Introdução
As temáticas da “unificação”
e da “pureza doutrinária” não apenas têm
sido dominantes no espiritismo brasileiro, ao longo de sua história,
como, especialmente no interior do Brasil, gozam de uma legitimidade
entre os espíritas que beira o consenso. Raros são os
intelectuais orgânicos do espiritismo (oradores, escritores,
articulistas etc.) que ousaram contestar tais noções,
como direcionadoras do processo de organização do pensamento
e das práticas espíritas, tendo havido muitos que as
defenderam.
Atualmente, com a crescente e rápida
penetração da Confederação Espírita
Pan-Americana (Cepa) dentro do movimento espírita no país,
começam a surgir os questionamentos a estes termos, tornando
necessária uma reflexão mais profunda sobre os sentidos
históricos e sociais que cercam essas noções,
até para que as diferenças de posicionamento teórico
ou político possam ser úteis, o quanto possível,
ao enriquecimento das interpretações, mais do que ao
fomento de divisões internas.
Uma reflexão dessa natureza
é a pretensão deste trabalho. Para isso, procura-se
demonstrar, inicialmente, o sentido contraditório das políticas
de unificação e pureza doutrinária ao, por um
lado, contribuir para a consolidação do processo de
institucionalização do espiritismo brasileiro e, por
outro, justificar o enrijecimento das possibilidades de diferenciação
de interpretações e práticas espíritas.
Em seguida, busca-se posicionar analiticamente a atual condição
histórica do espiritismo organizado no Brasil, na qual a exigência
ético-política de democratização, embora
improvável, se torna cada vez maior no interior do movimento,
sendo este, hipoteticamente, o principal leitmotiv da penetração
de grupos como o da Cepa.
1. Unificação e Pureza Doutrinária:
A Institucionalização do Espiritismo no Brasil
Define-se aqui a institucionalização
de um movimento como sendo o seu processo de autonomização
sistêmica, no sentido habermasiano (1)
do termo. Em termos de filosofia social, isso significa o descolamento
dos contextos do mundo da vida das ações patrocinadas
pelo movimento em referência, pela crescente utilização
de mecanismos de controle e de poder, respaldados por instituições
capazes de garantir a eficácia desses mecanismos ao longo do
tempo. Em outras palavras, trata-se da modificação das
bases de legitimidade do movimento em causa, quando deixa de referenciar-se
nos sentidos sociais — na maioria das vezes, de onde ele se
originou — para referenciar-se nas suas próprias instituições,
as quais, nesse sentido, se “autonomizam” das demandas
sociais. Ou, como afirmamos em outro texto, “a instituição
passa a ter como principal finalidade a sua própria sobrevivência
e o seu crescimento, e não a solução dos graves
problemas sociais do mundo” (Signates,
2002).
Nos movimentos sociais, identificamos
dois modos de institucionalização que se superpõem,
adquirindo, cada um, as peculiaridades da situação histórica
concreta em que se encontram: os processos de dogmatização
e de ritualização, correspondentes, respectivamente,
aos âmbitos simbólico e prático das ações
coletivas. A dogmatização é a consolidação
de um sistema de ideias e crenças; e a ritualização,
de um sistema de ritos e práticas; ambos a serviço da
consolidação de uma definição identitária
forte, centrada em parâmetros de fidelidade ideológica.
Por razões que nos parecem óbvias, e que não
discutiremos aqui, quando sofre uma mudança assim, o movimento
social perde o seu eventual caráter revolucionário de
origem e torna-se conservador.
A hipótese com a qual este
texto trabalha é a de que o movimento social espírita
vive hoje o apogeu de um processo de institucionalização
sistêmica, cujo marco histórico fundamental foi a criação,
em 1949, do Conselho Federativo Nacional (CFN), junto à Federação
Espírita Brasileira (FEB), cuja atuação contribuiu
para consolidar um modelo hegemônico, tanto de interpretação
quanto de prática do espiritismo no Brasil, e que hoje alimenta
pretensões de se estender pelo mundo.
A observação dos conflitos
que pontuaram o movimento espírita na primeira metade do século
20 não deixa dúvidas de que a grande questão
àquela época era o processo de legitimação
do espiritismo na sociedade brasileira e, para isso, o problema da
identidade espírita aparecia como o principal. Desde o final
do século 19, o espiritismo brasileiro se dividia entre místicos
e cientificistas ou, em outra perspectiva, os “roustainguistas”
e os “kardecistas”, desenvolvendo-se aí a disputa
pela hegemonia do sistema de ideias e crenças. Igualmente nessa
época conflitavam as identidades relacionadas às heranças
culturais européia e afrobrasileira, que repercutiram na opinião
pública como sendo o “alto espiritismo” e o “baixo
espiritismo”, desencadeando-se nessa tensão a afirmação
da identidade espírita no âmbito das práticas
e ritos, fortemente marcada por conflitos étnicos e de classe.
Houve, é claro, diversas outras
rupturas no movimento espírita, ao longo de sua história
no Brasil e várias delas já examinadas por cientistas
sociais. Entretanto, foram, em sua maioria, divisões internas
que, ou foram absorvidas com o tempo, como foram os casos da Oscal
(2) e da Concafras-PSE, ou se tornaram
movimentos ou instituições independentes, como o Racionalismo
Cristão (3) e a LBV (4),
cujos núcleos identificadores não mais se concentram
na identidade espírita. A luta ideológica pela identificação
kardecista e pela exclusão das correntes e práticas
típicas da cultura negra, ao contrário, não foi
episódica, nem localizada: manteve-se no centro nervoso das
disputas pela hegemonia dos sentidos do movimento espírita,
percorreu com peculiaridades específicas todas as regiões
brasileiras e constituiu o caldo de cultura no qual se consolidou
o processo de institucionalização sistêmica do
espiritismo no Brasil.
Tanto a discórdia teológica
envolvendo a natureza do corpo de Jesus, quanto a disputa litúrgica
para manter a ritualidade espírita afastada das tradições
culturais e práticas negras, constituíram lutas pela
hegemonia da identidade do espiritismo. Tais lutas serviram de base
e referência para a consolidação de instituições
de poder no movimento. Na virada do século 19 para o século
20, a supremacia dos místicos sobre os cientificistas estabeleceu
a FEB como instituição referencial do movimento no Brasil.
Na primeira metade do século 20, desdobra-se essa divisão
entre os próprios místicos, na divergência entre
Kardec e Roustaing, concentrada, sobretudo, na região sudeste
do Brasil, que culminou na política de “unificação”,
determinada institucionalmente pela criação do CFN,
em 1949, e pela consolidação das federativas estaduais,
ao longo das décadas posteriores.
As divergências teóricas
e teológicas, contudo, tinham — como, de certa maneira,
têm até hoje — um pé no amplo plano das
práticas rituais. Desde o século anterior, o espiritismo
aos moldes brasileiros, adaptado da herança francesa, conflitava
violentamente com as tradições afrobrasileiras, remanescentes
dos cultos escravos. É nesse campo de luta simbólica
que se constrói o conceito de “pureza doutrinária”,
como política de policiamento ideológico espírita.
No plano da definição identitária, esse processo
culmina com a publicação, pela FEB/CFN, do manual “Orientação
ao Centro Espírita - 1980”. Essa política conferiu
não apenas uma “disciplinarização“,
como sugere Giumbelli (1997, p. 279),
em sua tese doutoral, isto é, uma relativa unidade de funcionamento
para os centros de todo o país, a partir de estratégias
de regulação das práticas espíritas, mas
também serviu de base para todo o processo de institucionalização
sistêmica do espiritismo no Brasil.
É, pois, correto concluir que
a institucionalização sistêmica do espiritismo
brasileiro operou-se fundamentada por duas tendências: a dogmatização
do sistema de pensamento de Allan Kardec e a ritualização
das práticas consolidadas pela marcação das diferenças
em relação às tradições negras.
Resta, então, saber quais as vantagens e desvantagens que essas
políticas trouxeram, não apenas para a afirmação
da identidade espírita brasileira, mas, sobretudo, para a conformação
institucional do movimento neste início de milênio, a
fim de identificarmos, até onde for possível, as demandas
sociais e políticas espíritas da atualidade.
Parece-nos autoevidente que o processo
de dogmatização contribuiu para impedir a formação
do que poderia ser denominado de uma “sociedade do conhecimento”
na esfera espírita, uma vez que privilegia a ideia de um “pensamento
único” dotado de legitimidade para suportar a identidade
espírita.
O que Allan Kardec denominou “unidade
de princípios” (Kardec, 1890, p.
342), como elemento de justificação da necessidade
de que os adeptos, pela via do estudo, se mantivessem “esclarecidos”
quanto à nova ciência, acabou se tornando toda uma política
de transformação de seu pensamento — evidentemente
interpretado de certa forma — em critério de verdade.
Certamente, esta opção decorreu na adequação
do espiritismo francês às práticas católicas
que constituíam a experiência cultural possível
da elite brasileira do século 19, desenvolvendo, assim, um
autêntico relacionamento teológico com a obra de Kardec,
apesar de suas pretensões “científicas”,
as quais, evidentemente neste contexto, tornaram-se meramente ideológicas
(Signates, 2000a).
O processo de ritualização
ocorre muito mais tardiamente e é questionável se já
se completou, embora haja sinais fortes nesse sentido. De toda forma,
é possível afirmar que seu sucesso é bastante
aparente, uma vez que há uma pressão constante pela
conformação do espiritismo prático decorrente,
a nosso ver, primeiro da postura histórica nesse sentido dos
principais intelectuais orgânicos do movimento espírita
(ver, por exemplo, Amorim, 1957; Lex, 1988;
Anjos, 1989; Pires, 1979). São fortes os indícios
de que as motivações identitárias do espiritismo
brasileiro se situaram, sobretudo, na rejeição do mediunismo
praticado pela cultura negra, ideologicamente inspirado nas interpretações
da antropologia racista e evolucionista eurocêntrica do século
19, na qual o próprio Kardec (1890, p. 161 e seg.) se posicionou
e que somente seria superada no Brasil a partir da década de
1930, mas que, por conta da inteira ausência de um diálogo
com o meio científico, permaneceu no espiritismo brasileiro.
A opção por uma política
de demarcação identitária contra as demais práticas
de mediunismo situou o espiritismo brasileiro muito mais próximo
das religiões cristãs tradicionais do que dos cultos
mediúnicos, repontando, com isso, a proeminência de uma
demarcação de classe e etnia, na produção
de sua identidade específica. Essa característica é
portadora de contradições éticas enormes, com
as quais as lideranças espíritas terão que, mais
cedo ou mais tarde, se defrontar.
Ambas estas condições
chamam a atenção para a contradição profunda
entre os modelos europeu e brasileiro de espiritismo, aquele, comprometido
com o ideário iluminista e racionalista francês, e, este,
transformado em uma grande religião organizada, que se orienta
para o individualismo e as terapias de autoajuda, numa dinâmica
de acentuada institucionalização sistêmica. A
questão, nesse plano, é até que ponto se faz
possível restabelecer o saber e as práticas espíritas
em face das conquistas da modernidade, de que ele próprio é
originário. Pensar essa questão é questionar
o próprio futuro do espiritismo como movimento social.
2. Espiritismo e Modernidade:
Entre o Saber e a Democracia
Indubitavelmente, o conhecimento científico
e a democracia são as grandes e irrenunciáveis conquistas
da modernidade. Mesmo que, no âmbito do pensamento econômico,
ainda se possam identificar posturas anticapitalistas consistentes
ou, no quadro das opções culturais, seja viável
uma crítica fundamentada do consumismo e da colonização
ideológica e etnocida, mesmo assim, todas estas possibilidades
críticas, capazes ou não de fundar movimentos contestatórios
orientados à transformação social, apenas seriam
possíveis com a manutenção da racionalidade filosófico-científica
como conquista máxima do pensamento, e da racionalidade ético-pragmática
da democracia como conquista máxima da política.
Importante considerar que, nesta análise,
não se quer cerrar os olhos para o regime de tensão
que constitui a própria convivência destas duas racionalidades
entre si. Numa rápida análise pragmática, parece
simples constatar que, por um lado, a racionalidade filosófico-científica,
domínio da episteme, tende a exacerbar a sua pretensão
de verdade e, com isso, afirmar os demais setores do pensamento como
“irracionais” ou “falsos” e, por outro, a
racionalidade da política e da democracia, âmbito da
doxa e da retórica, tende ao populismo e à demagogia,
especialmente em sociedades como as contemporâneas, onde as
tecnologias de comunicação se superpõem, a tudo
virtualizando num jogo sem fim de imagens e discursos. Nem o saber
especializado e sistematizado admite fácil a livre circulação
da opinião comum, nem as escolhas democráticas podem
ser necessariamente vinculadas nem mesmo às condições
do saber e da informação historicamente conquistadas
e disponíveis. Não há, contudo, como dispensarmos
qualquer dessas conquistas, pois os reinos da ignorância e do
despotismo, condições opostas àquelas racionalidades,
são igualmente indesejáveis.
Esse posicionamento, contudo, embora
predominante, jamais foi consenso na história da modernidade.
O Iluminismo, na verdade, viveu intensamente a contradição
dessas duas racionalidades. A ideia do “déspota esclarecido”,
inspirada na república platônica, foi por muito tempo
a expressão política da confiança desmedida nas
capacidades da razão em forjar a felicidade humana —
uma confiança, aliás, que marcou também o espiritismo
desde a sua origem. O século 20, porém, com o seu rastro
de atrocidades racionalmente coordenadas, que vão desde o Estado
nazista até as atuais guerras tecnológicas e seus mísseis
teleguiados com precisão “cirúrgica”, foi
marcado pela crescente desconfiança nas possibilidades da razão.
Assim, entre a denúncia pós-moderna do fim da razão
e as esperanças neo-iluministas de uma razão não
despótica, comunicativa e enraizada na ética, dentro
de uma situação histórica de derrocada do chamado
socialismo real e, por conseguinte, dos horizontes revolucionários,
a democracia emerge no mundo contemporâneo praticamente como
um valor em si, como a única forma de manter as conquistas
da inteligência humana em condições de defesa
contra a tirania dessa própria inteligência. Em síntese,
a busca da atualidade é a da razão plural, da razão
múltipla: não há racionalidade na ditadura, pois,
ante o pensamento único, a primeira coisa que se perde é
justamente a racionalidade.
Este é um macrocontexto dentro
do qual o espiritismo se insere contraditoriamente. Marcado desde
a origem pelo pensamento positivista, o espiritismo jamais conseguiu
superar essa herança epistemológica. Allan Kardec trabalhava
com os conceitos de verdade e razão únicas, de uma evolução
linear do pensamento científico e de um modelo comprovacionista
da atividade científica. Entretanto, Kardec praticava a ciência
que ensinava e, certamente por isso, diversas vezes relativizou a
conceituação positivista chegando, algumas vezes, à
quase antecipação da discussão filosófica
e científica. Este, por exemplo, é o caso, que analisamos
em outro artigo (Signates, 1998), da
antecipação de uma teoria consensualista de verdade,
na formulação genial da tese do “controle universal
do ensino dos espíritos” (Kardec,
1864, p. 28 e seg.). Além disso, mesmo que admitamos,
como é forçoso fazer, um profundo enraizamento das ideias
de Allan Kardec no positivismo e no racionalismo francês, seria
injusto declarar que o codificador do espiritismo aprovaria a eleição
de sua obra a dogma do espiritismo e a busca continuada por garantias
institucionais e políticas de manutenção de uma
identidade ideológica centrada no pensamento único.
Consideradas, ainda, as exigências
de saber e democracia das sociedades atuais, parece óbvio considerar
que políticas de unificação, com base nos critérios
da pureza ou da vigilância doutrinária, dificilmente
conduzirão a comunidade espírita a um formato cognitivamente
plural e pragmaticamente democrático de espiritismo. Tanto
a democracia quanto o saber, demandam um ambiente de liberdade de
pensamento e ação, para se consolidarem em termos de
seus próprios objetivos. A questão, portanto, neste
ponto é verificar até que ponto o espiritismo brasileiro
tem condições concretas de reverter um quadro de pensamento
único, institucionalmente garantido, no âmbito das relações
internas, pelos processos de disciplinarização, de exclusão
e, no quadro das relações com os demais grupos sociais,
pela insistente defesa da demarcação contínua
das fronteiras identitárias. Com a análise desta problemática,
concluiremos estas reflexões.
3. Das Improbabilidades do
Espiritismo Democrático
A explicitação da metodologia
de análise com que encerramos este artigo é, a nosso
ver, profundamente significativa neste momento, pois serve-nos para
deixar tão clara quanto possível a perspectiva com que
temos buscado analisar as graves questões do movimento espírita
brasileiro. Intentamos um trabalho sociológico consistente,
capaz de implicar em uma teorização sistematicamente
fundamentada e uma observação adequada das condições
concretas do espiritismo brasileiro. Nesse sentido, afastamo-nos dos
modelos de textos espíritas típicos, mesmo daqueles
produzidos pelos seus intelectuais orgânicos, por deixarmos
de lado o cotejamento doutrinário de textos consagrados, ou
mesmo a busca por algum sentido de origem, perdido nas “distorções”
da história espírita. E, dentro dessa opção,
procuramos trabalhar a partir das condições concretas
da vida social espírita.
É nessa perspectiva que procedemos
a uma investigação preliminar das condições
de possibilidade da vida democrática espírita, especialmente
no que diz respeito às de uma democracia do conhecimento definida,
aqui, como sendo a criação hegemônica de espaços
de debate público, filosófica ou cientificamente orientados,
para a produção crítica de uma forma de conhecimento
espiritualista continuamente reflexivo. Assim, principia-se por reconhecer
que não basta a articulação de argumentos, mesmo
que fortemente referenciados nas obras básicas, isto é,
mesmo que ainda enraizados numa interpretação dogmática
do pensamento espírita. Em outras palavras, e em termos espíritas,
a questão da democratização do espiritismo não
é uma mera questão doutrinária, mas um problema
político, e que, portanto, deve ser politicamente considerada,
na análise de suas condições de possibilidade.
Ao constatarmos um avançado
processo de institucionalização em curso, em termos
de sua racionalização instrumental, pela criação
de condições institucionais cada vez mais sólidas
de dogmatização e ritualização, parece
inclusive justificável trabalhar com a hipótese de que
nem mesmo é provável que uma democratização
nos termos de uma sociedade do conhecimento venha a acontecer. Na
virada do século 21, há toda uma cultura já construída
nos termos de uma autoreferencialidade teórica e prática
de tipo doutrinário. Em outras palavras, e isso nos parece
importante considerar, o processo de institucionalização
sistêmica do espiritismo brasileiro deu certo, do ponto de vista
de sua funcionalidade e sua autosustentabilidade.
Há, pois, por um lado, uma
ausência significativa de demanda social por democratização
interna, a qual aparece substituída pela utilização
instrumental e individualista dos recursos espirituais providenciados
pela ritualidade consagrada (palestras, cursos, passes, desobsessões,
tratamentos etc.), alternativa cômoda à qual as instituições
lançam mão integralmente, uma vez que satisfaz os anseios
institucionais típicos, que são a viabilização
dos recursos materiais e humanos de sua sustentação
e a necessária passividade dos públicos que as buscam.
As pessoas vão aos centros à procura de conforto e é
exatamente isso o que ali recebem, numa relação típica
de consumo terapêutico de serviços religiosos. Não
há porque, então, problematizar aquilo que funciona
tranquilamente.
Vez por outra surgem, episodicamente,
demandas pela democratização das instâncias tipicamente
políticas do movimento, sobretudo das federativas estaduais.
Porque não possuem, com suas filiadas, uma relação
de dependência, seja material, seja simbólica, as federações
são alvos mais frágeis dessas demandas. Instituições
de poder exclusivamente simbólico, as federações
espíritas não possuem, como é característico
dos centros de poder de outros movimentos e instituições
religiosas, os chamados “meios materiais de controle”,
que, no mundo capitalista contemporâneo, são tipicamente
dois: a força e o dinheiro. Por não deterem a capacidade
orçamentária, nem efetivos de repressão, o poder
das federativas espíritas inexiste, para além da capacidade
de monopolizar a produção de interpretações
em eventos ou periódicos. É preciso que se diga que
essas instituições trabalham fortemente nesse sentido,
continuamente movimentando processos de exclusão que, como
analisamos em outro trabalho (Signates, 2000),
acontecem de forma contraditória e subreptícia, jamais
confessada. Entretanto, por não disporem de meios extrassimbólicos
capazes de garantir o desempenho de suas pretensões de poder,
estas instituições são reconhecidamente frágeis,
sendo possível verificar, pelo vazio de suas assembléias,
em relação ao total de instituições espíritas
existentes nas suas regiões de atuação, que a
maioria delas mantém uma política de “boa vizinhança”,
mas ignora amplamente as suas decisões e recomendações.
Essa fragilidade parece se manifestar,
sobretudo, nos estados brasileiros onde há mais de uma instituição
com pretensões federativas, o que é bastante natural,
uma vez que nessas regiões, a federativa não dispõe
da capacidade plena de controlar a produção de sentidos.
Nesses casos, aparentemente, a tendência de buscar formas mais
democráticas de relacionamento com as instituições
filiadas é tanto maior quanto maior for a complexidade das
relações historicamente construídas dentro do
movimento regional. Um caso típico para a observação
pode ser, por exemplo, a diferença de posicionamento ante a
recente emergência da Cepa no Brasil, das federativas de São
Paulo e do Rio Grande do Sul. A primeira, de tímida e complicada
abertura para o diálogo dentro de condições kardecistas
básicas e, a segunda, de inteiro fechamento e conflito aberto.
Tais exemplos servem igualmente para reforçar a tese de que
não se pode analisar as conflitualidades do espiritismo apenas
pela perspectiva doutrinária, devendo o analista inserir categorias
de contexto, a fim de compreender as razões políticas,
econômicas, culturais e históricas que cercam e alimentam
tais conflitos.
Um outro lado dessa questão
diz respeito às relações do movimento espírita
com os demais grupos sociais. Consolidado nos parâmetros de
sua identidade e articulado institucionalmente em condições
pouco democráticas, mas não problematizadas, o movimento
espírita brasileiro dificilmente iria pretender outra relação
com os demais grupos, que não a de divulgação
e conversão. Também o diálogo é desnecessário,
sendo até sentido como “perigoso”, uma vez que
a intromissão de novos olhares, conceitos ou alternativas,
mesmo que cientificamente fundados nos ritos discursivos espíritas,
constituiria um risco para a constância e a tranquilidade teórica
ou ritual das instituições. Em outras palavras, se a
democracia não é desejável na vida interna do
movimento, o que não dirá nas relações
com o mundo não espírita...
Essa alternativa, porém, nesse
caso, não ocorre pacificamente. Se, no ordenamento interno
do movimento, inexistem condições rigorosas de exercício
de poder, o mesmo não se pode dizer no âmbito das relações
sociais e sistêmicas mais amplas. O espiritismo brasileiro é
pródigo em instituições de assistência
e promoção social, as quais, pela quantidade e pela
dimensão que tomaram, dependem hoje fortemente de verbas estatais
e são crescentemente fiscalizadas pelas organizações
governamentais, baseadas em legislações cada vez mais
rígidas, pois instituídas num quadro de falência
do Estado do bem-estar social e na consequente afirmação
de um “terceiro setor”, integrado pelas organizações
da sociedade civil (Mestriner, 2001).
Por não poder se ausentar da
regulação do Estado e por depender crescentemente das
verbas destinadas pelos governos, a área de promoção
social espírita constitui um interessante espaço de
discussão das relações “externas”
do movimento espírita em suas conexões sistêmicas.
Nesse sentido, como dissemos em outro trabalho (Signates,
2002), “não nos parece ser possível discutir
promoção social sem falar da relação entre
o Estado e a sociedade civil. Isso porque, com raras exceções,
as questões de promoção e assistência têm
sido tratadas pelos espíritas apenas a partir de uma perspectiva
voluntarista, deixando de fora as temáticas políticas
que envolvem toda a manutenção de suas maiores instituições.
Em outras palavras, o espiritismo é capaz de debater a assistência
social sem sequer citar o Estado ou fazer qualquer referência
à questão das políticas públicas. Trata-se
de uma lacuna incompreensível e extremamente perigosa. Sem
que se pretenda fazer qualquer acusação, até
porque, ao que saibamos, inexiste pesquisa específica a respeito
das relações entre o Estado e o movimento espírita,
é preciso considerar que o silêncio no debate público
a respeito desse assunto deixa em aberto as relações
institucionais para todo tipo de prática, inclusive as que
configuram a má política, como o clientelismo, a corrupção,
a distribuição de propinas, o aparelhamento de interesses
partidários e a troca de favores — e tudo isso, provavelmente,
sob o pretexto de garantir a “sobrevivência da obra”.
Observa-se, deste relato, que as práticas
de relacionamento do movimento espírita com os demais grupos
sociais e, inclusive, com o Estado, obedecem a um ordenamento sistêmico.
As instituições espíritas tendem a assumir, nesse
sentido, modelos empresariais de funcionamento, nos quais os referenciais
de eficiência e produção sobrepujam os interesses
de democracia ou mudança social. Esta parece ser a principal
razão pela qual as relações com o Estado se tornam
cada vez mais profundas, mas, ainda assim, a temática política
jamais é publicamente discutida.
Tais condições, reunidas,
caso esta análise esteja correta, não tornam muito provável
a realização de um processo de democratização
do espiritismo. Tendo dado certo, o processo de institucionalização
sistêmica do espiritismo brasileiro desenvolveu uma cultura
institucional que o autonomiza, tornando-se relativamente independente,
tanto em relação às eventuais dissidências
internas, quanto a possíveis e improváveis exigências
exteriores — improváveis, pois o movimento espírita
no Brasil construiu uma identidade destacada dessas questões
e, além disso, a sociedade dispõe de outras esferas
para onde dirigir tais demandas.
4. Conclusão Possível:
As Esperanças Contidas
Haverá um movimento espírita
democratizado no Brasil? Conseguirão os espíritas reverter
o quadro institucionalizado que se formou e produzir uma esfera pública
capaz de realizar os sonhos iluministas de origem? Ou sucumbirá
como movimento social, vítima de seu próprio sucesso
institucional, convertendo-se de uma vez por todas em uma simples
religião organizada, reduzido à expressão terapêutica
junto às camadas médias e altas da sociedade brasileira
e à solidariedade despolitizada e caritativa na atuação
junto aos bolsões de miséria, sem jamais discutir as
causas estruturais da sua miséria ou incluí-los na sua
própria composição social?
Tais questões, angustiantes
tanto para adeptos quanto para simpatizantes de um movimento que desfruta
de legitimidade e admiração pela população
brasileira, não podem ser teoricamente respondidas. Apenas
o futuro é capaz de afirmar as opções coletivas
do espiritismo organizado.
Três proposições,
coligadas de forma dialética, contudo, pareceram-nos muito
claras ao longo da construção deste trabalho e, por
isso, com elas encerramos estes comentários. Primeiro, a necessidade
da democratização que, hoje, parece ser uma exigência
radical de sobrevivência e reestruturação de um
modelo de espiritismo capaz de oferecer respostas à sociedade
ou, nos termos dos prognósticos de Allan Kardec (1863), de
alcançar o “período da renovação
social” (6). Segundo, a preocupante
improbabilidade de que isso aconteça, devido ao estado avançado
em que se encontra a estruturação sistêmica das
instituições espíritas no Brasil. E terceiro,
a possibilidade de relativização dessa hipótese
pessimista, a partir do potencial criador de setores do movimento
espírita sintonizados com as demandas sociais e suficientemente
abertos para se repensar as condições de produção
do pensamento e da prática espírita.
Neste terceiro nível, deve-se
mencionar a atuação da Confederação Espírita
Pan-Americana que, aparentemente, abre novas possibilidades de análise.
Entretanto, embora demonstre uma vocação muito mais
democrática, em seu modo de funcionamento, este movimento não
está inteiramente ausente de alguns dos sentidos que este artigo
questiona. Cabe-nos, pois, observá-lo e colocar em debate essas
e outras questões, a fim de que se possa ajuizar de forma mais
consentânea as indicações que virão do
futuro, a partir das respostas concretas da história, forjadas
pela iniciativa coletiva dos espíritas.
Notas do Pense
(1) Jürgen Habermas, sociólogo
e filósofo alemão, integrante e herdeiro da chamada
Escola de Frankfurt.
(2) Oscal, sigla de Organização Social
Cristã-Espírita André Luiz.
(3) O Racionalismo Cristão, surgido a partir
de uma dissidência do movimento espírita brasileiro,
foi fundado pelo português Luiz de Mattos em 1910.
(4) A Legião da Boa Vontade (LBV) é
um movimento religioso e assistencial fundado por Alziro Zarur em
1950, no Rio de Janeiro, a partir de uma revelação mediúnica
a ele dirigida, em uma sessão espírita realizada em
1948, na sede da Federação Espírita Brasileira.
Desde 1979 a LBV é dirigida por José de Paiva Neto.
(5) Confraternização Nacional das Campanhas
de Fraternidade Auta de Souza - Promoção Social Espírita,
movimento itinerante surgido há cerca de 50 anos, em Goiás,
à margem do movimento espírita oficial, e que se caracteriza
pela realização de encontros nacionais durante o carnaval,
com o objetivo de dinamizar as campanhas Auta de Souza.
(6) Allan Kardec formulou, na Revista Espírita
(dezembro de 1863), o desenvolvimento histórico do espiritismo
em seis períodos: o período de curiosidade, filosófico,
de luta, religioso, intermediário e o último período,
que ele denominou de regeneração social.
AMORIM, Deolindo (1957) O espiritismo e as doutrinas
espiritualistas. Rio de Janeiro: Centro Espírita Léon
Denis, 1988.
ANJOS, Luciano (1989) O atalho: análise crítica do movimento
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AUBRÉE, Marion; LAPLANTINE, François (1990) La table,
le livre et les esprits: naissance, évolutionn et actualité
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