Drauzio Varella atravessa tão
de mansinho o salão lotado do Bar da Dona Onça, restaurante
no centro paulistano, que, quando nos damos conta, lá está
ele, em pé, ao lado da mesa. O porte esguio e a calvície
precoce ele herdou do pai, assim como a crença "obstinada
no trabalho duro", lição que segue à risca.
Para dar conta da agenda atribulada, aboliu o almoço. "Não
consigo comer em paz quando sei que tem pessoas me esperando. Fico
ansioso, me atrapalho." Mas nesta segunda-feira se deu ao "luxo",
já que as filmagens de uma nova série no "Fantástico"
ainda não começaram.
Drauzio passou esta manhã na Penitenciária Feminina,
onde há oito anos faz trabalho voluntário. Sua sala
é uma cela. Tem cadeiras, uma mesa e uma maca. Puxa para
si o bloco de notas e a caneta da repórter, desenha pavilhões,
galerias e alas do lugar. Esse universo marginal o fascina desde
criança, quando assistia a filmes de prisão e acompanhava
os planos de fugas mirabolantes dos encarcerados. Sua primeira incursão
em um presídio foi no extinto Carandiru, em São Paulo,
experiência que transformou em livro premiado que depois virou
filme nas mãos do diretor Hector Babenco.
"Numa cadeia ninguém
conhece a moradia da verdade", prega o ditado da malandragem.
Mas depois de 25 anos convivendo com detentos o doutor é
capaz de farejar seus males e manhas. "Homem mente, mas mulher
mente muuuito mais", diz, esticando a vogal para dar a medida
da astúcia feminina.
Recosta-se na cadeira e passa a
contar alguns casos, que estarão em seu próximo livro,
"As Prisioneiras", a ser publicado pela Companhia das
Letras. Outro dia, conta, uma mulher de 60 anos nem bem entrou em
sua sala e já foi narrando seu fardo: estava no shopping
quando uma moça se aproximou e pediu que segurasse um pacote
para ela ir ao banheiro. "Ia fazer essa desfeita?" Segurou
o embrulho e esperou que ela voltasse. Bem nessa hora, a polícia
apareceu. "Dá cá este pacote!", ordenou
o policial, já puxando e abrindo o enorme volume. "E
adivinha só o que tinha dentro? Cocaína. Vejam vocês."
"E a menina que foi ao banheiro? Não voltou?",
provocou Drauzio. "Doutor. E não é que ela desapareceu?",
respondeu a senhorinha, com feições da madre Teresa
de Calcutá.
Drauzio no Dona Onça:
“Política pública em saúde só
funciona se for para todo mundo. Quando é só para
pobre, esquece, porque fracassa”
Em momentos como esse o médico
costuma fazer cara de paisagem. "É raro uma presa que
diga 'sou traficante ou matei fulano." Mas há aquelas
que falam à vontade com ele. É o caso da jovem que
chegou em casa e deu de cara com o marido abusando de sua filha
de 8 anos. Deixou a menina aos cuidados de uma vizinha, voltou e
descarregou o revólver nele. "Em um caso assim",
diz levando o corpo para a frente e cruzando os braços sobre
a mesa, "não dá nem para criticar. Não
é verdade?"
Em seguida lembra-se da mulher que viu pela manhã. Sem alfabetização,
com quatro filhos, deu à luz o caçula na prisão.
Só se deu conta de que estava grávida no sétimo
mês de gestação. Consumidora de crack, costumava
se prostituir para conseguir a droga. "Por incrível
que pareça, não pegou aids", comenta o médico,
um dos pioneiros no combate à doença no Brasil. Em
1984, já com vasta experiência no setor de imunologia
do Hospital do Câncer, em São Paulo, Drauzio foi fazer
estágio em um hospital em Nova York, na época o epicentro
da aids. "Não se sabia de nada. Nem que era um vírus.
Fiquei encantado. Era uma doença que tinha depressão
imunológica, um agente infeccioso e câncer, tudo de
que eu mais gostava na medicina", relata, com olhos brilhando.
Drauzio, desde criança, sabia o que seria. "Ouvia as
histórias da gripe espanhola e ficava imaginando pilhas de
mortos nas carroças e eu, homem adulto, de óculos,
capa de chuva e maleta de couro igual à do dr. Isaac examinando
os doentes de casa em casa com o estetoscópio, no meio da
epidemia", narra em seu livro "Nas Ruas do Brás."
De volta ao Brasil, lá estava ele como nos devaneios infantis,
no meio de uma calamidade pública. Drauzio era provavelmente
o único oncologista que tinha visto de perto casos de sarcoma
de Kaposi, câncer que provoca manchas na pele, complicação
comum na aids. "Todos os casos vieram para mim e fiquei envolvido
com o problema da aids. Morria todo mundo, não escapava ninguém."
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Pela minha história
de vida e pela especialidade médica que escolhi, tenho longa
convivência com a morte. Perdi minha mãe com 4 anos
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Alertar a população era urgente. Foi nesse momento
que o jornalista Fernando Vieira de Melo o convidou para fazer pequenas
vinhetas em rádios e esclarecer a população
sobre a doença que se alastrava. Mas havia um preconceito
enorme. "Médico sério não aparecia em
televisão, de jeito nenhum." O convite era um acinte.
"Fernando, você quer acabar com minha carreira? Ô
loco", lembra-se. "Era essa a visão da época,
imagina. A medicina era conhecimento de uma casta. Mas a função
do médico é divulgar esse conhecimento o máximo
possível. Foi assim que entrei nessa vida", conta ele,
que se tornou um dos médicos mais conhecidos do país.
A experiência de duas décadas como professor de cursinho
foi de grande valia. Até hoje tem ajudado Drauzio a transpor,
em linguagem acessível, os meandros dos mais variados temas
de sua área.
"Cai fora da seringa, cara.
Se você não consegue encarar a vida de cara limpa,
fuma, cheira, faz supositório. Mas não injeta na
veia", dizia em um de seus textos na rádio, sempre
num tom direto, sem rodeios.
Outro que falava sem rodeios era
o sonoplasta, um senhor com décadas de experiência
em rádio. Drauzio achava que tinha a voz fanhosa - "ainda
tenho, mas já não me incomoda tanto" - e perguntou
o que poderia fazer para melhorá-la. "Nada", disse
o homem. "Tem gente que nasce com voz boa, tem gente que nasce
com voz ruim. A sua voz é ruim", e encerrou o assunto.
O fato é que as vinhetas deram certo, assim como as medidas
inovadoras que ganharam impulso na década de 90. "Nós
íamos viver uma das maiores tragédias do mundo",
observa. O Brasil tinha um índice de contaminação
equiparado ao da África do Sul, recordistas de casos da doença.
O Ministério da Saúde, comandado por José Serra
na época, conseguiu conter o avanço da aids, investindo
em campanhas de prevenção e oferecendo tratamento
gratuito aos doentes.
"Quando uma população
com HIV positivo é tratada, você inativa a carga
viral nas secreções sexuais e, com isso, reduz a
transmissão. Demonstramos isso. E política pública
em saúde só funciona se for para todo mundo. Quando
é só para pobre, esquece, porque fracassa. O Brasil
revolucionou o tratamento de aids e virou exemplo para o resto
do mundo."
Drauzio recebe o Prêmio Jabuti por
“Estação Carandiru”, em 2000
Mas os dados mais recentes são
menos alentadores. Um relatório divulgado no mês passado
pelo Programa Conjunto das Nações Unidas (Unaids)
aponta que as novas infecções por HIV no Brasil aumentaram
11% nos últimos oito anos. E como diz um de seus quadros
na televisão: "E Agora, Doutor?"
"A gente deitou sobre os
louros obtidos com o tratamento e bobeou com a prevenção.
Agora estamos pagando o preço."
A nova geração não
viu o impressionante impacto da doença em fase terminal.
Graças à medicação existente, a aids
se tornou de certa forma uma doença controlável, o
que dá a falsa impressão de ser curável. Para
Drauzio, seria fundamental que todos fizessem o teste, o que ajudaria
a evitar novas transmissões.
"Ele poderia ser obrigatório.
Qual é o preconceito? Os médicos pedem exame de
sífilis e não pedem da aids? Não consigo
entender uma coisa dessas."
Com o aumento de novos casos, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou
recentemente o uso de antirretrovirais como profilaxia pré-exposição
para homens gays e outros grupos de risco. É uma decisão
acertada? A medida, diz, pode reduzir consideravelmente a chance
de um indivíduo ser infectado. Portanto, deveria, sim, ser
adotada. Mas com ressalvas.
"Isso não basta, entende?
O problema principal é a aderência. Será que
as pessoas vão tomar direito o medicamento? Será
que vão se sentir protegidas porque estão tomando
o remédio e deixarão de usar preservativo? E não
é pelo fato de o cara ser gay que faz ele correr mais risco.
O que faz ele correr mais risco é o número de parceiros
e sexo desprotegido. Há gays que são absolutamente
monogâmicos."
Com Babenco: cineasta faz superprodução
de “Estação Carandiru”
O pessoal da mesa ao lado, que chegou ao mesmo tempo que nós,
já está no café, e nós só na
conversa. Drauzio pega um cardápio, estica o braço
bem longe do corpo e aperta os olhos, miúdos, para conseguir
ler as opções do menu. Decide pelo arroz de bacalhau.
Para beber? Água. Bebida alcoólica somente nos fins
de semana, e olhe lá.
"O que eu gosto mesmo é
de uma dose de cachaça. Pura. E com os carcereiros costumo
tomar uma cerveja."
Foi com um grupo desses agentes
que Drauzio passou a se reunir depois das longas jornadas de trabalho,
em um botequim de frente para o Carandiru, convivência que
ele narra em seu livro "Carcereiros". A casa de detenção
foi extinta, mas não a camaradagem entre eles.
"Esse é o programa
de que mais gosto. A gente dá tanta risada, de perder o
fôlego. Eles têm uma experiência de vida que
eu precisaria nascer umas três vezes para adquirir. E eles
escutam. No ambiente social em que a gente vive, as pessoas não
estão interessadas em ouvir as outras. Quando vou a festas,
o que é raro, as pessoas falam sem parar. Não preciso
dizer nada. Só presto atenção. Aliás,
às vezes nem presto atenção."
O médico exemplar que bebe
água à nossa frente também já tomou
um grande porre na vida. Foi aos 16 anos, quando entornou uma garrafa
de licor de ovos.
"Era doce, uma coisa horrível",
conta, fazendo careta.
Já na faculdade seu pecado
foi tomar anfetaminas, que lhe davam gás para varar noites
estudando para as provas.
Pesquisa de plantas medicinais na Amazônia:
por descuido, febre amarela
Maconha ele provou mais velho, já
formado. Assim que o efeito bateu, viu surgir uma aura verde brilhante
ao redor de um de seus amigos. Passada a alucinação,
ficou enjoado e teve ataque de pânico. Aliás, a droga
foi tema de várias das colunas que publicou recentemente
na "Folha de S.Paulo". O médico apresentou dados
científicos apontando os malefícios e os benefícios
da maconha e, por fim, concluiu que o melhor seria legalizá-la.
Enquanto abre espaço na mesa para o garçom servir
a comida, Drauzio explica o porquê.
"Essa política de
guerra à droga é ridícula. Fala a verdade.
É um fracasso retumbante. Faz o quê? Pega um moleque
com baseado, prende e põe no meio da bandidagem? É
um absurdo esse negócio. O que acontece nessa guerra toda?
A gente conseguiu diminuir o consumo? Não para de crescer.
Vai mandar todo mundo para a cadeia?"
Para ele, melhor encarar que as
pessoas usam e buscar meios de tornar o uso legal.
"Legalizar não é
liberar geral. Veja o caso do cigarro. Aprendemos a lidar, considerando
a dependência da nicotina e impondo limites do convívio
social. Olha aqui", diz, abrindo os braços e dando
um olhar panorâmico no restaurante onde freguês nenhum
está autorizado a fumar.
O médico ao lado da atriz Regina Braga,
com quem é casado desde 1981
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Essa política de guerra à droga
é ridícula. É um fracasso retumbante. Faz
o quê? Pega um moleque com baseado, prende e põe
no meio da bandidagem?
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Neste momento, pela janela, vemos
uma moça do lado de fora do Dona Onça, na entrada
do icônico Edifício Copan, tragando com vontade. Percebe
que é observada e se vira de costas. O médico, que
encampou uma cruzada contra o tabaco, ri. Afirma que às vezes
se sente como a encarnação de "um personagem
repressivo." No Hospital Sírio-Libanês, os funcionários
costumam fumar na calçada da entrada. Basta ele apontar ao
longe para aquele grupo de homens e mulheres se esconderem. "Tem
cabimento?"
Termina de falar e só então pega os talheres e quebra,
com prazer, a gema do ovo frito que vem sobre o arroz.
- Uma de suas pacientes, que teve câncer, voltou a fumar e
está com receio de revelar sua recaída para o senhor.
Como reage a esse tipo de notícia?
- Pela minha história de vida e pela especialidade médica
que escolhi, tenho uma longa convivência com a morte. Perdi
minha mãe com 4 anos. Essa é uma contradição
fundamental: vida e morte. Tenho tolerância com os erros dos
outros, eu também cometo muitos erros.
Para mostrar que é maleável, cita o caso um de seus
pacientes da detenção que se negava a abandonar o
crack. Drauzio sugeriu, então, que substituísse a
droga pesada pela maconha.
"Não é bonito
um médico falar uma coisa dessas, mas o que é melhor?
Queria que ele não fumasse nada, mas o outro não
é como você gostaria que fosse."
Resgata uma história em quadrinhos
que costumava ler quando criança. O herói era um sujeito
que, um dia, pescando, viu cair um raio na água e desmaiou.
A partir desse momento passou a sonhar com tragédias que
de fato se concretizavam. Ciente de seu poder premonitório,
tentou evitar, a todo custo, que as desgraças ocorressem.
Em vão. Foi tachado de louco e acabou os dias trancafiado
em um hospício.
"Sabe, eu me identifico com
esse personagem. Quando vejo um homem de 60 anos, com cigarro
no bolso, aquela barriga que parece ter oito meses de gravidez,
tenho vontade de dizer: 'Vai te acontecer uma desgraça.
Você vai ter um enfarte ou derrame'. Mas não posso,
senão também vou parar em um hospício."
Em seguida, ajeitando um montinho
de arroz no garfo, lembra-se de seu irmão caçula,
oncologista como ele, que morreu aos 45 anos de câncer no
pulmão. "Ele me deixava exasperado. Falava todos os
dias: 'Fernando, para de fumar'. Não adiantou nada."
Interrompe o percurso da comida à boca e completa. "Sabe,
hoje eu me arrependo. Acho que infernizei muito ele." E só
então finaliza a garfada.
Seu celular toca algumas vezes, pede licença e atende. Assim
que desliga, conta que acaba de morrer a mãe do convidado
que seria entrevistado por ele à noite na Livraria Cultura.
"A morte é tão
enigmática. Lidar com o fato de a vida terminar",
comenta depois de avisar ao pessoal da livraria que o evento seria
cancelado.
“Eles [carcereiros] têm uma experiência
de vida que eu precisaria nascer três vezes para adquirir”
Drauzio aprendeu cedo que morte é a ausência definitiva.
Poucos dias depois que sua mãe morreu, sentado à mesa
do café da manhã, o menino perguntou à avó.
"Vó, nunca mais vou ver minha mãe?" A senhora
espanhola, trajando vestido preto, não conseguiu dizer nada.
Permaneceu cabisbaixa na direção da leiteira. O médico
tratou do tema da finitude em seu livro "Por um Fio",
em que conta a sua experiência com doentes terminais e relembra
a perda da mãe e do irmão.
Dispensamos a sobremesa. Drauzio não come doce há
décadas, é ex-fumante - embora ainda sonhe com cigarro
- e corre maratonas. Está até escrevendo um livro
sobre sua experiência nesse tipo de prova. Determinado, o
oncologista costuma pular da cama às 5h30 para correr pelas
ruas ainda desertas da cidade. Mas até esse homem acostumado
a dar conselhos médicos na televisão comete deslizes.
Em 2004, ao voltar de uma viagem à floresta amazônica
- local que já visitou dezenas de vezes por causa do trabalho
de pesquisa que desenvolve no rio Negro -, descuidou da dose de
reforço da vacina contra febre amarela e acabou infectado.
Achou que fosse morrer. A atriz Regina Braga, sua mulher desde 1981,
e as filhas de seu primeiro casamento, a tradutora Mariana e a também
médica Letícia, revezaram-se ao seu lado. A história
toda foi narrada em seu livro "O Médico Doente".
Já tomando café, Drauzio, que está com 71 anos,
diz que não adianta cuidar só do corpo.
"Quando vejo um velho solitário,
fico pensando se não está só porque não
é interessante. Que vive de lamúrias e lamentações,
o que acaba afastando as pessoas. Pode parecer cruel dizer isso,
mas é verdade na maior parte dos casos. Acho que você
tem que se habituar com a idade, com a mudança de cenário
e a perda de pessoas próximas. Por isso, acho importante
ter contato com um grupo maior de pessoas, de idades diferentes,
e ter vontade de experimentar o novo."
O garçom traz a conta. Quando
saco o cartão para pagar, Drauzio interfere indignado. "Sabe,
tenho a maior dificuldade de deixar uma mulher pagar minha conta."
Eis uma boa chance para mudar hábitos arraigados e fazer
algo novo, não?
Ele ri e guarda a carteira, meio a contragosto. São quase
cinco da tarde quando saímos do restaurante sob um sol já
pálido. Drauzio faz questão de caminhar com a repórter
até um ponto de táxi, do outro lado da avenida. Abre
a porta para que entre e só arreda pé quando o carro
some pela avenida movimentada.
Há certos hábitos que um cavalheiro à moda
antiga não abandona. Jamais.