A questão da solidariedade
é extremamente atual. As sociedades contemporâneas, assentadas
sobre os valores do capitalismo, estão em alta medida fundadas
em sistemas de competição orientada a interesses. Essa
experiência coletiva, que invade tanto as instituições
sociais quanto os espaços privados do mundo da vida, constrói-se
dentro de uma moral egoísta, na qual a presença dos
outros só é reconhecida a partir dos benefícios
concretos que possa gerar, o que implica, em contrapartida, uma forte
indiferença em relação aos não produtivos
e uma enorme e constante violência de uns contra os outros,
especialmente os que não se adaptem às regras desse
egoísmo social. Tal sentimento, contudo, não pode se
generalizar sem criar um mal-estar social de largas proporções,
vinculado não somente à falta do outro como igual, mas
também ao stress da guerra permanente e, sobretudo, ao rastro
de miséria e sofrimento que os egoístas em competição
vão deixando atrás de si, na medida em que constróem
suas riquezas materiais e suas situações de poder. O
mundo atual é, pois, um mundo carente de solidariedade.
Este artigo pretende desenvolver uma
análise concisa do conceito de solidariedade e de suas condições
de validade (fundamentos de convivência social que caracterizam
uma vivência solidária autêntica), analisando em
seguida, rapidamente, o significado de tais condições
para a prática espírita.
Os Diversos Nomes da Solidariedade
Na tradição cristã
da religião, a vida solidária recebe o nome de fraternidade,
ideia fundada pelos cristãos primitivos, sob a perspectiva
de uma sociedade de irmãos, filhos do mesmo Deus, visto como
Pai, conforme lhes ensinara Jesus. A sociedade de irmãos funda
a igualdade na relação entre os seres desiguais, na
medida em que os vincula a um propósito comum, assegurado pela
crença no Deus único.
É no âmbito da sociologia
que a expressão recebe o nome de solidariedade, para caracterizar
os modelos descritivos e normativos de sociedades comunitárias,
dentro das quais os bens são repartidos para o usufruto comum
e as ações são coletivamente praticadas, em regime
de cooperação mútua.
Mesmo no campo da política,
é possível agregar, até certo ponto, a noção
de solidariedade ao conceito de democracia, porquanto as sociedades
democráticas pressupõem a predominância do interesse
comum e da participação pública, que são
formas coletivas de viabilização da solidariedade, para
se realizarem enquanto tal. Existem, porém, limites a essa
apropriação teórica, já que são
também consideradas democráticas as sociedades políticas
representativas, nas quais o "representante", ao agir em
nome dos "representados", finge ocupar-lhes o lugar, de
certa forma calando-os, ato que rompe, ao menos parcialmente, com
a ideia de solidariedade (embora viabilize as formas complexas de
organização social, às vezes impraticáveis
tão somente pelas redes de solidariedade). Há quem afirme
por isso que a crise atual da democracia representativa é,
na verdade, uma crise de ausência da solidariedade real.
Há diferença entre a
solidariedade, tratada como conceito base para explicar e propor uma
ordem social, e uma outra, definida como forma estereotipada e casual
de auxílio a outras pessoas. Talvez se possa afirmar que há
a possibilidade de uma solidariedade permanente, funcionando como
cimento social, e uma solidariedade instantânea, de consumo.
Para os termos deste trabalho, consideramos como autêntico apenas
o primeiro tipo, por oferecer condições para uma análise
normativa da vivência social.
Dois conceitos fundamentam a
noção de solidariedade neste trabalho: o outro e a comunicação.
Definimos o outro como sendo a manifestação da diferença,
da verdade que não se encontra no eu; e comunicação
como o movimento que começa no outro e se efetua de forma a
revelar as diferenças dele, sem que isso implique estabelecer
guerras ou disputas visando eliminar tais diferenças. O estudo
da solidariedade é, pois, essencialmente o estudo das condições
de possibilidades e limites da interação social efetivamente
comunicativa com os outros.
Condições de Validade
do Gesto Solidário
Solidariedade de fato é mais
do que prestar serviços ao outro: é um tipo especial
de relacionamento social, que depende, para se efetivar, de algumas
condições muito específicas cujo desempenho deve
ser mútuo, caso contrário significará somente
uma ação altruísta individual (o que não
a desvaloriza, embora unilateralize o exercício da solidariedade,
denotando uma ação, mas não propriamente uma
interação social, porquanto a vida solidária
demanda reciprocidade para existir). Ressaltamos abaixo o que consideramos
ser as quatro condições essenciais para a ação
solidária:
1. Não indiferença.
O outro jamais é anulado ou cai no vazio da indiferença
social. Ao contrário, sua presença constitui acontecimento
relevante, diante do qual o eu se coloca de pé, pronto para
a relação solidária.
2. Aceitação
da diferença. O outro é reconhecido enquanto
tal, e não submetido aos conceitos aprioristicamente construídos
pelo eu. O elemento definidor da alteridade é, justamente,
a estranheza, o desconhecimento e a infinitude do outro. Tal estranheza,
em um contexto de solidariedade, poderá sempre ser manifesta,
sem implicar em guerra entre os sujeitos em interação.
3. Doação/concessão/espera.
O eu se faz sempre disponível a entregar-se, exercendo autonomamente
uma heteronomia empática que, no entanto, não o torna
escravo do outro nem elimina a identidade que lhe assegura essa autonomia.
A empatia significa um deixar-se levar por exercício da própria
vontade, em relação ao outro e às suas necessidades
e carências.
4. Aprendizado/mudança.
Ciente de que ninguém sai ileso de uma interação
solidária, o eu se distingue pela disponibilidade para o aprendizado
com o outro, na medida em que identifica no reconhecimento da diferença,
enquanto lugar do desconhecido, o espaço do aprendizado possível
e, portanto, da mudança.
Observe-se que a solidariedade,
enquanto comunicação plena, se inicia não no
eu, mas no outro. Isso não implica, entretanto, uma heteronomia,
no sentido de perda da identidade do eu, diante do império
avassalador da diferença alheia. De forma alguma. O gesto solidário
é sobretudo um ato de autonomia, mas trata-se uma autonomia
típica, que se faz responsável pelo outro, que escolhe
o respeito infinito pela diferença que o torna outro e se interessa
sobretudo pela interação que lhe proporcione felicidade
e paz. O gesto solidário é o ato de amor, cuja capacidade
altruísta modifica as relações sociais de forma
a fundar a convivência não violenta e pacífica.
Repercussões na Prática
Espírita Concreta
Especificamente na prática
espírita, a não-indiferença se estabelece na
busca do outro, para entretecer com ele a relação solidária,
antes mesmo que o outro nos procure.
A aceitação da diferença
implica, contudo, uma mudança de atitudes, porquanto ainda
vivemos uma fase cultural no movimento espírita de grande preocupação
com a manutenção e a salvaguarda da própria identidade
cultural, o que pode significar o desenvolvimento de formas diversas
de preconceito, discriminação e marcação
negativa de diferenças, especialmente relacionadas a outras
práticas religiosas e opiniões filosóficas. A
desistência da guerra e da disputa de sentidos é uma
das mais necessárias condições de existência
da fraternidade, para o mundo contemporâneo. Os espíritas
não parecem tão fora assim dessa necessidade.
A doação, a concessão
e a espera determinam, na estrutura espírita de pensamento,
o fundamento do gesto de caridade, enquanto oferta sem espera de reciprocidade.
É esta ausência de pretensões, capaz de garantir
o amor como algo diferente de uma relação comercial,
de troca, o sentimento capaz de promover e estimular a solidariedade
para com os outros, na teia das relações sociais.
E por fim, o sujeito solidário
jamais vê a diferença como condição de
inferioridade no outro. Por tal razão, nunca se estabelece
numa relação de subalternidade, ainda que disfarçada
no rótulo de "necessitado" ou "assistido".
O outro, na condição de ser diferente que se torna próximo
(a solidariedade, dentro de uma terminologia especificamente cristã,
é exatamente a ação que promove a proximidade,
garantindo a diferença do outro), diante de nós é
sempre alguém cuja diferença leciona para a nossa ignorância
ou oferta-nos a novidade capaz de nos transformar. Uma postura autoritária
percebe a diferença do outro como erro a ser alterado pela
intervenção do eu; uma postura solidária vê
na alteridade o momento do aprendizado de si mesma.
* * *