A correta interpretação
do Evangelho é um grande desafio para todos os estudantes
sinceros do Cristianismo. As conhecidas limitações
do texto tornam o seu estudo uma tarefa intrincada, apesar de serem
os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João lidos e estudados
pelo mundo ocidental há quase dois mil anos.
Allan Kardec demonstrou muito cuidado e perspicácia
a fim de evitar que os estudos das mensagens de Jesus à luz
do pensamento espírita sofressem com as limitações
oriundas das tradições, o que é inerente aos
debates em que predominam a literalidade ou o excessivo apego aos
dogmas. Em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, sobretudo
nos capítulos “Moral Estranha” e “Não
vim destruir a Lei”, é possível perceber a estratégia
de estudo de Allan Kardec para contornar as dificuldades inerentes
a esse estudo.
O Codificador, por exemplo, passa ao largo do Velho
Testamento, provavelmente por perceber que somente o Evangelho já
detinha a essência do pensamento superior e que o volumoso
e contraditório texto do Antigo Testamento não teria
muito a acrescentar ao que Jesus estabeleceu. Em relação
ao Apocalipse, também em voga na atualidade, também
constatamos algo parecido, ou seja, não se trata de estudo
que recebeu destaque de Allan Kardec, provavelmente por motivos
semelhantes àqueles que fizeram o Mestre de Lyon a não
priorizar o texto do Antigo Testamento.
Ainda assim, o movimento espírita não
passou incólume às polêmicas centradas no Evangelho
e na figura de Jesus de Nazaré propriamente considerado.
Mensagens mediúnicas sobre o Evangelho, por exemplo, com
frequência mutuamente divergentes, fomentaram fragmentações
do movimento espírita devido a interpretações
e até mesmo prioridades doutrinárias significativamente
distintas.
Como estudar o Evangelho?
Em nosso movimento espírita atual, tem crescido
uma tendência de estudo bíblico de maneira bem semelhante
ao tipo de estudo desenvolvido por padres católicos e pastores
protestantes, nos quais a literalidade e a tradição
religiosa, inclusive a tradição judaica, tem recebido
grande destaque. Alguns confrades citam, inclusive, o benfeitor
espiritual Emmanuel, como referência desse tipo de abordagem
e/ou estratégia de estudo evangélico. No entanto,
seria interessante notar que Emmanuel discute os versículos,
em seus chamados “livros de mensagens”, de uma forma
bem particular, buscando aprofundar nuances do pensamento espírita-cristão,
através de reflexões filosófico-religiosas
de grande profundidade moral, sem se apegar, de forma alguma, à
excessiva literalidade ou às tradições.
O Evangelho contempla ações, vivências,
curas e pregações e/ou ensinamentos propriamente ditos.
Dentro das pregações, dois tipos de exposições
orais merecem destaques: Os aforismos e as parábolas, sendo
que dentre as parábolas, percebe-se a existência de
algumas mais simples, diretas e curtas e outras mais elaboradas
e longas.
Se analisarmos a questão meramente textual,
percebemos que nas parábolas mais longas, a probabilidade
do pensamento original de Jesus ser parcial ou totalmente perdido
por eventuais erros de tradução, interpolações
ou adulterações deveria ser, em princípio,
menor. Isso ocorreria não somente pelo número maior
de termos e/ou expressões, mas também pela própria
coerência da linha narrativa. De fato, um erro de tradução,
acentuação ou pontuação, em teoria,
deveria ter um impacto interpretativo maior em uma frase de efeito
do que em um texto mais longo que representa uma narrativa.
De qualquer maneira, usualmente, as parábolas
têm sido estudadas predominantemente de forma isolada. De
fato, é comum no movimento espírita que uma determinada
parábola seja o tema de uma palestra e que essa respectiva
exposição seja focada fundamentalmente sobre a interpretação
desse texto evangélico especificamente.
No entanto, se além dessa estratégia
didática, o estudo em conjunto das parábolas fosse
desenvolvido, é possível que uma compreensão
mais ampla do Evangelho à luz da Doutrina Espírita
fosse alcançado. Realmente, se duas ou mais parábolas
fossem analisadas em conjunto, poderíamos ter uma segurança
muito maior para decodificar o pensamento de Jesus, ou seja, teríamos
mais consciência dos conceitos fundamentais que o Mestre desejou
frisar em suas propostas didáticas.
De fato, se selecionarmos em torno de 12 a 14 das
parábolas mais elaboradas e longas de Jesus, ficaremos impressionados
com a corroboração de significativo número
delas e com a reiterada ênfase que o Mestre de Nazaré
frisou em alguns conceitos/ensinos fundamentais. É interessante
perceber que nem sempre tais conceitos são notados e muito
menos frisados em pregações cristãs, e mesmo
espíritas, o que é estranho se notarmos o quão
repetidas são algumas propostas.
A presente proposta de estudo em conjunto das parábolas
de Jesus seria uma espécie de estratégia de estudo
semelhante ao chamado “Controle da Concordância Universal
do Ensino dos Espíritos” (CCUEE) (ou simplesmente “Universalidade
do Ensino dos Espíritos” (UEE)), método que
Allan Kardec utilizou e propôs que nós, espíritas,
utilizássemos para avaliar a credibilidade do conteúdo
de mensagens mediúnicas. Por conseguinte, o presente método
de estudo poderia ser chamado de “Controle da Concordância
do Ensino das Parábolas” (CCEP).
Assim sendo, buscaríamos a leitura e o entendimento
das Parábolas, tentando inferir os conceitos fundamentais
de cada uma delas, visando avaliar corroborações com
outros conceitos obtidos de outras parábolas (e, eventualmente,
discordâncias, o que poderia sugerir interpolações
ou adulterações a que o texto possa ter sido submetido),
e, principalmente, se haveria uma sistemática repetição
de alguns desses conceitos principais pelo menos em algumas delas.
Para tanto, e apenas com fins didáticos e
preliminares, buscaremos, a seguir, frisar algumas inferências
de cada uma das Parábolas selecionadas. Vejamos:
1) Parábola do Filho Pródigo:
- Deus é Pai e é misericórdia,
o que denota, indiretamente, que o Inferno eterno não existe.
- Não se compare com seu próximo, principalmente para
se promover, e não dispute com seu irmão, sobretudo
quando for para desvalorizá-lo.
- Lei de Progresso (necessidade de modificação para
melhor, aproveitando das experiências, sendo que isso não
só é esperado como é estimulado/promovido pela
Providência Divina).
2) Parábola da Ovelha Perdida ou Desgarrada:
- Deus é Pai e é misericórdia,
o que denota, indiretamente, que o Inferno eterno não existe.
- É necessário assistir os necessitados (o que é
destacado em outras passagens, tais como: “Todas as vezes
que fizestes isso a um destes mais pequeninos, a mim fizestes”)
- Lei de Progresso (necessidade de modificação para
melhor, aproveitando das experiências, sendo que isso não
só é esperado como é estimulado/promovido pela
Providência Divina).
3) Parábola dos Talentos:
- Lei do Trabalho (necessidade de esforço
e de experiência para adquirir conhecimento e crescimento
pessoal)
- Lei de Causa e Efeito (funcionamento do MÉRITO dentro da
Lei Divina, o que fica evidente na passagem “conforme a sua
capacidade”. Vide passagem evangélica: “A cada
um segundo suas obras”).
- Necessidade de Coragem (essa é uma virtude que tem sido
pouco destacada em pregações, mas seria fundamental
para que o Espírito imortal se dispusesse e efetivamente
enfrentasse as várias situações que promovem
o seu desenvolvimento intelecto-moral).
- Empate na recompensa (aquele que recebeu dois talentos produziu
mais dois talentos e o que recebeu cinco talentos produziu mais
cinco talentos, sendo igualmente festejados), o que, indiretamente,
remete a uma interpretação gerada na “Parábola
do Filho Pródigo”, registrada a seguir.
- Não se compare com seu próximo, principalmente para
se promover, e não dispute com seu irmão, sobretudo
quando for para desvalorizá-lo.
4) Parábola do Semeador
- Lei do Trabalho (a produtividade no bem é
o que diferencia o solo bom dos solos mais problemáticos)
- Lei de Causa e Efeito (funcionamento do MÉRITO dentro da
Lei Divina)
- Necessidade de Vigilância (Perigos e cuidados necessários
para administrar o livre-arbítrio na vida física –
isto é, na reencarnação -, o que fica evidente
na descrição dos solos pedregoso e espinhoso, que
já apresentou predisposição à produção,
mas que não chegam a ser produtivos).
- Empate na recompensa (os solos que produziram 30, 60 e 100 por
um foram igualmente considerados “solos bons”).
5) Parábola do Publicano e do Fariseu
- Deus é Pai e é misericórdia,
o que denota, indiretamente, que o Inferno eterno não existe.
- Importância da Fé em Deus, consciência da imortalidade
e eficácia da prece.
- Não se compare com seu próximo, principalmente para
se promover, e não dispute com seu irmão, sobretudo
quando for para desvalorizá-lo (vide a passagem evangélica
do “cisco e da trave”.
- Lei de Progresso (necessidade de autoconhecimento, visando ao
autoaperfeiçoamento - vide “O cisco e a trave”).
6) Parábola do Joio e do Trigo
- O tempo como importante dádiva/oportunidade
divina (seria um “talento” divino, utilizando a “Parábola
dos Talentos” como referência).
- Lei de Progresso (o progresso requer tempo e, usualmente, a evolução
dos usos e costumes pode não ser a mais adequada em alguns
setores da experiência humana. No entanto, esse tipo de limitação
é natural e deve ser compreendida dentro desse processo educacional).
- Destaque para a necessidade da coexistência de Espíritos
com evolução diferenciada, como processo educacional
para os dois grupos (os mais evoluídos são exemplos/referências
para os menos evoluídos e os menos adiantados são
testes de paciência, dedicação e lucidez para
os mais aptos).
7) Parábola do Bom Samaritano
- Necessidade de solidariedade através da
caridade material.
- Importância da eliminação de preconceitos
- Parceria na execução do bem (necessidade de aprender
a trabalhar em equipe, ou seja, ajudar a quem ajuda)
- Necessidade de compaixão.
8) Parábola do Credor Incompassivo
- Deus é Pai e é misericórdia,
o que denota, indiretamente, que o Inferno eterno não existe.
- O Inferno eterno não existe (o endividado ficaria preso
ATÉ que pagar o débito, denotando que existiria sempre
a possibilidade do pagamento, isto é, da quitação
da dívida)
- Necessidade de Perdão.
- Necessidade de Gratidão.
- Não se compare com seu próximo, principalmente para
se promover, e não dispute com seu irmão, sobretudo
quando for para desvalorizá-lo.
- Necessidade de autocrítica (vide a passagem do “cisco
e da trave” e a própria “Parábola Fariseu
e do Publicano”).
9) Parábola do Rico e de Lázaro
- Necessidade de solidariedade através da
caridade material.
- Existência do Mundo Espiritual.
- Existência de barreiras vibratórias no mundo espiritual.
- Permanência de valores familiares no mundo espiritual (preocupação
com os seres amados).
- Mediunidade como fonte de informações sobre o mundo
espiritual.
- Tradições religiosas como fonte de conhecimento
espiritual e geradora de responsabilidade espiritual.
- Discussão da pouca eficácia educativa do fenômeno
mediúnico isolado, sem uma análise filosófico-religiosa
desse respectivo fenômeno.
10) Parábola dos Trabalhadores do Última
Hora
- Necessidade de aproveitamento do tempo.
- Não se compare com seu próximo, principalmente para
se promover, e não dispute com seu irmão, sobretudo
quando for para desvalorizá-lo.
- Interessante discussão sobre a comparação
bondade versus conjunto de boas ações (nem sempre
quem fez mais ações de bondade será necessariamente
o mais bondoso, muito embora não há como ser bondoso
sem fazer bondade).
11) Parábola do Administrador Infiel
- Necessidade de gerar uma “corrente de simpatia”
(conceito discutido por Emmanuel e André Luiz. Poderia ser
feita uma leve correlação entre a “corrente
de simpatia” com a chamada “interseção”).
- Lei de Progresso (Se não pudermos ter um aproveitamento
total das oportunidades evolutivas, o aproveitamento parcial já
é conquista razoável).
12 e13) Parábola do Amigo Importuno/Parábola
do Juiz Iníquo
- O valor intrínseco e imperdível
do bem praticado, mesmo que esse bem seja efetuado de forma bem
imperfeita.
É interessante notar como alguns ensinamentos são
ilustrados e reiterados em várias Parábolas, tais
como Deus como Pai misericordioso e a necessidade de melhoria pessoal,
caracterizando a Lei de Progresso. Também é possível
notar que Jesus rejeita duramente as comparações/disputas
em que nos colocamos em relação a nossos irmãos
para destacar nossas qualidades. Por outro lado, Jesus recomenda
uma ativa ação de solidariedade, com destaque para
a caridade material, assim como um permanente espírito de
compaixão, não só como sentimento, mas também
como ação efetiva. É possível notar
que Jesus meio que iguala as recompensas pela produtividade no bem,
permitindo inferir que a Lei de Deus nota o contexto de dificuldade
ou facilidade em que determinada produção no bem foi
feita assim como o nível evolutivo em que o Espírito
estava ao iniciar essa tarefa no bem. É possível notar
esse sentido de proporção da produção
no bem esperada pela Espiritualidade Maior em relação
ao nível de preparo prévio do Espírito desenvolvedor
da respectiva tarefa, o que indiretamente sugere a Lei de Progresso.
Há um tema que recebe grande destaque em
algumas Parábolas que seria o aproveitamento das diversas
oportunidades evolutivas, tais como recursos materiais e o próprio
tempo, e o valor intrínseco do bem praticado, mesmo por um
Espírito que claramente ainda apresenta deficiências
morais.
Tema como o funcionamento do mundo espiritual pode
ser inferido na “Parábola do Rico e de Lázaro”,
mas não se trata de tema reiterado em vários textos,
pelo menos, de forma mais direta.
A presente estratégia de estudo poderia
ser mais ampliada, abrangendo outras parábolas e os próprios
aforismos do Cristo. Acreditamos que esse tipo de abordagem seria
uma alternativa mais segura doutrinariamente e seguiria, de forma
mais coerente, a maneira de estudar de nosso Codificador, Allan
Kardec.