Na discussão ou apreciação
de problemas científicos, por mais frisantes ou contundentes
que sejam as divergências filosóficas ou religiosas,
pode haver entendimento franco em determinados pontos. O campo científico,
aliás, já é, por natureza, um domínio
neutro, porque não toma partido em relação às
demandas de ordem doutrinária. As ciências estudam as
leis, procuram as relações entre os fenômenos
e, por fim, apresentam os seus resultados. Cada qual, depois disto,
que dê a interpretação que quiser. Entre as ciências
e as doutrinas há duas posições distintas: a
ciência pura, destituída de qualquer prejulgado teológico
ou filosófico, interessa-se pelo fenômeno em si, quer
saber o que ele é, e não vai além disto, pois
não lhe compete fazer especulações sobre as “últimas
causas”, ao passo que as doutrinas se preocupam com o que deve
ser, de acordo com as suas cogitações normativas.
Embora os problemas científicos ofereçam um campo livre,
sem compromisso com esta ou aquela direção filosófica,
as complicações começam justamente com a interpretação.
Em matéria interpretativa, seja qual for o objeto da discussão,
é difícil, dificílimo evitar as discordâncias,
as colisões de escolas e tendências doutrinárias.
Há ocasiões, entretanto, em que se pode partir de uma
base comum, deixando de lado umas tantas particularidades ou contornando
os “pontos de atrito” a fim de que haja, inicialmente,
condições para encarar certos fenômenos pelo mesmo
prisma, visando à compreensão geral. Nada disto é
possível quando não há espírito inteiramente
desapaixonado.
Se, de fato, há pontos irreconciliáveis na discussão
de centos assuntos, também há vez outra, alguma premissa
pacífica, alguma tese capaz de levar a conclusões convergentes
ainda que os participantes do debate sejam oriundos de escolas ou
doutrinas diversas, senão antagônicas. Tudo depende,
porém, de dois fatores indispensáveis: em primeiro lugar,
o estado de espírito de quem vai discutir, completamente livre
de prevenções; em segundo lugar, a maneira de formular
as questões, procurando situá-las em contexto próprio.
Aqui mesmo nesta Revista, e não faz muito tempo, citamos o
caso de um frade dominicano, P. Secondi, homem de notória cultura
filosófica, convidado para fazer uma conferência sobre
Telhard de Chardín no Instituto de Cultura Espírita
do Brasil. Em matéria de fé, ou mesmo em problemas filosóficos,
naturalmente nós teríamos e teremos muitos pontos discordantes,
nunca poderíamos combinar a nossa orientação
com a do ilustre frade e professor de filosofia. No entanto, o tema
da conferência foi pacífico para ele e para nós:
“Telhard de Chardin e a evolução”. Não
discutimos pontos de fé, não entramos em questões
teológicas e, por isso mesmo, o assunto ficou no plano exclusivamente
científico. Pois bem, a tese que o frade sustentou é
a mesma tese que nós, espíritas, sustentamos: “A
evolução não contradiz a idéia de Deus”.
Certamente os argumentos e as motivações são
diferentes em determinados aspectos, mas a tese, no fundo, é
válida, inteiramente válida para o Espiritismo. Eis,
aí, uma prova de que pode haver concordância entre pessoas
de concepções ou crenças diferentes na discussão
de certos problemas, quando bem formulados.
Tudo isto vem a propósito de um encontro, que se deu, há
dias, no Colégio André Maurois, no Rio de Janeiro, entre
um padre, um pastor protestante e um espírita. Foi uma reunião
cordial, em alto nível de educação e com inteira
liberdade para que cada qual. em seu momento de usar da palavra, expusesse
francamente o seu modo de ver, a definição de sua fé
ou de sua doutrina em face dos problemas propostos em sala de aula.
O espírita, no caso, foi o Presidente do Instituto de Cultura
Espírita do Brasil; o padre, ainda moço, é professor
de um Colégio, na zona sul; o pastor, além de já
ter doze anos de pastorado, como explicou no começo, é
psicólogo profissional e tem especializações
na Europa, mas ainda é relativamente moço. O encontro
faz parte dos debates periódicos da cadeira de Biologia daquele
importante estabelecimento de ensino; quem o promoveu, convidando
também um espírita, foi o Professor Jesus Viegas, que
é, aliás, oriundo de nosso meio, já fez parte
de Mocidade Espírita, em Barra do Piraí; é professor
de Biologia, está fazendo uma carreira muito auspiciosa no
magistério da Guanabara. Qual o objetivo desse encontro, com
pessoas de crenças diferentes, para um debate sobre problemas
biológicos? Que têm esses problemas com as questões
filosóficas e religiosas?... É o que vamos ver. Estávamos
diante de uma turma de alunos do 3º ano científico. O
objetivo dessas reuniões extra-curriculares é apenas
este: dar aos alunos, independentemente dos programas oficiais, uma
visão mais ampla dos problemas de Biologia, especialmente no
que diz respeito à origem da vida, que foi o tema central do
debate. Este ponto, como se vê, pela sua extensão e profundidade,
não pode ser discutido exclusivamente em termos de ciência
experimental, porque também comporta inquirição
filosófica. Daí, pois, o fato de haver o professor da
cadeira convidado um padre, um pastor e um elemento espírita.
Com um programa inteligentemente organizado pelo responsável,
cada qual usou da palavra, de início, por alguns minutos, a
fim de expor, em linhas gerais, as suas idéias e fixar a sua
posição. As perguntas, por sua vez, foram divididas
em duas ordens: perguntas gerais, sugerindo respostas dos três
representantes à mesa, cada qual segundo a sua concepção
filosófica ou religiosa; perguntas específicas, dirigidas
diretamente ora a este, ou àquele componente da mesa e particularizando
os assuntos dentro de cada corrente de idéias (protestante,
católica ou espírita). A sala estava cheia, pois a turma
do curso científico é bem numerosa, e havia algumas
professoras, mas não intervieram no debate.
Como sempre acontece em reuniões desse tipo, houve algumas
perguntas fora do tema previsto, mas não foram perguntas descabidas.
Absolutamente. Uma das alunas, por exemplo, perguntou, especialmente
ao espírita, qual a sua opinião sobre céu e inferno...
Um aluno, dirigindo-se também ao espírita, perguntou-lhe
o que pensava de Arigó. Claro que respondemos com franqueza,
embora ponderando que tais perguntas não se enquadravam no
programa da reunião, pois estávamos ali para tratar
de problemas de Biologia. Todavia, dissemos, afinal, o que qualquer
espírita teria dito naquela oportunidade: Segundo o Espiritismo,
não há céu nem inferno, pois o que existe é
uma Lei de causa e efeito, e cada qual constrói, dentro de
si mesmo, o seu céu ou seu inferno, que é problema de
consciência. Quanto a Arigó, esclarecemos logo que se
trate de um médium cuja faculdade já está demonstrada,
e por isso mesmo deveria ser estudada com maior interesse e serenidade
científica. Deu-se, aí uma passagem interessantíssima.
Embora a pergunta sobre céu e inferno tivesse sido encaminhada
diretamente ao espírita, o pastor e o padre também falaram
sobre o assunto e, por estranho que possa parecer a verdade é
que no fundo, não houve discordância de interpretação.
Céu e inferno sempre foi matéria de polêmica entre
nós. No entanto, agora, parece que as idéias estão
mudadas... o pastor explicou o problema dentro de sua linha de pensamento,
mas avançou muito, porque fez sentir, e de um modo bem claro,
que atualmente já não se pode mais pensar em localização
de céu e inferno em termos espaciais. Enfim, chegou á
conclusão de que o inferno ou o céu está realmente
na vida interior de cada pessoa. Evidentemente, é também
o nosso modo de ver, embora as premissas e razões de um pastor
sejam diferentes. A idéia capital, no entanto, é de
que o inferno de fogo eterno. já não é mais para
o nosso tempo.
Ainda mais, e este ponto nos impressionou muito. Quando estávamos
falando com a jovem, que nos dirigira a pergunta sobre céu
e inferno, exatamente no ponto em que procurávamos dar mais
ênfase aos estados de consciência, ouvimos um aparte,
do padre, concordando. De fato, logo depois o sacerdote tomou a palavra
e fez uma dissertação muito boa, dando uma interpretação
que coincide com a interpretação espírita. É
nisto que está o aspecto mais interessante. Disse, ele, para
começar, que a Teologia de hoje não pode ser mais a
Teologia da Idade Média e, portanto, a idéia de céu
e inferno, no mundo atual, não pode mais ser compreendida em
termos medievais. Muito bem! Finalmente, o padre terminou chegando
também é idéia de céu e Inferno como estados
de consciência, e não mais como um lugar determinado,
com fogo e torturas infindáveis. Neste ponto, é óbvio,
ficamos todos de acordo.
Não houve tempo, entretanto, para o esclarecimento de outras
questões, inerentes à origem da vida em face da Biologia
e da Teologia. São dois campos frontalmente distintos, pois
a ciência não entra em especulações transcendentais,
nem a Teologia tem instrumental para incursões no domínio
científico. Todavia, como o tema é muito mais elástico
do que parece, há muito o que dizer ou discutir a este respeito,
desde que se considere o problema também sob o ponto de vista
filosófico.
E qual a situação do Espiritismo neste debate? É
justamente o que vamos dizer, mas fica para o próximo outro
artigo.