "modelo sistêmico"), a casa espírita
passa a ser um fim em si mesma. Crescer passa a ser o seu objetivo;
converter freqüentadores em trabalhadores passa a ser o critério
de seu sucesso; cursos e práticas tornam-se os modos de treinamento
e passagem para colocar o homem a serviço da estrutura, estrutura
que tende a anular a liberdade do sujeito, a fim de preservar-se e
ampliar seus domínios.
A lógica desse processo, que
existe em estados que variam ao infinito, nos centros espíritas
brasileiros, é rapidamente resumida num axioma ordenador de
prioridades, muito difundido em nosso meio: "Primeiro a Causa;
depois, a Casa; e, depois, as pessoas". Isto é: primeiro
o Espiritismo ou a Doutrina. Depois, servindo a este, a estrutura
funcional espírita. E, servindo a ambos, as pessoas, com seus
interesses e sofrimentos. A idéia contrária, de uma
doutrina e de uma casa a serviço das pessoas,
é vista com suspeita e rotulada de "personalista".
Em termos habermasianos, esse movimento
se denomina "colonização" das esferas
do mundo vivido (o mundo do entendimento cotidiano pela via da linguagem,
integradas pela personalidade, a cultura e a sociedade) pelas esferas
sistêmicas (institucionalizações de relações
mediadas pelo poder e pelo dinheiro), que passam a tanger-se por preocupações
de controle, mais do que de emancipação; ou, num sentido
piagetiano, de heteronomia, mais do que de autonomia moral.
E, por conseguinte, o terceiro item
torna-se óbvio. Nas relações com a sociedade,
a tendência passa a ser a do discurso conversionista, ou a pregação
para a conversão religiosa, ou a "divulgação
doutrinária". O Espiritismo passa a ser o conteúdo
pronto que, movimentado pela estrutura empresarial otimizada, deve
ser estendido ao mundo, a fim de iluminá-lo. Para isso, a Casa
deve erigir-se em um patamar de vigilância doutrinária
severa, a fim de impedir que algo não previsto pela Doutrina
seja divulgado ou debatido, como também para impedir que práticas
ocorram que igualmente não estejam previstas pelo códice
aprovado e reconhecido.
Necessário dizer que tais condições
não se operam completamente. Em sua maioria, as Casas Espíritas
são locais simples, vazados de uma busca autêntica de
fraternidade e amor. Além disso, as pretensões de poder
e instrumentalização sofrem resistências - pacíficas
ou não - de toda ordem. Na verdade, manter sistemas de controle
consome enorme energia vital dos controladores, e como, dentro do
meio espírita, tais sistemas jamais podem assumir uma forma
excessiva ou explicitamente violenta, seus mecanismos acabam fracassando
ou exibindo falhas, em meio das quais ou os grupos se esvaziam, ou
se transformam para melhor.
Fiquemos por aqui, por enquanto. Na
próxima parte, tentaremos apresentar a prática
da comunicação social espírita como
uma das saídas para esse processo.
PARTE 9:
Esta é a última parte da série que iniciei há
algumas semanas. Voilá.
No texto anterior, extremamente sintético,
tendo em vista a rede de fundamentações que o sustenta,
efetuamos um rápido trânsito por uma sociologia crítica
do movimento espírita brasileiro. Neste, trabalharemos saídas
comunicacionais práticas, algumas delas em regime de experimentação.
Nunca é demais lembrar que
um processo de comunicação social espírita é
sobretudo a construção de uma ética específica
de relação social: a ética de
fraternidade, entendida como o desenvolvimento de capacidades
de estabelecer relações pacíficas com
as diferenças dos outros. Isso, portanto, faz com
que se extrapole a mera atuação de natureza condutivista
e interesse divulgador sobre "meios" de comunicação,
abrangendo os fundamentos das relações sociais permeadas
pelo Espiritismo.
Assim, a atividade de comunicação
no meio espírita, para guardar a consistência com este
conjunto de idéias, caracterizar-se-á pela atuação
dentro de quatro princípios básicos (os três primeiros
são requisitos fundantes da democracia, e o último,
da fraternidade ou da solidariedade social, para a qual a democracia
é condição necessária, porém não
suficiente):
1. O acesso
Viabilização dos recursos
do Espiritismo para todos os tipos de pessoa e público. Nesse
sentido, utilização dos recursos da tecnologia e da
linguagem, da didática e das possibilidades materiais de investimento,
viabilizando ao máximo as condições de acesso.
2. A disponibilidade
Às pessoas que acessarem, disponibilizar
de modo heterogêneo e livre o processo de pensamento, a fim
de que o aprendizado espírita seja libertador e não
dogmatizante, e a fim de que a prática do Espiritismo seja
orientada para a autonomia do sujeito e não para o controlismo
hierárquico.
3. A interatividade
Estabelecer cada vez mais ambientes
de dialogicidade, nas quais haja condição de fala de
todos os que desejarem participar. Este entendimento significa a busca
de situações nas quais as formas monologais sejam convertidas
em modos dialógicos de interação. No campo da
comunicação verbal pública (exposição,
oratória), a abertura para a troca de idéias, o debate
fraterno (atendimento às dúvidas das platéias)
e a maiêutica (inversão temática, dentro da qual
o expositor pergunta e o público constrói em conjunto
com ele as reflexões e respostas). No âmbito da didática,
o estímulo a cursos interativos. No plano das relações
da casa espírita com os diversos públicos, inserir a
preocupação com o ouvir, e não apenas com o falar.
4. A alteridade
A relação pacífica
com a diferença (alteridade, ecumenismo).
Desenvolver esferas públicas, abrangendo temáticas de
amplo espectro e de alto interesse social, nas quais todas as parcelas
interessadas da sociedade tenham ampla condição de trazer
suas contribuições. Buscar ali consolidar uma ética
autêntica de fraternidade, isto é:
- a) a superação,
pelos espíritas, da indiferença em relação
a identidades culturais que não lhe sejam imediatamente
afins;
- b) a aceitação,
pelos espíritas, de manter em regime de fraternal proximidade
aqueles que defendam ou acreditem em doutrinas e práticas
diferentes;
- c) a construção,
pelos espíritas, do sentimento de amor e de compreensão
em relação a tais pessoas, desistindo da exigência
de que pensem como nós para estabelecerem a convivência;
e
- d) a adoção,
pelos espíritas, de uma postura na qual a manifestação
da diferença, seja ela feita pelo discurso ou pela prática,
seja encarada como oportunidade de aprendizado, e não como
risco ou perigo para a identidade espírita.
Isso implica partirmos para todos os tipos de
atividade no campo da comunicação, desde as menos abrangentes,
como a relação interpessoal simples, até as mais
amplas, como a atuação junto ao rádio, a TV e
a Internet, dotados sobretudo de uma profunda preocupação
ética: ser espírita é estabelecer uma
relação de fraternidade com o outro; ou, nos
termos de Jesus Cristo: "os meus discípulos
serão reconhecidos pelo muito que se amarem".
E, assim, ao admitirmos que a
fraternidade é relação alteritária,
agirmos sempre de maneira inclusiva, trazendo ao diálogo pacífico
todo aquele que quiser se colocar dentro dele, a ninguém excluindo.
Para isso, admitir, num plano macroscópico, a heterogeneidade
social dentro da qual o saber espiritual prospera pela intensa relação
dos homens em geral com os espíritos, e, num plano microscópico,
admitir a heterogeneidade dos pensamentos e práticas espíritas.
O traço de união (ou de unificação, se
o quiserem) será a vivência da fraternidade, a qual se
desenvolverá no âmbito extra-institucional, pois trata-se
de realização que só se dá no plano do
vivido no mundo, e não nos sistemas e estruturas institucionais,
embora estas possam e devam estar trabalhando orientadas à
defesa e à preservação de ambientes de abertura,
liberdade e fraternidade.
São planos práticos
de desenvolvimento desses princípios todas as atividades tradicionais
do movimento espírita, mas, em especial:
1. As relações
interpessoais
O desenvolvimento da fraternidade
não deve se tornar um departamento de centros espíritas
(mesmo que seja chamado de "departamento de relações
fraternas"), pois isso significaria a institucionalização
ou a funcionalização daquilo para o qual deveria ser
a própria cultura dos agrupamentos espíritas. A idéia
da fraternidade como relação de alteridade deve ser
difundida em estudos, cursos e demais atividades, a fim de que possa,
paulatinamente, se transformar em vivência, em signo da convivência.
2. As relações
intra-institucionais
Como as instituições
são estruturas imaginárias que tendem a consolidar uma
cultura de relações de natureza sistêmica, isto
é, mediada por interesse e poder, é enorme o risco de
tais estruturas se transformarem em lugares de controle e de instrumentalização,
ao invés de contribuirem para a emancipação do
espírito humano. Por tal razão, é importante
que o espírito de serviço seja constantemente motivado
no âmbito das diretorias e coordenadorias. Primeiro, pelo estabelecimento
de uma ética consensualista para as tomadas de decisão
(exceto nos casos de emergência, dos quais dependa a vida ou
o equilíbrio de outrem, quando, então, nem sempre se
torna possível aguardar que todos sejam ouvidos e considerados).
Segundo, pelo incentivo à atitude humilde e servidora, por
parte dos dirigentes, buscando assim um espírito de colaboração
e de trabalho em equipe, ao invés de uma relação
de chefia/subalternidade. Terceiro, pela orientação
das atividades no sentido da liberdade e da felicidade de todos os
envolvidos, sem as quais a estrutura pouco vale, mesmo que demonstre
eficiência na geração de bens e serviços.
E, quarto, desenvolver redes e normas que protejam as pessoas dentro
da instituição, de sorte que as relações
instrumentais e estratégicas tenham pouca condição
de prosperar, fato que, se alcançado, com o tempo converter-se-á
em uma cultura institucional dentro da qual a democracia e a fraternidade
terão livre e protegido campo de desenvolvimento.
Isso fazendo, a fraternidade
tenderá a predominar em todas as relações fundadas
pela instituição espírita, tanto no
âmbito interno, entre cooperadores e entre estes e os demais
públicos que, por razões diversas, adentrarem o espaço
institucional, quanto, no âmbito externo, nas relações
formais e informais que os grupos estabelecerem com as diferentes
instâncias da sociedade, visando a realização
de benefícios sociais.
3. As relações
inter-institucionais
As preocupações com
a constituição e a manutenção de políticas
de liberdade e fraternidade prosseguem nas relações
inter-institucionais, que, no meio espírita, podemos repartir
em três tipos básicos: (a) relações entre
centros espíritas, (b) relações com organismos
unificadores ou associativos inter-institucionais e (c) relações
entre instituições espíritas e não espíritas.
A idéia geralmente cultivada
no movimento espírita tem sido a de que os órgãos
unificadores (as federações espíritas, especificamente)
seriam guardiães da pureza doutrinária (aquilo que,
como vimos em textos anteriores, no início era a luta pela
preservação dos textos originais de Kardec, e se torna,
com o tempo, preservação das idéias espíritas
básicas estabelecidas por Allan Kardec, usualmente derivando
para uma postura dogmática no plano doutrinário e ritualista
no campo da prática), no estabelecimento e na garantia de uma
identidade cultural espírita, vinculando apenas as instituições
que adiram a esse modelo, postulando para si a unicidade do direito
de federar instituições e instituindo fronteiras e rótulos
de exclusão. Com isso, busca-se na prática - embora
não se admita publicamente - manter nas federações
a exclusividade dos vínculos políticos, evitando a liberdade
de organização inter-institucional e determinando uma
postura que tende ao condutivismo nas relações das federações
para os centros e destes para a sociedade.
Claro que tais características
são tendenciais. Muitas federações e centros
espíritas têm se aproximado de uma prática mais
dialógica e democrática. Nesse sentido, nossas
sugestões são:
Estabelecer a ética
da fraternidade como superior às especificações
de conteúdo doutrinário na definição da
identidade cultural espírita e, portanto, como critério
fundamental de unificação inter-institucional. Assim
fazendo, supera-se o conceito de "movimento paralelo", que
se contrapõe ao de "movimento oficial" ou "movimento
federativo", pela admissão da heterogeneidade
das interpretações e das práticas do Espiritismo,
e pela busca da união e da unificação no único
campo onde ela faz sentido: o da realização
pragmática da orientação ética do amor
ao próximo, por mais diferente que este seja. Claro
que, conforme as conjunturas que se apresentem, as possibilidades
de inclusão serão limitadas pelas dificuldades geradas
pelos conflitos que a diferença dos outros sempre traz; tais
dificuldades devem ser encaradas como desafios à ética
proposta e, assim, as eventuais impossibilidades dialógicas
encontrarão na insistência da convivência ao longo
do tempo a expectativa de que soluções fraternas ocorram.
Inverter o paradigma condutivista,
para o qual o saber se encontra no centro do sistema e as relações
deste com os pontos periféricos se dá em regime de subalternidade,
imposta ou consentida. A proposta é de que se admita um paradigma
reticular, pelo qual o saber se encontra distribuído por toda
parte e que a natureza do centro do sistema é criar condições
de livre dialogicidade entre os diferentes saberes, a fim de que a
fragmentação não implique exclusões e
a interação entre eles possa gerar novos saberes. Falando
da prática espírita, isso significa transformar
as federações em instâncias de serviço
e apoio aos centros espíritas - estes, sim, considerados
os lugares onde o saber espírita se consolida e prospera, desistindo
aquelas instituições das pretensões de poder
que não raro as animam, quando se colocam como orientadoras
ou fiscais das interpretações e práticas do movimento.
A democratização do movimento, buscada por tantos grupos
no Espiritismo brasileiro às vezes de forma anti-fraterna,
precisa se dar em condições de fraternidade, caso contrário,
as iniciativas democratizantes estarão se auto-contradizendo
por suas próprias práticas autoritárias. O diferencial
político da identidade espírita não é,
desse ponto de vista, a democracia, mas a fraternidade,
embora se deva reconhecer que esta não é possível
sem aquela.
4. As relações
mediadas pelas instituições de comunicação
Eis que, dentro desse contexto teórico,
incluem-se também os processos de comunicação
pública mediados pelas instituições de comunicação
social. Jornal, rádio, televisão, internet
e eventos diversos de relacionamento público precisam ser pensados
em termos que incluam mas superem o mero interesse de divulgação
doutrinária, ou de propaganda da mensagem espírita.
Isso porque a ética da relação é tão
ou mais importante do que os conteúdos a serem tratados. A
mensagem espírita perde completamente o seu valor significante
se as relações sociais que a sustentam forem fundadas
na disputa de sentidos, na guerra anti-fraterna, em processos de exclusão
e poder. Ninguém pode imaginar que haja "cruzadas
espíritas" a fazer, a fim de derrotar o suposto paganismo
dentro ou fora de nossas esferas institucionais, sem efetuar, de novo,
uma ruptura ética e prática com os fundamentos do pensamento
espírita...
Isso, claro, não significa
contenção do livre trânsito das idéias
e do debate. Ao contrário, o que se postula é simplesmente
que tais intercâmbios se dêem em condições
de fraternidade.
As sugestões práticas
que podem ser elencadas são muitas e variadas. Mencionamos
as seguintes, sem mergulhar em detalhes:
-
Fazer jornalismo: mais
atenção para os formatos reportagem e entrevista,
aplicando-se a ética do jornalismo.
-
Inserção
do sujeito não espírita, em regime de diálogo,
no debate espírita.
-
Busca de interatividade
positiva e aberta com os públicos conectados.
-
Geração
de benefícios sociais, pela participação
em campanhas públicas, em condições de parceria
com ONGs, governos, etc.
-
Inserção
de atividades artísticas (música, teatro, literatura,
etc.) como elementos de constituição de interações
fraternas entre as pessoas.
-
Manutenção
do debate explícito a respeito da ética de fraternidade,
chamando sempre a atenção para as suas condições
de validade.
Estas são algumas das sugestões, cuja prática
temos iniciado e cujos resultados temos observado. Fundar uma nova
sociedade é o objetivo fundamental do Espiritismo, no plano
social. E a ética comunicativa, como elemento
fundante da fraternidade, parece-nos ser imprescindível e indispensável
para que esse desiderato seja alcançado.
Agradeço profundamente aos
que têm levado a sério as idéias enfeixadas nestes
textos e, como sempre, coloco-me à disposição
para a interlocução, dentro da qual possamos aprender
uns com os outros. Afinal, essa interlocução, como já
devem ter percebido os que têm acompanhado esta exposição,
é a própria prática das idéias aqui enfeixadas,
viabilizando-as na vida.
Na verdade, estas idéias, embora
arranjadas e fundamentadas de modo mais atualizado, em face de contextos
da ciência e da filosofia, são tão velhas quanto
o mundo. O que há de ser transformador é o sucesso prático
do diálogo. Não são as palavras, mas as práticas
(inclusive a prática do diálogo) que mudarão
o mundo.