André
Ricardo de Souza (2)
> Por que Kardec não era racista e precisamos tratar
desse assunto? (1)
*
texto disponível em pdf - clique aqui para
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“Nada há encoberto
que não haverá de ser revelado,
nem escondido que não haverá de ser conhecido.”
–
Jesus (Lucas, 12:2)
É inquestionável a elevação
espiritual de Allan Kardec, assim como a grandeza de sua missão,
cumprida com sacrifício e esmero. Mas sabemos que, com a exceção
do perfeito Senhor Jesus, todos os demais espíritos que encarnaram
na Terra foram, de algum modo, limitados em determinados aspectos
e pelas circunstâncias de seu tempo histórico. Dito isso,
passemos à complexa relação entre a obra do missionário
lionês e a questão racial.
O Ministério Público Federal da Bahia - vale relembrar
a algumas pessoas e informar outras - recebeu uma reclamação,
em 2006, contra afirmações consideradas racistas na
obra de Kardec e veio a firmar um Termo de Ajustamento de Conduta
(TAC), assinado em 2007 pela Federação Espírita
Brasileira (FEB), pela Federação Espírita do
Estado de São Paulo (FEESP) e por mais seis editoras espíritas,
exigindo que em todas as edições dali em diante fossem
inseridas páginas finais dos livros contendo uma “nota
de esclarecimento alusiva aos trechos nos quais se pode vislumbrar
eventual conteúdo discriminatório ou preconceituoso”,
além da inserção de “notas de rodapé
toda vez que um texto sobre esse assunto suscitar dúvidas quanto
ao seu caráter discriminador ou preconceituoso”. No TAC,
ao todo, foram listados 106 trechos com tal perfil (3).
Entre os textos com maior problema estão “Frenologia
espiritualista e espírita: Perfectibilidade da raça
negra”, publicado na Revista Espírita,
em abril de 1862 (páginas: 150-151), e “Teoria da
beleza”, no livro Obras póstumas,
página 165 (este de 1890, portanto após a desencarnação
de Kardec e sem a sua revisão final, cabe ponderar). Nestes
dois textos se encontram, respectivamente, as duas afirmações:
1) “Os negros, pois, como
organização física, serão sempre os
mesmos; como Espíritos são sem dúvida uma raça
inferior, quer dizer, primitiva, são verdadeiras crianças
às quais pode-se ensinar muita coisa.”
2) “Um negro é belo para outro negro, como um gato
é belo para outro gato; mas não é belo no sentido
absoluto, porque os seus traços grosseiros, seus lábios
espessos acusam a materialidade dos instintos; podem bem exprimir
as paixões violentas, mas não saberiam se prestar
às nuanças delicadas dos sentimentos e às modulações
de um espírito fino.”
A decisão judicial foi correta
e necessária, dado que o danoso racismo é um problema
concreto e, infelizmente, bastante vigente ainda no Brasil, embora
de modo dissimulado, muitas vezes, sendo por este motivo apontado
em pesquisas sociológicas como ‘racismo cordial’
(Venturi, 1995). Cabe ponderar que a reflexão sobre esse tema
só emergiu, de fato, posteriormente à existência
terrena de Kardec. Ele havia adotado parte de preceitos racistas,
considerados científicos, à época, sendo a maioria
deles inerentes à frenologia (pseudociência que propugnava,
por exemplo, a análise da moralidade e da capacidade intelectual
das pessoas através do formato do crânio). Ou seja, ao
tempo do codificador do espiritismo, falar e escrever sobre ‘raça’,
não apenas quanto a animais, era algo normal e havia um racismo
“cientificamente” vigente, algo ao qual ele não
conseguiu ser imune. Vale lembrar, neste sentido, que foi somente
depois do Holocausto na II Guerra Mundial que a expressão “acabar
com a raça” ganhou na Europa conotação
genocida. Em suma, por sua biografia documentada e pelo conjunto da
sua obra publicada, sabemos que Allan Kardec não era racista,
mas, infelizmente, o foi em trechos que compõem seus escritos.
Neste aspecto, pode-se compará-lo a Paulo de Tarso, que, pela
explícita valorização de mulheres nas primeiras
comunidades cristãs (Xavier, 2013), não era machista,
mas, a despeito de erros de tradução em algumas de suas
epístolas (Baumert, 1999), verifica-se que ele foi machista
em trechos delas.
Certo de que o negacionismo é nocivo, afirmo que é preciso
reconhecer plenamente esses fatos, afinal não podemos ser obscurantistas,
impedindo o necessário esclarecimento. Digo isso não
só devido ao próprio Kardec ter recomendado que o espiritismo
se pautasse pela ciência (necessariamente comprometida com a
realidade), mas porque tal problema, muito longe ainda de ser inteiramente
reconhecido pelo movimento espírita, é um dos fatores
que contribuem para que grande quantidade de jovens (cada vez mais
informados, através da internet) rejeite o espiritismo (Carvalho,
2022; Souza, 2022). Como professor universitário presenciei,
em aula, alunos designando o fundador espírita como racista.
Diante de tal quadro, vejo realmente com bons olhos o fato de ter
sido publicado e disponibilizado gratuitamente, em 20 de novembro
de 2022 (Dia da Consciência Negra), O evangelho segundo
o espiritismo: edição antirracista (4),
e, em 18 de abril deste ano (dia importante para todos nós,
espíritas), O livro dos espíritos: edição
antirracista (5). Nas duas publicações,
os trechos que legalmente deveriam apenas compor pequenas notas de
rodapé (discretas e pouco lidas) estão no corpo do texto,
logo após o trecho original, permitindo a esclarecedora comparação
entre ambos. Verifica-se, de fato, que não se trata de adulteração
do texto original (algo inadmissível), mas sim de uma legal,
necessária e salutar adaptação. A atribuição
do nome ‘antirracista’ a estas edições de
livros do codificador espírita não significa realmente
que todas as demais sejam racistas, mas sim que estas têm uma
explícita e pedagógica adaptação quanto
à questão racial. Será, a meu ver, pertinente
elaborar outro nome que evite a interpretação de que
as demais edições seriam racistas, cabendo o destaque
também de trechos, filosoficamente demonstrativos, do caráter
não racista de Kardec. O fato de as publicações
terem sido providenciadas por um grupo chamado Coletivo de Espíritas
à Esquerda tem feito com que a aversão à iniciativa,
devido à incompreensão do seu sentido e da sua legitimidade,
seja aumentada por preconceito político-ideológico,
algo inflamado nos dias atuais por posições políticas
extremadas.
Não só nas obras de Kardec, mas também em importantes
livros psicografados por Francisco Cândido Xavier (2009; 2010),
é apontado algo que veio a ser constatado por muitos autores
das ciências humanas, com destaque para um dos fundadores da
sociologia, o alemão Max Weber (1991 e 2004). Trata-se da predominância
do modo de vida ocidental, originário da Europa e América
do Norte, sobre as demais culturas regionais do planeta e que se traduz
no termo: capitalismo industrial moderno. Embora abarcando determinados
ganhos civilizatórios, de caráter filosófico
e científico, verifica-se que tal modo de vida, impulsionado
pelo pensamento calculista, contém contradições
relacionadas, sobremaneira, com a degradação ambiental
e a grande desigualdade social. Importantes valores quanto à
convivência das pessoas em comunidade e com a natureza - próprios
de povos originários de África, Ásia, Oceania
e América Latina - foram muito desprezados, necessitando ser
recuperados e valorizados. Ainda sobre este ponto, cabe lembrar que
no âmbito do cristianismo nascente, em Jerusalém, e de
europeias práticas cooperativistas autogestionárias
do século XIX surgiria um contraponto a tal modo de vida individualista,
orientado por um fazer econômico diferente, que é chamado
hoje de economia solidária (Singer, 1998; Souza, 2019).
Temos no Brasil e no mundo não mais um racismo científico,
mas sim um racismo estrutural, entranhado cultural e institucionalmente
na sociedade, que precisa ser realmente enfrentado (Almeida, 2019).
Tal embate passa também pelo reconhecimento pleno do problema
nas obras de Kardec, como feito através das referidas publicações,
algo que é relevante ainda, como dito, no combate ao preconceito
atual de muitos jovens em relação ao espiritismo. Ressalto
que esse posicionamento não significa, de modo algum, adulterar
ou distorcer as obras do codificador espírita, tampouco relativizar
a importância dele. Também buscando a maior adesão
de jovens e a popularização, em geral, do espiritismo,
proponho que haja um simples glossário convencional, de português
apenas, abrangendo palavras que são pouco comuns atualmente,
tanto nas obras de Kardec quanto nos principais livros psicografados
por Chico Xavier.
É sabido que o espírito reencarna em diferentes etnias,
na condição de homem e de mulher. Mas tal conhecimento
espírita não elimina o fato de o racismo ainda ser grave
e necessitar ser valente e caridosamente enfrentado. Por fim, aproveito
esta oportunidade também para defender o espiritismo não
laico e cientificista, mas sim tão científico
quanto religioso, sem ser dogmático. Isto implica em não
atribuir, de fato, perfeição a Kardec, reconhecendo
plenamente o seu caráter humano. Para fazer jus à
divina obra dele O evangelho segundo o espiritismo e ao que sabiamente
reiterava o espírito Emmanuel e o médium mineiro de
Pedro Leopoldo, não basta ser religioso espírita, é
preciso ser espírita cristão.
1 - Agradeço
a Astolfo Olegário Oliveira Filho, bem como à minha esposa
Margareth e à minha filha Vitória, cujas objeções,
cada qual à sua maneira, me ajudaram a melhorar este pequeno
artigo.
2 - André Ricardo de Souza - Doutor
em sociologia pela USP, professor associado do Departamento de Sociologia
da UFSCar, pesquisador do CNPq, organizador de dois livros de ciências
sociais sobre o espiritismo e colaborador do paulistano Núcleo
Espírita Coração de Jesus (NECJ). É autor
de artigos em revistas científicas sobre o espiritismo e do livro:
A veracidade e conexões da obra Paulo e Estêvão
(EVOC, 2021), gratuitamente disponível em: http://www.oconsolador.com.br/editora/101a150/Veracidade.pdf
3 - Disponível em:
https://www.mpgo.mp.br/portalweb/hp/41/docs/tac_-_mpf_-_bahia_-_textos_espiritas_-_preconceito_e_discriminacao.pdf
4 - Disponível em: https://espiritasaesquerda.com.br/eseantirracista/
5 - Disponível em: https://espiritasaesquerda.com.br/oleantirracista/
Referências
bibliográficas:
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural.
São Paulo, Pólen, 2019.
BAUMERT, Norbert. Mulher e homem em Paulo. São Paulo,
Loyola, 1999.
CARVALHO, Antonio Cesar Perri de. Juventude: alertas sobre contextos
sociais e espirituais. Boletim do GEECX. 27 de julho de 2022. http://grupochicoxavier.com.br/juventude-alertas-sobre-contextos-sociais-e-espirituais/
KARDEC, Allan. Frenologia espiritualista e espírita: perfectibilidade
da raça negra. Revista Espírita. Abril, 1962, p.
150-151 https://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1862.pdf
KARDEC, Allan. Obras postumas. Araras, Ide, 16ª edição.
2003.
SINGER, Paul. Uma utopia militante: repensando o socialismo.
Petrópolis, Vozes, 1998.
SOUZA, André Ricardo de Souza. Por que tratarmos da nossa
permanência espírita nos 2% da população
nacional? O Consolador: Revista semanal de divulgação
espírita. Ano 16, n. 789, 11 de setembro de 2022 http://www.oconsolador.com.br/ano16/789/ca2.html
SOUZA, André Ricardo de. A economia solidária no livro
Paulo e Estêvão. Boletim do GEECX. 15 de fevereiro
de 2019. http://grupochicoxavier.com.br/a-economia-solidaria-no-livro-paulo-e-estevao/
VENTURI, Gustavo. Racismo cordial: a mais completa análise
sobre o preconceito de cor no Brasil. São Paulo, Ática,
1995.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.
V. 1. Brasília, Editora da UnB, 1991.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito”
do capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
XAVIER, Francisco Cândido. Brasil, coração do
mundo, pátria do evangelho. Pelo espírito Humberto
de Campos. 33ª edição. Rio de Janeiro, FEB, 2009.
XAVIER, Francisco Cândido. A caminho da luz. Pelo espírito
Emmanuel. 37ª edição. Rio de Janeiro, FEB, 2010.
XAVIER, Francisco Cândido. Paulo e Estêvão.
Pelo espírito Emmanuel. 45ª edição. Brasília,
FEB, 2013.
André Ricardo de Souza
Abril de 2023
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