Deolindo
Amorim
> Um Discurso de Allan Kardec (1)
"Na coleção
da Revista Espírita há
trechos de profundo ensinamento sobre assuntos doutrinários
importantes, que até parece que foram escritos hoje
por Allan Kardec".
A Revista Espírita
(Revue Spirite) (2), cujo primeiro número
saiu no dia 1° de janeiro de 1858, e que se chamou igualmente,
Jornal de Estudos Psicológicos, é um repositório
doutrinário de alto valor histórico e cultural para
o conhecimento do Espiritismo. Nenhuma fonte de consulta, no que diz
respeito ao verdadeiro pensamento da Doutrina Espírita, além
da própria Codificação, poderia ser mais fiel
e mais autorizada.
Pena é que muita gente não
leia. Se há, realmente, quem não leia porque não
pode, não tem ambiente nem tempo, também há quem
não goste de ler, ainda que haja tempo e vagares. Há
tanta coisa importante naquela coleção da Revista. Bastaria,
se não fossem outros assuntos, que todos lessem pelo menos
o que está no corpo de alguns discursos de Allan Kardec, pondo
em foco, em oportunidades diversas, os mais sérios e mais frisantes
problemas do Espiritismo, não apenas para aquele momento, mas
para o futuro. Há trechos, por exemplo, que se ajustam inteiramente
ao momento atual; até parece que Allan Kardec estava entre
nós, vivendo as nossas experiências.
Um desses discursos, que são
páginas de profundo e marcante ensinamento, ainda para os espíritas
de hoje, foi o de 10 de abril de 1862, na abertura do ano social,
na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas
(1). Está na Revista
Espírita de junho daquele ano, logo na primeira
página. Falando, a certa altura do discurso, sobre o relativo
conhecimento que têm os Espíritos desencarnados, porque
não possuem toda a sabedoria (3),
como pensam, ingenuamente, certas pessoas, frisou Allan Kardec, muito
de propósito, que os Espíritos estão
longe de possuir a soberana ciência, e que se podem enganar.
É uma verdade pacífica, uma verdade elementar, não
há dúvida, mas o certo é que muita gente não
admite, nem por sombra, que um espírito possa errar alguma
vez!... A palavra de um Espírito, para algumas categorias de
crentes é uma sentença definitiva: "veio do
Alto é a verdade, não se discute"! Isto é
o que se pode chamar, em tudo por tudo, um raciocínio simplista.
E com essa simplicidade, que pode ser, às vezes, muito prejudicial
à compreensão da própria Doutrina Espírita,
certas frases cediças, que não se sabe se vieram realmente
do Espírito ou do médium, passam logo a tomar foros
de dogma, como se fossem a última palavra, como se fosse a
própria sapiência divina. Até mesmo uma frase
literária, que apenas soa muito bem aos nossos ouvidos, mas
não tem a necessária consistência científica
ou filosófica, pelo simples fato de ser de um Espírito,
adquire uma importância tal que termina sendo, em suma, um caso
de "citação obrigatória".
Tudo isto, afinal de contas, está em desacordo com o verdadeiro
espírito da Doutrina.
É bom lembrar, ainda mais,
a advertência de que os Espíritos, por vezes, ensina
Kardec, "emitem idéias próprias, justas ou
falsas". Veja-se bem: idéias próprias,
diz o Codificador. A opinião de um espírito seja qual
for o médium, seja qual for a categoria desse espírito
- é sempre uma opinião própria, não é
um princípio doutrinário. E ainda Kardec quem fala:
os espíritos superiores querem que o nosso julgamento
se exercite em discernir o verdadeiro do falso, aquilo que é
racional daquilo que é ilógico. Nada mais
sensato, mais oportuno. O problema existe, ainda hoje, os exemplos
estão aí. As palavras de Kardec, que falava em Paris,
no ano de 1861, ainda servem, inteiramente, para o momento atual.
É preciso levar em conta, sempre,
que o médium não é um oráculo, como não
é um santo: É uma criatura em situação
especial na vida, com uma carga pesadíssima de responsabilidade
espiritual e humana. Em lugar de se endeusar o médium, querendo
fazer dele um ser infalível, como se não fosse também
uma criatura humana, sujeita a certos riscos do ambiente terreno,
o que se deve fazer é ajudá-lo com assistência
espiritual, é apoiá-lo moralmente, evitando que certas
idéias perigosas, certas presunções de superioridade
ou de santidade lhe penetrem a alma. Devemos orar sempre pelo médium
que é um irmão, colocado em posição delicadíssima,
a fim de que ele jamais se deixe envolver por influências negativas
e seja um instrumento cada vez mais eficiente na missão que
a sabedoria divina lhe colocou sobre os ombros. Não é
de hoje que se observa o problema dos melindres no campo mediúnico,
prejudicando e desvirtuando muitos médiuns da bendita seara
da caridade. Lembremo-nos, como simples ilustração histórica,
que já na época de Kardec, e vai para mais de um século,
havia uns tantos casos de médiuns que desconfiavam dos outros
com medo que lhe fizessem sombra ou lhe apagassem a projeção.
O problema vem de muito longe. Isto, na realidade, é uma porta
aberta para a desorientação, podendo levar o médium
a comprometer gravemente a sua missão ou sacrificar todo o
seu passado.
Quando entra qualquer forma ou resquício
de suscetibilidade na esfera mediúnica, começa a aparecer
também o espírito de concorrência, isto é,
o médium A tem receio de que o médium B venha concorrer
com ele; o médium C fica prevenido com o médium D, pensando
que o outro venha a suplantá-lo e assim por diante. Muitas
vezes os problemas ocorrem por culpa dos comportamentos exagerados,
que formam partidos ou alas no campo
mediúnico, jogando um médium contra outro. Quem o maior
prejudicado? O próprio médium, não é verdade?
Quem sofre com isto: A própria causa espírita, que perde,
assim, um instrumento produtivo. Quando o médium chega a ponto
de não aceitar críticas nem advertências sensatas
e amigas, naturalmente já está fora das verdadeiras
diretrizes da missão mediúnica. Para rematar, vamos
reproduzir, aqui, mais uma oportuníssima observação
de Allan Kardec, no magistral discurso de 1862:
...como discutir comunicações
com médiuns que não suportam a menor controvérsia,
que se melindram com uma observação crítica,
com uma simples observação e acham mau que não
se aplaudam as coisas que recebem, mesmo aquelas inçadas
de grosseiras heresias cientificas?
Eis, aí, uma advertência
ainda necessária, porque o problema se repete, ainda hoje,
e a cada passo de nosso movimento. Se a comunicação
é do Espírito, pois o médium é apenas
instrumento, não há motivo para qualquer indisposição
ou mágoa do "aparelho mediúnico"
diante das criticas, especialmente quando as criticas são construtivas
e caridosas. Vem, por fim, nova e judiciosa observação
do Codificador: Disso resulta que o médium que
se acha em tais disposições está sob o império
de um Espírito que merece pouca confiança, desde que
mostra mais orgulho do que saber. Deixemos o resto do
discurso de Allan Kardec para outros comentários, naturalmente
quando houver oportunidade. A fonte está ai (1),
já traduzida para a nossa língua, e, portanto, aberta
a qualquer pessoa que se interesse pelo assunto. Seria bom, na realidade,
que o maior número possível de espíritas, simpatizantes
e principiantes lesse a preciosa coleção da Revista
Espírita. Não nos esqueçamos de
que o médium precisa ser livre para ouvir e julgar as críticas
que se lhe fazem e, por isso mesmo, o médium não pode
ficar preso a uma instituição, nem a um grupo nem a
uma pessoa, como se fosse propriedade particular. O médium
precisa mais de oração e solidariedade espiritual do
que propriamente de aplausos ou de preferências incondicionais.
É um erro querer transformar o médium em motivo de puro
vedetismo. A experiência que o diga.
NOTAS:
(1) Ler este artigo in http://www.aeradoespirito.net/RevistaEspHTML/SPEE_DISCURSO_JUN_1862.html
(2) A Revista Espírita é uma
coletânea variada de fatos, de explicações teóricas
e de trechos isolados, que completam o que se encontra em O
Livro dos Espíritos e em O Livro dos
Médiuns, formando, de certo modo, a aplicação.
Sua leitura pode fazer-se simultaneamente com essas obras, porém,
mais proveitosa será, e, sobretudo, mais inteligível,
se for feita depois de O Livro dos Espíritos.
(Sugestão de A. Kardec em O Livro dos Médiuns,
Do Método - item 35.)
(3) "Um dos primeiros resultados de minhas observações
foi que os Espíritos, não sendo outros senão as
almas dos homens, não tinham a soberana sabedoria, nem a soberana
ciência; que o seu saber estava limitado ao grau de seu adiantamento,
e que a sua opinião não tinha senão o valor de
uma opinião pessoal. Essa verdade, reconhecida desde o princípio,
me preservou do grande escolho de crer em sua infalibilidade, e me impediu
de formular teorias prematuras sobre o dizer de um só ou de alguns."
(A. Kardec no livro Obras Póstumas,
2ª parte, Minha primeira iniciação no Espiritismo.
(*) Deolindo Amorim (Baixa Grande, Bahia, 23 de janeiro de 1906 —
Rio de Janeiro, 24 de abril de 1984) foi um jornalista, escritor e conferencista
espírita brasileiro. Colaborou no Jornal do Commercio e em praticamente
toda a imprensa espírita do país. Foi um dos mais ardorosos
defensores das obras codificadas por Allan Kardec e profundo admirador
de Léon Denis, foi também, presidente do Instituto de
Cultura Espírita do Brasil e presidente de honra da Associação
Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas.
* * *
Fonte: no Jornal
Espírita - julho/07 e no livro Idéias e Reminiscências
Espíritas
Deolindo Amorim nasceu
na Bahia em 23 de janeiro de 1906 e desencarnou no Rio de Janeiro, em
24 de abril de 1984. É considerado, ao lado de Carlos Imbassahy
e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas do Brasil.
Jornalista, sociólogo, escritor espírita de estilo professoral,
extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos maiores
divulgadores do Espiritismo como cultura e voltado para a análise
de questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita
do Brasil (ICEB), foi um dos idealizadores da Associação
Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas (Abrajee) e
graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita
do Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita
Pan-Americano. Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as
Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo
e os Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas;
Allan Kardec, o Homem e o Meio, dentre outras.
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