A CONTRAGOSTO, sou daqueles a favor da internação
compulsória dos dependentes de crack.
Peço a você, leitor apressado, que me deixe explicar,
antes de me xingar de fascista, de me acusar de defensor dos hospícios
medievais ou de se referir à minha progenitora sem o devido
respeito.
A epidemia de crack partiu dos grandes centros urbanos e chegou
às cidades pequenas; difícil encontrar um lugarejo
livre dessa praga.
Embora todos concordem que é preciso combatê-la, até
aqui fomos incapazes de elaborar uma estratégia nacional
destinada a recuperar os usuários para reintegrá-los
à sociedade.
De acordo com a legislação atual, o dependente só
pode ser internado por iniciativa própria. Tudo bem, parece
democrático respeitar a vontade do cidadão que prefere
viver na rua do que ser levado para onde não deseja ir. No
caso de quem fuma crack, no entanto, o que parece certo talvez não
o seja.
No crack, como em outras drogas inaladas, a absorção
no interior dos alvéolos pulmonares é muito rápida:
do cachimbo ao cérebro a cocaína tragada leva de seis
a dez segundos. Essa ação quase instantânea
provoca uma onda de prazer avassalador, mas de curta duração,
combinação de características que aprisiona
o usuário nas garras do traficante.
Como a repetição do uso de qualquer droga psicoativa
induz tolerância, o barato se torna cada vez menos intenso
e mais fugaz. Paradoxalmente, entretanto, os circuitos cerebrais
que nos incitam a buscar as sensações agradáveis
que o corpo já experimentou permanecem ativados, instigando
o usuário a fumar a pedra seguinte, mesmo que a recompensa
seja ínfima; mesmo que desperte a paranoia persecutória
de imaginar que os inimigos entrarão por baixo da porta.
A simples visão da droga enlouquece o dependente: o coração
dispara, as mãos congelam, os intestinos se contorcem em
cólicas e a ansiedade toma o corpo todo; podem surgir náuseas,
vômitos e diarreia.
Quebrar essa sequência perversa de eventos neuroquímicos
não é tão difícil: basta manter o usuário
longe da droga, dos locais em que ele a consumia e do contato com
pessoas sob o efeito dela. A cocaína não tem o poder
de adição que muitos supõem, não é
como o cigarro cuja abstinência leva o fumante ao desespero
esteja onde estiver.
Vale a pena chegar perto de uma cracolândia para entender
como é primária a ideia de que o craqueiro pode decidir
em sã consciência o melhor caminho para a sua vida.
Com o crack ao alcance da mão, ele é um farrapo automatizado
sem outro desejo senão o de conseguir mais uma pedra.
Veja a hipocrisia: não podemos interná-lo contra a
vontade, mas devemos mandá-lo para a cadeia assim que ele
roubar o primeiro transeunte.
A facção que domina a maioria dos presídios
de São Paulo proíbe o uso de crack: prejudica os negócios.
O preso que for surpreendido fumando apanha de pau; aquele que traficar
morre. Com leis tão persuasivas, o crack foi banido: craqueiras
e craqueiros presos que se curem da dependência por conta
própria.
Não seria mais sensato construirmos clínicas pelo
país inteiro com pessoal treinado para lidar com dependentes?
Não sairia mais em conta do que arcar com os custos materiais
e sociais da epidemia?
É claro que não sou ingênuo a ponto de acreditar
que, ao sair desses centros de tratamento, o ex-usuário se
tornaria cidadão exemplar; a doença é recidivante.
Mas pelo menos ele teria uma chance. E se continuasse na cracolândia?
E, se ao receber alta contasse com apoio psicológico e oferta
de um trabalho decente, desde que se mantivesse de cara limpa documentada
por exames periódicos rigorosos, não aumentaria a
probabilidade de permanecer em abstinência?
Países, como a Suíça, que permitiam o uso livre
de drogas em espaços públicos, abandonaram a prática
ao perceber que a mortalidade aumenta. Nós convivemos com
cracolândias a céu aberto sem poder internar seus habitantes
para tratá-los, mas exigimos que a polícia os prenda
quando nos incomodam. Existe estratégia mais estúpida?
Faço uma pergunta a você, leitor, que discordou de
tudo o que acabo de dizer: se fosse seu filho, você o deixaria
de cobertorzinho nas costas dormindo na sarjeta?