Somos um amontoado de 300 trilhões de células formando
tecidos e órgãos. Uma olhada nos hepatócitos
do fígado, nas ilhotas do pâncreas, nos folículos
do ovário, nos músculos do coração nos
mostrará uma arquitetura variada de células que nos
compõem. Entretanto, é no cérebro que identificaremos
nos seus neurônios, uma variedade muito maior de “design”
que a natureza arquitetou. Temos cerca de 250 tipos diferentes de
células no nosso organismo e mais de 200 são desenhos
de neurônios.
Ao lado de macacos, gorilas e orangotangos, fazemos parte da classe
dos primatas contando apenas com 450 genes diferentes do Chimpanzé.
Mesmo considerando que nossa capacidade intelectual é espantosamente
superior à deles, o nosso comportamento foi construído
de maneira incrivelmente parecida e os programas para processar
o cérebro são compatíveis para os dois. A diferença
é maior na quantidade e na qualidade, mas não nos
fundamentos.
Na trajetória evolutiva entre o “homem-macaco”
e nós, foram produzidas modificações relevantes,
testemunhadas por inúmeros fragmentos fósseis: contando
com um novo “design” da coluna vertebral passamos a
andar eretos; alargando e empinando a bacia aprendemos a girar para
traz apoiados nos pés; os ombros foram modelados permitindo
projetarmos uma pedra para cima; usando o polegar e opondo-lhe,
facilmente, o indicador aprendemos a construir uma pinça;
a laringe se posicionou para emitirmos a fala articulada; as enzimas
digestivas se multiplicaram para absorvermos outras variedades de
alimentos. A transformação mais importante, porém,
ocorreu no “cérebro executivo” – nosso
lobo frontal aumentou de tamanho quatro vezes expandindo recursos
para planejarmos nosso futuro.
O comportamento animal
Não escapava aos antigos pensadores que os animais tinham
reflexos, sensibilidade, movimento e emoções. Mesmo
assim, Aristóteles negava aos animais a existência
da Alma e René Descartes os via como destituídos de
qualquer raciocínio. Eles agiriam pela disposição
dos seus órgãos.
Esse pensamento veio a mudar completamente quando Darwin nos alinhou
na “árvore da vida”. Na “Origem das espécies”
compomos uma mesma descendência com todos os seres vivos percebendo-se,
assim, que tudo o que nós somos tem início e fim no
que já fomos.
Nas últimas décadas, o estudo do comportamento animal
no seu próprio ambiente, revelou traços característicos
daquilo que presunçosamente imaginávamos ser privilégio
do comportamento humano. Altruísmo, organização
social, prazer ou desprazer, capacidade para mentir, disfarçar
ou brincar são vistos em animais tão diferentes como
pássaros, guaxinim ou macacos. Comportamentos complexos,
também, são compartilhados por variadas espécies:
monogamia, infidelidade, formação de tribos, recrutamento
de apoio social e assassinatos premeditados. Mas, é justamente
o inverso que merece mais destaque nesse artigo – o que os
animais revelam como instinto de sobrevivência, agressividade,
ataques de fúria, fobias, caprichos da personalidade, o abraço,
as expressões de nojo, as disputas de território –
são, também, traços comuns a qualquer ser humano,
registrando em nós, uma indiscutível identidade animal.
O papel dos genes
A “filosofia” dos ditos populares tem feito pré-julgamentos
curiosos para interpretar a natureza humana, considerando sua submissão,
tanto aos fatores hereditários, como ao poder de transformação
do ambiente. Nós todos já escutamos dizer que “filho
de peixe, peixinho é”; “pau que nasce torto morre
torto”; “é de pequeno que se torce o pepino”.
O senso comum pode aceitar essas afirmações como verdadeiras,
embora, experimentos no campo da genética e da psicologia
comportamental, têm revelado contradições interessantes.
O estudo dos genes e como eles se misturam para transmitirem heranças
tiveram início com os famosos experimentos de Gregor Mendel.
Seu trabalho, combinando ervilhas, permaneceu desconhecido por 20
anos quando foram redescobertos por Hugo de Vries. Estudioso da
hereditariedade, ele, também, confirmou a existência
dos fatores recessivos e dominantes nas combinações
genéticas e propôs a existência de uma unidade
de transmissão genética que denominou de “pangene”.
Mais tarde, Thomas Hunt Morgan, aprofundou-se nos detalhes da transmissão
dos genes estudando talentosamente a “mosca das frutas”
(Drosófila). Na sua famosa “sala das moscas”
ele conseguiu fazer as combinações adequadas para
produzir as variações genéticas que procurava.
A partir daí, a Ciência humana, passou a dispor de
recurso tecnológico para manipular os genes mutantes, capacitando-se
para criar novas variantes para velhas espécies.
A maior descoberta se deve a Crick e Watson que em 1953 descreveram
a dupla hélice do DNA na intimidade dos núcleos das
células. O gene passou a ser identificado como um fragmento
de letras dessa gigantesca cadeia de aminoácidos. E, finalmente,
com a cooperação internacional, o material genético
do ser humano (33000 genes) foi totalmente decodificado no projeto
Genoma de 2003.
A curiosidade de muitos tem, precipitadamente, transformado o gene
na grande panacéia científica dos últimos anos.
A cartografia do DNA permitiu-nos a identificação
da paternidade que se imaginava protegida pelo anonimato. Doenças
genéticas passaram a receber números de código
específico. A masculinidade foi relacionada com o SRY, o
gene que programa o testículo. A par de promessas de cura
e rejuvenescimento com as “células tronco” a
mídia frequentemente noticia, com alarde, a descoberta de
genes para a felicidade, para a depressão ou para a superioridade
da inteligência feminina (conforme a fonte de informação).
Os especialistas são enfáticos em dizerem que o gene
não deve ser visto como a causa disso ou daquilo. Ele é
o mecanismo que nos “predispõe” a mais ou menos
inteligência, aptidão esportiva, comportamento viril,
baixa estatura ou obesidade, quando os aplicamos no ambiente adequado.
Os genes criam condições para nos afirmarmos sobre
um ambiente propício. Escolher entre música ou matemática
tem predisposições genéticas. Casar ou divorciar
também. E nós todos sabemos como essas decisões
influem em nossas vidas e muda o ambiente onde viveremos. O papel
do gene pode ser compreendido, resumidamente, em dois processos:
o gene é capaz de duplicar-se no interior das células
e, comanda uma “receita” de proteínas realizada
pelo RNA. Nos defeitos dessas duplicações, ocorridas
“ao acaso”, é que surgem as variações
genéticas, chamadas mutantes, que condicionam o aparecimento
de ajustes morfológicos ou funcionais no organismo dos descendentes.
É um primeiro passo para se chegar ao aprimoramento de uma
nova espécie.
Instinto e aprendizado
Um determinado comportamento que não é imitado ou
aprendido pode, a princípio, ser tido como instintivo. Sendo
assim, é herdado, e deve ter uma representação
genética para a sua transcrição. Nem sempre
a cada comportamento corresponderá um gene para sua expressão,
mais provavelmente teremos uma coleção maior ou menor
de genes orquestrando esse desempenho. É o que ocorre para
a aranha que tece cuidadosamente ou para a “viúva negra”
que devora o macho durante a cópula.
Na programação de qualquer comportamento animal, a
densidade tanto do determinismo genético como da participação
do ambiente, é complexa e às vezes contradiz as interpretações
apressadas. Seymour Benzer realizou um experimento virtuoso com
Drosófilas. Elas eram submetidas a um choque elétrico
nos pés seguido de um jato de ar com substância malcheirosa.
Ele percebeu que, com o tempo, as moscas “aprenderam”
a “respirar fundo” tão logo percebiam o choque.
Assim, as moscas, associavam choque com odores e se protegiam do
cheiro ruim. Era um condicionamento de moscas reproduzindo o que
Pavlov fez com os cães.
Seymour Benzer percebeu, porém, que nem
todas as moscas aprendiam esse comportamento. Nas que tinham sucesso
ele demonstrou a presença de 17 genes especificamente ligados
ao desempenho condicionado: “choque nos pés - encher
os pulmões – evita cheiro ruim”. Entre os 17
genes estão aqueles que Benzer denominou com bom humor: “burro”;
“amnésico” e “lesado”.
Pavlov atribuiu ao córtex cerebral o “reflexo
psíquico” que descobriu existir no condicionamento.
Ele se surpreenderia com o trabalho de Benzer revelando uma programação
genética por traz do aprendizado que condiciona os animais
– tanto moscas, como cães e, com certeza, também
os humanos.
É uma afirmação forte, mas, o que Benzer parece
nos dizer é que nossa “capacidade de aprender”
é herdada sem esforço. O que temos de fazer é
contar com as oportunidades que o ambiente oferece e não
deixá-las escapar entre os dedos.
Comportamentos complexos como fobias, agressividade,
fervor místico, marcas da personalidade e composição
familiar, são comprovadamente herdados. Estudos em animas
revelaram que mudanças no perfil de neuro-transmissores cerebrais
– geneticamente determinados – conduzem a comportamentos
contraditórios no acasalamento e dedicação
à prole. Modelos de laboratório interessantes foram
estudados por Tom Insel manipulando camundongos.
Os arganazes-do-campo são monogâmicos e os pais cuidam
dos filhotes por muitas semanas. Os arganazes-montanheses, por outro
lado, são polígamos, os casais se separam rapidamente
e a mãe cuida pouco tempo de suas crias. Estudos genéticos
e bioquímicos mostraram que os arganazes-do-campo contavam
com genes que produzem receptores para ocitocina e vasopressina.
O primeiro está presente em áreas límbicas
do cérebro ligado à “memória social”
e a vasopressina à recompensa. Por outro lado, não
contando com esses receptores cerebrais, o arganaz-montanhês
não se lembra com quem se acasalou dez minutos antes e não
estabelece vínculo com as crias.
Uma das descobertas mais surpreendente nas expressões do
comportamento animal foi feita por Konrad Lorenz.
O testemunho que ele trouxe ao experimento e a sua singeleza são
singulares. Entrando em contato com gansos que acabavam de nascer,
ele percebeu que a sua presença despertava nos filhotes uma
aderência filial que ele denominou “imprinting”.
Konrad se tornava a “mãe” de gansos recém-nascidos
em sua presença.
O “imprinting” chama a atenção
para a importância dos “eventos iniciais” nos
processos de aprendizado. E, principalmente, do “timing”
para uma determinada aquisição de conhecimento. Estudos
posteriores mostraram que as oclusões prolongadas de um dos
olhos de gatos recém-nascidos os privariam de visão
para o resto da vida. Ficou evidente que todos nós temos
uma “janela” aberta para o aprendizado com especificidade
para o conteúdo e aprisionada pelo tempo. Isso é muito
evidente para o desenvolvimento da fala e o aprendizado de uma língua
estrangeira. É conveniente que aos cinco anos tenhamos domínio
adequado da linguagem.
O gene e a cultura
A dinâmica da integração de genes e ambientes
não pode ser vista de maneira dogmática ou excludente.
A cultura pode à primeira vista parecer sobressair-se ao
papel da herança na determinação da atividade
mental. Um intelectual moderno pode nos parecer dispor de desempenho
superior ao de indivíduos da sociedade marginal ou povos
“primitivos” da América ou da Polinésia.
Na virada do Século XIX, Francis Boas conviveu
com povos nativos do Canadá identificando seus hábitos
e aptidões, constatando a mesma fisiologia e a mesma psicologia
do homem europeu da época. A natureza dos processos mentais
permanece como herança, independente da erudição
e da cultura. São os genes quem nos possibilitam acumular
conhecimento e é a cultura que estimula o gene a aprimorar
o cérebro.
Aprender significa adquirir novos comportamentos. Um programa de
rotinas, repetindo as mesmas tarefas, reforçam as sinapses
que sedimentam o aprendizado, mas aprender mais implica em se surpreender
com fatos novos.
A discrepância que os fatos novos provocam, estimula genes,
que transcrevem proteínas, que criam novas sinapses, arquitetando
mudanças e sedimentando o aprendizado. Mais ou menos cultura
se traduz em redes neurais cada vez mais complexas. É aqui
que está a nossa diferença com o cérebro do
chimpanzé. Temos trilhões de sinapses a mais.
A pressão do ambiente
Aqui também a crônica popular registra uma interpretação
anedotária. Quando um filho se sai excepcionalmente bem em
seus desafios costumamos ouvir que “puxou o pai”. Quando
é o filho do vizinho que as notícias do bairro dão
destaque ao sucesso, os méritos são atribuídos
aos “colégios dispendiosos” que ele freqüentou.
No primeiro caso a inteligência é herdada do pai, no
segundo a educação fez a diferença.
A agressividade, a criminalidade e o mau desempenho escolar costumam
ser atribuídos ao ambiente familiar, ao tipo de criação,
à desigualdade social. No entanto, experimentos e avaliações
cuidadosas de gêmeos e filhos adotivos não confirmam,
inteiramente, essa interpretação.
Gêmeos separados logo após o nascimento e criados,
sem contato, em ambientes distantes, revelaram depois, aptidões
e preferências incrivelmente semelhantes: o estilo de vida,
a escolha da profissão, a ocorrência de divórcios,
o número de filhos, a decoração da casa, a
opção de lazer e pequenos trejeitos que um e outro
manifestam involuntariamente.
A adoção de filhos, procedentes de lares dissolutos,
mesmo quando criados em famílias íntegras, tem mostrado
de maneira significativa a dependência genética do
comportamento anti-social.
Ideias inatas
Alguns comportamentos humanos revelam uma aparente complexidade
como, por exemplo, a expressão de nojo frente a um alimento
mal-cheiroso. São, no entanto, instintivos e relacionados
diretamente com a sobrevivência que é nosso mecanismo
de autodefesa mais eficiente. Historicamente, alguns filósofos
insistiam em negar qualquer conhecimento inato ou instintivo no
ser humano. Nascendo como uma folha em branco, todo comportamento
precisava passar primeiro pelos sentidos para depois se sedimentarem
na mente.
Por outro lado, Platão afirmava que todo
conhecimento tinha uma existência prévia no “mundo
da idéias” e René Descartes
apontava a crença na existência de Deus, as noções
matemáticas, a idéia de perfeição como
“idéias inatas” partilhadas por todos os homens.
Empiricamente, qualquer um de nós que passou pela experiência
de acompanhar o cotidiano do crescimento dos filhos, tem múltiplas
oportunidades de se surpreender com o desempenho deles na fala,
na construção de frases, na criação
de situações inesperadas, na escolha dos brinquedos,
na interpretação de fatos novos e principalmente nas
perguntas que fazem, revelando um comportamento que “nasce
pronto” ou uma escolha que “ninguém ensinou”.
Como sugere Steven Pinker, a criança herda
o “instinto da fala”. A mente estaria constituída
por módulos multifuncionais que nos permitiria dispor dos
mecanismos para processar e absorver as informações,
como por exemplo, o vocabulário da linguagem materna. Na
mesma linha de proposição, Noam Chomsky
sugere que toda criança nasce com uma estrutura cerebral
pronta para a aquisição das regras gramaticais, comuns
e adequadas a toda as línguas.
Creio podermos adiantar que as “idéias inatas”
estão ligadas a módulos mentais que são sensíveis
ao aprendizado de determinado conteúdo – linguagem,
fervor espiritual, altruísmo – e especializados em
exigências do ambiente – sobrevivência, fobia,
acasalamento, reprodução entre outros.
Na “dimensão espiritual”
A Doutrina Espírita acrescenta a “dimensão espiritual”
na construção da natureza humana ressaltando a sua
complexidade.
O corpo físico é vestimenta transitória que
dá ao Espírito instrumento para se manifestar no mundo
em que vivemos.
Reencarnando em vidas sucessivas, temos oportunidade de renovar
experiências, redimir faltas, reavaliar acertos e erros, e
projetarmos compromissos futuros.
Nada ocorre por acaso. Deus é criador e seus prepostos orientam
nossos destinos.
Estamos todos inseridos no projeto de progresso incessante que nos
elevará ao nível de Espíritos Superiores.
O “princípio inteligente” com o qual inauguramos
a vida percorreu as diversas escalas evolutivas se empenhando na
aquisição de reflexos, de instintos, de automatismo
e de racionalidade até atingir a condição humana
que desfrutamos hoje.
A evolução da mente sugestionou e dirigiu as necessidades
da evolução do corpo.
A Espiritualidade Superior introduziu as mudanças necessárias
para o sucesso do projeto humano realizando intervenções
nos dois planos da vida.