Certa feita, no elevador conversando com um
colega, tecendo comentários matinais sobre os escândalos
na gestão de recursos públicos que assolam o Estado
desde os romanos, este asseverou, enfático, que se tivesse
poder “absoluto”, trocaria todos os cargos político
por técnicos, como solução para as mazelas
da Administração Pública.
De pronto, assertiva tão
contundente teve a minha resposta, indicando que estes mesmos técnicos,
ao assumirem as suas funções, converte-iam-se naturalmente
em políticos. O amigo se espantou e rimos antes de nos despedirmos
a saída do elevador.
Os textos jornalísticos,
as mesas de bares, a hora do almoço... em diversos fóruns
confrontamos a dimensão política e a técnica,
como antagônicas esferas, separadas por um fosso imaginário,
tendo no político o estigma do negativo, do sujo e o técnico,
envolto em uma aura neutra, certinha, alinhada. Na luta de mundos
retos e tortos, somos forçados a escolher um lado nessa polarização
e nesta escolha colocamos a fé messiânica na salvação
da gestão estatal.
Esse fosso não existe. Essas
duas dimensões coexistem na gestão pública,
no aspecto político que abarca os processos decisórios,
a acomodação das forças e as demandas do jogo
do poder, inerente ao ser humano desde os tempos tribais; bem como
no lado técnico, que envolve o saber, o procedimental, o
normatizado, na busca racional por uma solução viável
e eficiente, por meios impessoais.
Uma ação pública
envolve essas duas facetas, imbricadas. Uma relação
dialética entre a forma de executar e a forma de decidir,
entre o certo e o legítimo, entre o pensado e o construído.
E uma interfere na outra. A forma de gerir afeta os processos decisórios,
no feedback dos resultados; assim como os caminhos escolhidos tem
efeito sobre a forma de gestão das políticas no mundo
real. A política, com a sua aura de politicagem, e a técnica,
com a sua fama de neutralidade, apesar de ambas se digladiarem nas
discussões sobre a solução para a gestão
pública, atuam de forma complementar, no cotidiano da vida
prática.
O lado político, por exemplo,
floresce na vida pública, como nas recentes manifestações
do outono de 2013 no Brasil, nas quais se trocou Vandré por
Renato Russo, cravos por vinagre e liberdade por melhores serviços
públicos, na qual segmentos da população buscaram
interferir na gestão pública. Para além do
momento do voto, as pessoas pressionam governos e parlamentos, na
dimensão política que aproxima o cidadão da
gestão, em uma interação permanente que rompe
as barreiras da burocracia.
Da mesma forma, o aspecto técnico
das soluções mirabolantes comparece vinculado ao político
nas tecnologias sociais como a Carta SUS, que integram a população
na melhoria das políticas públicas materializadas.
Soluções racionais podem contar com o auxílio
da manifestação popular para atingir seus objetivos.
A apropriação da população se faz necessária,
mesmo nas mais elaboradas soluções técnicas,
quando falamos de governo, posto que a democracia prevê essa
interação popular contínua, de forma organizada
ou não, para a construção de suas eficácias
e eficiências.
O que não podemos é
cair na armadilha de extremos, achando que o gerencialismo puro
ou uma democratização utópica darão
conta das questões sociais. Curiosamente, essa pseudo-tensão
nós importamos, como de costume, de modelos estrangeiros,
sem as devidas correções de latitude. Vê-se
então na literatura modelos que temem a captura do Estado
pela burocracia e valorizam o representante eleito, nas lentes da
doutrina do neopatrimonialismo. Entretanto, o senso comum pátrio
despreza o potencial de representantes eleitos e valoriza o técnico-burocrático,
na linha similar ao colega do elevador. Variamos em um jogo de vilões
que se alternam ao sabor das ondas.
No nosso país, o burocrata
é o salvador, como o clássico “Tropa de elite”,
com o Capitão Nascimento, concursado, de carreira, figurando
como o herói solitário. Ao mesmo tempo, o representante
popular, o deputado estadual do filme, é o vilão a
engendrar as negociatas. A tradição estadunidense
valoriza mais seus representantes eleitos, em detrimento da fria
burocracia. São visões diferentes, fruto de processos
históricos.
No Brasil ainda carecemos de uma
burocracia fortalecida e profissionalizada nas diversas atuações
estatais, mormente na gestão de pequenos e médios
municípios. De toda sorte, no nosso cenário de imaturidade
política, uma herança histórica e da falta
de lutas, arrastamos também uma baixa expertise na escolha
de nossas representações nos ciclos eleitorais, e
pior, no acompanhamento diuturno da vida pública. Carentes
nos vemos em ambas as dimensões, quando falamos do trato
das questões coletivas.
O caso brasileiro reclama um fortalecimento
duplo, dos processos de profissionalização da atividade
estatal, por meio das clássicas medidas de concurso público,
encarreiramento, capacitação no âmbito estratégico
e da meritocracia. Da mesma forma, o robustecimento do viés
político demanda um incremento da qualidade na participação
popular, do controle social, do envolvimento com a gestão
pública, da transparência e no assento ativo em conselhos
e espaços similares.
Muito avançamos nas últimas
décadas nos quesitos citados, mas para nos tornarmos o “país
do futuro”, além do mantra do investimento em educação,
necessitamos crescer na esfera pública no quesito da institucionalização,
que possibilite a profissionalização da burocracia
e incremente a participação popular.
Uma ação governamental
não é um papel em um gabinete, é uma ação
viva, que se materializa nas interações do governo
com diversos atores, entre soluções e participações,
entre planejadores e executores. A tensão entre o político
e o técnico, arremedo da oposição entre o público
e o privado, precisa ser superada em processos de integração.
O conselho e o concurso, as avaliações
e a passeata, esses e outros mecanismos do moderno Estado democrático
são bandeiras, que se bem empunhadas, nos dirão onde
nos encontraremos como nação nos próximos 20
anos. O fosso precisa ser rompido, para que, entre soluções
exatas e legítimas construamos a ponte que permita erigir,
cada vez mais, um país, com projeto e futuro.