Já se sabe que o perispírito
não é uma invenção do Espiritismo, como
não é um conceito abstrato. É um elemento real,
que tem propriedades e toma formas visíveis. Com o Espiritismo,
entretanto, em virtude das experiências mediúnicas que
já se acumularam até hoje, o estudo desse “corpo
intermediário” necessariamente se tornou mais específico,
permitindo que se lhe reconheçam propriedades relevantes no
mecanismo psico-fisiológico. Além de outros autores,
considerados clássicos na literatura espírita, Gabriel
Delanne dedicou boa parte de seus trabalhos ao perispírito,
e trouxe, por isso mesmo, uma contribuição significativa
e ainda válida em toda a plenitude. Estudou ele, por exemplo,
as “Provas da existência do perispírito - sua
utilidade - seu papel”, no alentado livro O
Espiritismo perante a Ciência. E, assim, em toda
a obra de Delanne, realmente portentosa, há o que se estudar
e pensar a respeito do perispírito. Não se precisaria
fazer referência a outros, aliás bastante conhecidos
no meio espírita, porque não temos objetivo de erudição
nesta breve crônica jornalística. Queremos acentuar,
sim, o perispírito ou mediador fluídico tem funções
próprias no composto humano, não é uma criação
imaginária...
Na antiguidade oriental, como na grega,
como entre doutores da Igreja, admitiu-se claramente a existência
de uma “substância”, um corpo, um elemento
equivalente, afinal de contas, entre as duas realidades fundamentais:
a matéria e o Espírito. Os nomes são diversos
e, por isso, há uma infinidade de expressões para traduzir
a significação do perispírito (terminologia do
Espiritismo) no conjunto psicossomático. Existem até
uns tantos preciosismos de linguagem, verdadeiras sutilezas verbais
para dizer o que seja, no fundo, esse “corpo bioplásmico”,
segundo a moderníssima denominação resultante
de experiências realizadas na Rússia. Há contextos
espiritualistas em que se encontra o perispírito, dividido
ou apresentado sob outras rubricas, com as especificações
que lhe são atribuídas. Mas o que é fundamental
no caso é a existência, necessária, de um elemento
que se interpõe no binômio corpo-espírito. A Doutrina
Espírita prefere chamá-lo simplesmente de perispírito,
com explicações acessíveis a todos os níveis
de instrução.
Sob o ponto de vista histórico,
entretanto, além do que já se encontra em velhas fontes
orientais, como noutros ramos da literatura antiga, convém
considerar que na Escolástica primitiva, muito influenciada
por Platão e Agostinho, também se admitiu a constituição
trinária do ser humano:
1) a alma habita numa casa que lhe
é essencialmente estranha; o corpo é o albergue, o hábito,
o recipiente, o invólucro da alma; além de semelhante
imagem, é também usada a do matrimônio.
2) o corpo e a alma estão unidos
por um “spiritus physucys”, que serve de intermediário;
3) corpo e alma estão unidos
pela personalidade como em uma espécie de união hipostática.
(Barnarco Bartmann - “Teologia
Dogmática” - I vol., Edições Paulinas)
Tão forte lhe parece a união
da alma com o corpo, com a intercalação desse - “spiritus
physucus”, que funciona como intermediário, que
o Autor chega a compará-la a uma espécie de união
hipostática, isto é, união do Verbo divino com
a natureza humana. A ideia de um “invólucro”
ou “intermediário”, uma vez que o Espírito
precisa de um revestimento para que possa conviver com o corpo, faz
parte dos contextos espíritas, sejam quais forem os nomes que
se lhe deem. É o perispírito, sem tirar nem por.
Como o perispírito, a reencarnação,
por sua vez, também já teve adeptos na Igreja, embora
contra ela se tenha pronunciado e firmado sentença o Concílio
de Constantinopla. Mas o certo é que Orígenes, teólogo
e exegeta, defendeu a tese da preexistência, o que, aliás,
é fato muito citado. Outros teólogos, como se sabe,
adotaram a tese “criacionista”, isto é,
a criação da alma com o corpo ou para o corpo. Justamente
nesse ponto, um dos maiores doutores de sua época - Santo Agostinho
- se defrontou com dificuldades para conciliar a criação
da alma com o “pecado original”. Quem o diz é
ainda Bartmann, na mesma obra (já referida), e ele próprio,
o autor de “Teologia Dogmática”, também
encontra obscuridade. Vejamos: Se é incompreensível
que a alma derive do ato corpóreo da geração,
todavia também o criacionismo apresenta não pequenas
dificuldades. Já Santo Agostinho não sabia explicar
como a alma, criada por Deus, podia nascer com o pecado original.
A dificuldade conserva seu valor também para nós. Outra
dificuldade pode surgir da consideração de uma criação
contínua até o fim do mundo, de um número incalculável
de atos diretos de Deus, mas o ponto-chave do problema, como denuncia
o Autor, está justamente nesta decorrência da tese “criacionista”:
Pareceria, por fim, necessário admitir uma cooperação
imediata de Deus, nas numerosas gerações manchadas pela
culpa. Não se pode responder à primeira dificuldade
senão recorrendo ao mistério do pecado original. E no
mistério esbarra tudo, não há mais saída
para o raciocínio...
Contrapondo-se à ideia da criação
do Espírito juntamente com o corpo, a Doutrina Espírita
propõe outra análise do problema, nestes termos:
“Donde vem a aptidão
extranormal que muitas crianças em tenra idade revelam, para
esta ou aquela arte, para esta ou aquela ciência, enquanto outras
se conservam inferiores ou medíocres durante a vida toda?”
“Donde, em certas crianças,
o instinto precoce que revelam para os vícios ou para as virtudes,
os sentimentos inatos de dignidade ou de baixeza, contrastando com
o meio em que elas nasceram?” (O
Livro dos Espíritos - questão 222).
Se, realmente, o Espírito fosse
criado por Deus no ato do nascimento, seria o caso de admitir, ainda
que por absurdo, criação de indivíduos que nascem
com tendências para a perversidade ou para a delinquência.
Seria obra de Deus?!...
A tese da preexistência explica
as inclinações inatas para o bem ou para o mal, embora
a Doutrina Espírita não negue a influência fortíssima
da educação, do meio social, da cultura e de outros
fatores contingentes. Mas o Espírito, ao voltar à Terra,
pela reencarnação, traz certa bagagem de conhecimentos,
virtudes ou vícios, responsáveis pelo curso de sua existência,
com todos os altos e baixos deste mundo. Deus não iria criar
para a vida um Espírito que já estivesse marcado com
as paixões inferiores. Todos começam “simples
e ignorantes” - ensina a Doutrina - mas o próprio
arbítrio, que é indispensável à experiência
individual, pode desviar o Espírito da rota mais justa e levá-lo
aos despenhadeiros morais. “Simples e ignorantes”
é a expressão textual da Doutrina “O
Livro dos Espíritos - questões 115-121-133-634.
É o ponto de partida. Daí por diante, cada qual adquire
sua experiência através das vidas sucessivas. É
um princípio que nos faz compreender a responsabilidade individual,
ao passo que, se admitíssemos a criação juntamente
com o corpo, chegaríamos a esta conclusão a fatal: se
a criatura é má, se abusa de suas faculdades ou de seus
recursos para dar expansão a tendências viciosas, não
é responsável por seu procedimento, uma vez que nasceu
assim, foi criada assim por Deus, colocada no corpo, ao nascer, com
todas as suas mazelas morais. No entanto, o princípio da responsabilidade
individual é válido no tempo e no espaço, segundo
o Espiritismo.
Outra, portanto, é a perspectiva
da reencarnação, que já teve defensores no seio
da Igreja, embora condenada, mais tarde, como heresia. O desenvolvimento
do Espírito modifica o perispírito, e este, pela ação
plasmadora, tem influência sobre o corpo. Como já vimos,
não apenas Platão, luminar da constelação
grega da antigüidade, esposou a concepção trinaria
do homem, mas entre escolásticos também houve partidários
dessa concepção. O homem tríplice não
desagrega a unidade básica do EU. Com esta visão antropológica,
a Doutrina Espírita situa o homem na Terra, em relação
ao presente e ao passado, apontando-lhe o caminho do futuro, sem ilusões
nem quimeras.