Ao acompanhar o noticiário relativo à
eleição do papa, deparei-me com várias matérias
que reuniam ciência e religião, quase
sempre em oposição. Como em geral são
matérias escritas por jornalistas sem especialização
em um ou outro dos assuntos e, menos raro do que desejável,
em nenhum deles, a informação que acaba sendo passada
é repleta de confusão. Felizmente, a quantidade de notícias
acaba não surtindo nenhum efeito apreciável no âmbito
da cognição. No âmbito da afetividade, porém,
as matérias consolidam a disposição negativa
de muitos leitores em relação à religião.
Não é possível falar de ciência
e religião em abstrato. Há muitas ciências e muitas
religiões que mantêm relações diversas
entre si. E essas relações variam com o tempo, imbricadas
que estão na cultura e nas subculturas de épocas e lugares.
Atualmente, por exemplo, há ramos do budismo que não
têm dificuldade em pautar-se pela ciência e, pela voz
do Dalai-Lama, afirmam que abandonarão o conceito de reencarnação
se a ciência provar sua inexistência. O espiritismo kardecista,
semelhantemente, se interessa por confirmar reciprocamente religião
e ciência. O islamismo chega a afirmar que as descobertas da
ciência se encontram no Alcorão. No âmbito do cristianismo,
particularmente nos Estados Unidos, assiste-se a múltiplos
esforços de convergência entre religião e ciência,
mais da parte de teólogos que de cientistas.
Feita a ressalva de que não existe
ciência nem religião em abstrato, e restringindo-nos
à ciência contemporânea, de matriz ocidental, e
ao cristianismo, penso que há dois ou três níveis
de discussão. Ciência e religião podem ser consideradas
do ponto de vista da epistemologia, enquanto modos de acesso ao conhecimento.
Acredito que será importante determinar o respectivo objeto
de conhecimento, o fundamento da aceitação ou rejeição
desse objeto, as condições cognitivas e afetivas de
acesso ao objeto, a coerência das construções
relativas ao objeto. Julgo que a diferença básica entre
ciência e religião reside no respectivo objeto: uma realidade
não empírica de caráter intersubjetivo ou uma
realidade empírica de caráter objetivo. Esse primeiro
nível de discussão poderia desdobrar-se em dois, de
natureza realmente distinta: o da relação entre ciência
e religião e o da relação entre ciência
e teologia. Teologia não é religião, e religião
não é teologia, embora tenham a ver uma com a outra.
No extremo, seria possível um teólogo sem religião,
na conhecida atitude filosófica do als ob. De fato, a teologia
não é teologal, no sentido de alcançar o próprio
Deus. A comparação entre ciência e religião
me parece mais natural nesse segundo nível de discussão,
a saber entre duas ciências, a ciência empírica
e a ciência de Deus. Como ambas são ciências, compartilham
das mesmas suposições e exigências epistemológicas
e constroem-se historicamente. Essa construção histórica,
aliás, é que permite encontros e desencontros que, no
longo prazo, podem se revelar relevantes ou superficiais. A título
de curiosidade, registro a existência de um periódico
editado desde 1988 em Kampen, Holanda, intitulado Journal of Empirical
Theology. Aceito o segundo nível de discussão, haveria
um terceiro, que é o da pessoa concreta envolvida na pesquisa
científica e na adesão/não adesão religiosa.
Esse é um nível de talvez maior complexidade, porque
abrange a pessoa inteira e não só a atividade mental
da conceituação, da proposição, do raciocínio.
No restante do artigo pretendo elaborar alguns aspectos de cada um
desses níveis de discussão.
Penso que relacionar religião cristã
e ciência ocidental como acessos específicos às
realidades empírica e não empírica ou meta-empírica
é, rigorosamente falando, um beco sem saída, no qual
não se devia entrar. Como não há comunidade de
objeto, encontra-se a aporia bem estabelecida desde Kant. Note-se,
aliás, que o melhor entendimento das provas escolásticas
da existência de Deus, compendiadas nas cinco vias de Santo
Tomás de Aquino, é o de que são provas de conveniência,
e não de demonstração, o que nos levará
ao terceiro nível da discussão. Na melhor das hipóteses,
que ainda não seria uma hipótese boa, a discussão
se desenrolaria, não entre ciência e religião,
mas entre ciência e filosofia. Uma ilustração
desse esforço encontra-se na fervorosa contenda acerca do purpose,
ou finalidade do mundo. Penso que a única maneira de se manter
em nível epistemológico comparável seria retornar
ao postulado de uma estrutura a priori de apreensão do divino
ou do numinoso, proposta por Otto, com raízes em Schleiermacher
e tão influente em Mircea Eliade. Infelizmente, esse postulado
se revelou inoperante, pois que resultava de todo um envolvimento
anterior de Otto com o cristianismo. Talvez o sagrado, de Eliade,
fosse um objeto mais apropriado à comparação
epistemológica, mas para seu reconhecimento bastam as estruturas
de apreensão de uso comum. A analogia que me ocorre, nesse
nível de discussão, é com a arte. Digo analogia,
pois a comparação falha no essencial. Frente à
arte e à religião, Freud em determinado momento estacou
no escrutínio da psicanálise: essa não tinha
recurso para entender o processo criativo do artista e a grandiosidade
da religião. Talvez, assim como somos estruturados para apreender
os estímulos por via dos estereótipos, isto é,
por limitações cognitivas inerentes a nossa posição
na escala evolutiva, estejamos também destinados a nos acercar
da arte, da religião e da ciência por vias paralelas.
O segundo nível de discussão põe
em pé de igualdade a ciência e a teologia.
Reconhecemos nesse nível muitas semelhanças: preferência
por modelos, prevalência de métodos, substituição
de interesses, filiações intelectuais, disputa por recursos
financeiros e, para não fugir do jargão, mudança
de paradigmas ao longo do tempo. Creio que, nesse nível, ciência
e teologia estão próximas. Se há interesse em
aprofundar objetos específicos de que se ocupam uma e outra,
por exemplo o início da vida humana, essencial para se julgar
a liceidade das pesquisas com células-tronco, a teologia fará
bem em inteirar-se do estado da arte das ciências da vida e
essas do estado da arte da teologia. É óbvio que tal
intercâmbio só terá sentido numa cultura ou sociedade
em que ciência e religião são parâmetros
do pensamento e da ação. É esse o caso brasileiro.
Em minha experiência de ensino de psicologia da religião
para alunos de graduação e de pós-graduação
de diversas procedências acadêmicas, tenho observado que
um entrave sério para qualquer diálogo é a desinformação
relativa ao interlocutor. Assim, para retornar ao exemplo da pesquisa
com células-tronco, primeiro há de se remover conceitos
e preconceitos. Os teólogos não podem imaginar que os
cientistas sejam incompetentes para estudar os fenômenos da
vida, ou que sejam movidos pela ambição do poder, ou
que sejam levianos e imprudentes na pesquisa, ou que sejam uma massa
compacta entrincheirada atrás de evidências. Os cientistas
tampouco podem imaginar que os teólogos sejam unânimes
ou tenham o mesmo grau de certeza, ou que qualquer posição
teológica alcance o estatuto de dogma (uma palavra freqüentemente
mal entendida), ou que os teólogos não conheçam
a história de seus próprios conceitos e teorias, ou
que não saibam distinguir entre dogma e moral ou não
procurem informar-se do avanço da ciência. Ao contrário,
no nível da discussão científica é prudente
supor entre os interlocutores sutileza e sofisticação
de conhecimento, além de boa intenção e de amor
à verdade e às pessoas.
O terceiro nível de discussão, a saber,
o das pessoas concretas, foi, em parte, objeto de longa pesquisa que
empreendi com pesquisadores da Universidade de São Paulo. Digo
em parte, porque não pesquisei religiosos e teólogos
em suas relações com a ciência. A descrição
da pesquisa e de seus resultados encontram-se em A religião
dos cientistas: uma leitura psicológica
(São Paulo: Loyola, 2000). Nesse estudo interessei-me
menos pela dimensão epistemológica da ciência
e da religião e muito mais pelas vicissitudes pessoais e psicossociais
dos cientistas na adesão ou na rejeição da religião.
Entrevistei longamente vinte e seis pesquisadores com carreira consolidada
nas áreas de física, zoologia e história, homens
e mulheres, quase todos brasileiros, alguns de renome internacional.
A entrevista tinha como eixo a resposta do entrevistado às
interpelações da ciência e da religião
nas esferas do pensamento e da vida. Para contextualizar essa resposta,
solicitei referências ao ambiente familiar e aos anos de formação
acadêmica, à educação religiosa, a alguma
experiência marcante, que aproximou ou afastou da religião
e da ciência, à posição de professores
e colegas frente à religião, ao impacto dos estudos
na formação religiosa anterior, ao eventual desenvolvimento
da uma visão de vida alternativa à visão religiosa,
ao interesse pelo esoterismo, à necessidade subjetiva de algum
tipo de salvação, à educação religiosa
dos filhos, às reações do ambiente acadêmico
ao fato religioso. Como referência teórica cognitiva
vali-me do modelo lewiniano do espaço de vida, que mostra a
organização psíquica das diversas regiões
da mente, e como instrumento de análise dos conflitos inconscientes
utilizei a psicanálise, na aplicação que dela
faz A.Vergote, de Leuven, à questão do ateísmo.
Os resultados mais salientes da pesquisa são os que evidenciaram
que nenhum dos entrevistados justificou sua adesão a uma visão
religiosa ou sua rejeição dela com argumentos científicos.
Ao contrário, foram as influências da família,
de colegas, de grupos de amigos ou de profissão e da cultura
circundante que os encaminharam, mesmo no atravessamento de crises
pessoais, seja à aceitação de uma relação
religiosa seja a sua recusa.
Não estou em condição de
excluir casos em que as convicções científicas
levem à rejeição da relação religiosa,
pois encontrei essa justificativa fora do contexto da pesquisa. Entre
os entrevistados, porém, tal não ocorreu. As
razões de aceitação ou recusa da adesão
religiosa não implicam nem a manutenção nem o
abandono da religiosidade: a pesquisa encontrou tanto a manutenção
refletida das referências religiosas anteriores, como a adesão
a novas formas religiosas, inclusive de ordem impessoal e cósmica,
como o abandono de qualquer filiação religiosa e sua
substituição por um sistema de referência muitas
vezes designado como secularizado. A conexão ou desconexão
religiosa, com efeito, embora contenha elementos da ordem do conhecimento,
é um empenho da pessoa toda. Por vezes, como Freud notou, as
matrizes afetivas se opõem ao próprio conhecimento,
tanto no sentido de aderir ao que o conhecimento questiona, como no
sentido de rejeitar o que o conhecimento propõe. Aliás,
no registro do inconsciente, foram exatamente os conflitos, resolvidos
ou não, ligados à autonomia e à relação
com as figuras parentais que orientaram a manutenção,
a transformação ou o abandono da relação
religiosa primeira. Além das matrizes afetivas, o estabelecimento
social da realidade, único critério em tema tão
pouco empírico como o da relação religiosa, faz
depender dos grupos de referência o comportamento concreto da
aceitação ou da rejeição religiosa. O
que, portanto, concretamente encaminha a decisão favorável
ou desfavorável à religiosidade ou ao agnosticismo/ateísmo
são as prolongadas e múltiplas vivências do cientista
com as diversas subculturas e com a cultura geral, que lhe fornecem
o sentido de suas opções. O que parece, em abstrato,
uma discussão epistemológica de primeiro e segundo nível
é, muitas vezes, o precipitado das elaborações
concretas desse terceiro nível de entendimento do que seja
ciência e religião. É aqui que eu situaria muitos
dos esforços, a que acima aludi, de fazer convergir (ou divergir)
ciência e religião. Aqui, também, colocaria a
posição avançada por Otto. Em outras palavras,
é o contexto pessoal, grupal e cultural que fornece aos interessados,
de forma pouco reflexa, os pressupostos com os quais trabalham na
formulação e no encaminhamento de muitos problemas,
inclusive o das relações entre ciência e religião.
Porém se dermos crédito a Lacan (Le triomphe de la religion
e Discours aux catholiques, Paris: Seuil, 2005), a cultura portadora
da religião parte com grande vantagem, pois não há
como a religião para conferir sentido, e esse sentido se faz
mais imperativo na medida em que os cientistas, com o avanço
da pesquisa, penetram a opacidade do real e necessitam transformá-lo
em simbólico, isto é, em algo humano.
Geraldo José de Paiva é professor do
Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo.