Embora os conhecimentos humanos
se tornem cada vez mais especializados, pois há muito tempo
já não há lugar para o velho saber enciclopédico
e, muito menos, para aquela figura muito curiosa do tira-teima,
o homem que resolvia tudo e dava respostas sobre qualquer assunto,
verdade é que ainda se encontram bons exemplos de cultura
sólida e ampla.
Que a especialização é um fato, na vida atual,
não há a menor dúvida. É a experiência
que o demonstra. O exagero da especialização, porém,
pode causar deformações. É o caso, por exemplo,
dos indivíduos que se especializam demais, acreditam somente
no valor de seu preparo técnico, científico, literário,
jurídico ou lá o que seja, não querem ver mais
nada além de seu reduzido campo de conhecimento. Ficam muito
limitados, com a capacidade inteiramente enquadrada neste ou naquele
ângulo e, portanto, sem um horizonte mais largo. Para estes,
os que chegam a este ponto, pois nem todos os homens de cultura
especializada são assim, toda a verdade deve ser ajustada
à faixa intelectual em que se encontram. É uma deformação,
queiram ou não queiram.
É por este prisma, inegavelmente, que certos especialistas
em ciências humanas, até mesmo as ciências que
dizem respeito às atividades psíquicas, encaram os
problemas do espírito e suas relações com a
vida corporal. Entendem que o debate sobre o espírito é
apenas questão de fé ou de suposição
e, como tal, não pode entrar no discurso científico.
Habituados a uma especialidade, que lhes restringe a faixa de observações,
não admitem, nem que seja como hipótese, que o plano
espiritual tenha alguma coisa que ver com o interesse científico.
Não se trata, porém, de espírito em si, sua
natureza, sua origem e seu destino após a morte, pois as
indagações desta ordem são eminentemente filosóficos,
antes de tudo, com repercussões no campo religioso. Entretanto,
não se pode deixar de levar em consideração
um fato que se impõe por si mesmo, a despeito de todas as
posições restritivas: o mecanismo e as consequências
da comunicação do espírito com o mundo corporal
envolvem problemas mentais, filosóficos, emocionais, patológicos
e também sociais, em muitos casos.
Assim como um espírito, que vem do outro mundo, aliás
um mundo nada imaginário, mas tão real como o nosso,
pode causar perturbações ao organismo ou provocar
lesões e depressões arrasadoras, também um
espírito pode operar curas ou libertar definitivamente uma
criatura humana de estados deploráveis de angústia,
desespero e até de loucura das mais tremendas.
Se, portanto, a esta altura já se nota que há perturbações
no organismo humano, como também se observa que o espírito
dispõe de meios capazes de alterar todo um quadro clínico,
naturalmente há recursos desconhecidos, tanto quanto instrumentos
e técnicas estranhas aos conhecimentos usuais. Então,
há interesse científico, pois aí se abre um
campo diferente. Os espíritos podem criar situações
que levem o estudioso imparcial ou não bitolado a enveredar
pela Fisiologia ou pela Física, a Psicologia, e assim por
diante, segundo a natureza e as características dos fenômenos.
Justamente por isso, o investigador precisa ter uma visão
mais larga, pois a especialização muito rígida
ou fechada não abre grande perspectiva. A fronteira entre
o espírito e a matéria está exigindo, hoje,
muito mais acuidade e precisão do que anteriormente, quando
os instrumentos eram precários e as informações
eram duvidosas, em grande parte. Por sua vez, o intercâmbio
de vibrações entre os dois mundos é tão
intenso, tão sutil, que muitas vezes nos deixa em dificuldade
para atinar bem com as balizas que os separam.
As noções de matéria e energia estão
passando por modificações a cada passo, ao mesmo tempo
em que já estamos caminhando para a antimatéria. E
a Doutrina Espírita já nos dizia, há mais de
um século, que a matéria existe em estados que desconhecemos.
Diante, pois, da nova realidade que se apresenta e de tantas surpresas
que nos impressionam, o conceito de Ciência terá de
ampliar-se necessariamente.
Se, para muitos, Ciência é apenas a de laboratório,
já para outros, com perspectiva mais dilatada, Ciência
pressupõe um processo que procura a verdade em diversos sentidos,
ultrapassando as delimitações clássicas. Então,
o discurso científico também há de comportar
a discussão sobre o espírito, que não é
mais exclusivamente um ponto de fé, porém um agente
de força, tão positiva, tão atuante como as
forças mais ponderáveis do mundo conhecido.
Não se pode perder de vista, finalmente, que a Ciência
tem um sentido universal e, por isso mesmo, não pode ser
objeto exclusivo de uma especialização. Sua natureza
independe, consequentemente, de compartimentos e escolas. À
luz deste entendimento, é natural que situemos o espírito
no vasto campo do conhecimento, como realidade comprovada através
de fatos que também constituem matéria de interesse
científico, desde que se reformule o conceito de Ciência,
em virtude das aquisições que a inteligência
humana vem acumulando nestes últimos anos. E, por isso mesmo,
o Espiritismo não pode ser interpretado e explicado através
das especializações restritivas e, às vezes,
deformantes, mas somente com a visão global de um conhecimento
capaz de abranger as realidades da matéria e do espírito.
* * *
O Espiritismo é ao mesmo tempo
uma ciência de observação e uma doutrina filosófica.
Como ciência prática, ele consiste nas relações
que se podem estabelecer com os Espíritos; como filosofia,
ele compreende todas as conseqüências morais que decorrem
dessas relações.
Pode-se defini-lo assim:
O Espiritismo é
uma ciência que trata da natureza, da origem e da destinação
dos Espíritos, e das suas relações com o mundo
corporal.
Allan Kardec in PREÂMBULO do
livro "O QUE É O ESPIRITISMO"