O desenvolvimento umbandista
A Umbanda é uma religião
essencialmente urbana, com origem histórica no Rio de Janeiro
dos anos 20, então capital federal, de onde os terreiros do
chamado baixo espiritismo ou macumba não tardaram a se espalhar
pelas cidades brasileiras, sobretudo nas emergentes áreas metropolitanas.
Cresceu conquistando adeptos do catolicismo popular e do kardecismo
das classes médias. O avanço umbandista destacou-se
em São Paulo, onde em 1960 os terreiros já tinham invertido
a proporção de 1 para 10 em relação aos
originários centros espíritas (Concone e Negrão,
1987). Com grande capacidade de auto redefinição e adaptando-se
ao meio social em que se insere, a Umbanda efetivamente vinha para
ficar.
Entre a mesa branca e o culto
aos deuses africanos, a Umbanda se constituiu como uma multifacetada
opção religiosa. Abrangendo o "contínum
mediúnico", por um lado próxima à magia
ritual e por outro à palavra, como preceito de orientação
moral (Camargo, 1961), essa religião, tida como brasileira
por excelência, oferece uma diversidade de elementos simbólicos
(discursivos e litúrgicos) que vão desde a tradicional
origem negra à mais recente onda "espiritualista"
da New Age. Trata-se de um bricolage tanto mais versátil, ao
que teorizara Roger Bastide (1975), quanto mais rico em possibilidades
se tornou o campo religioso contemporâneo. A Umbanda
atende aos anseios das camadas mais pobres, cujo ideário mágico
quanto à busca da solução de problemas de ordem
material, sobretudo, a torna contraponto do pentecostalismo
(Fry, 1975). E se adapta também
às classes médias escolarizadas, demandantes de mensagens
racionalizadas e de terapias para o corpo e para a alma, afinal sensíveis
ao apelo esotérico (Magnani,
1996).
Muito já foi dito sobre a brasilidade
da Umbanda, pela síntese das culturas (negra-africana, indígena-ameríndia
e branca-européia) que lhe é atribuída, numa
afirmação até ufanista do caráter identitário
nacional. Ela parece ser mais brasileira, entretanto, pela contradição
moral que encerra, o que a torna um reflexo da nossa sociedade. Do
familiar e carinhoso preto-velho ao trickster e arruaceiro exu, muitos
guias se apresentam e são reconhecidos como "paizinhos"
ou "compadres". Há uma identificação
generalizada com vários personagens da vida cotidiana do país.
Através da religião se constrói um palco onde
a sociedade brasileira faz sua auto-dramatização, vindo
a apresentar, sob o rótulo "quimbanda", as faces
que não confessaria de outro modo (Prandi, 1996-a). Por tudo
isso, essa religião é definida, sincrética e
contraditoriamente: entre a demanda e a caridade, entre o bem (direita)
e o mal (esquerda), ou como disse Lísias Negrão, "entre
a cruz e a encruzilhada" (1996).
A Umbanda tem realmente uma
considerável capacidade de absorção e redefinição
de traços religiosos diversos. Neste trabalho analiso
o modo como ela utiliza esse recurso para ajustar-se eficientemente
a diferentes contextos sociais. Nessa empreitada de adaptação,
um guia chama a atenção: o baiano.
Essa entidade, historicamente nova, cujo culto vem se destacando nos
últimos 30 anos, assume características diferentes,
de acordo com o estilo de vida do público participante nas
giras. Busco compreender a emergência dessa entidade, sua crescente
afirmação e popularização em dois contextos
sociais distintos. A idéia da eficaz prestação
de serviços parece ter grande importância no contexto
social marcado pela pluralismo e pela competição religiosa
(Prandi, 1996-b). Foi meu objetivo portanto apreender como o universo
umbandista de elementos simbólicos, sobretudo no que se refere
a essa entidade espiritual, é modificado em função
do serviço religioso prestado, que é moldado pelos padrões
culturais e sócio-econômicos locais.
Para tanto estudei o jeito de ser
e o significado de baianos de duas unidades de culto inseridas em
áreas distintas: um terreiro de um bairro de classe média
e outro da periferia paulistana. A pesquisa mostrou que essa entidade
constitui um trunfo da Umbanda para ser versátil e atraente,
dentre as diversas opções religiosas da atualidade.
A conversão a essa religião se dá, em grande
parte, pelo atribuição ao guia espiritual da solução
de aflições cotidianas. Há um pano de fundo de
aspectos culturais que propicia considerável identificação
com os baianos.
Conversão
pela eficácia do guia espiritual
Converter-se à Umbanda significa
aceitar a possessão, isto é, a comunicação
com os eguns ou encantados, espíritos desencarnados de origens
míticas que se colocam a serviço dos humanos aflitos.
É portanto um rompimento com a idéia de controle absoluto
da consciência, grande valor da sociedade racional ocidental.
Ou seja, ser umbandista, bem como adepto das demais religiões
afro-brasileiras, é conceber uma benéfica multiplicação
do eu, através da manifestação de diferentes
personalidades espirituais, os "santos da cabeça do médium"
(Prandi, 1991-b). Essa adesão religiosa implica na superação
do obstáculo imposto pela moralidade cristã, ainda bastante
arraigada e que relaciona as atividades mediúnicas ao pecado.
A condenação religiosa e as acusações
cientificistas, etnocêntricas, de distúrbio mental, foram
suporte para a repressão do estado ao cultos de origem africana,
tratados como "caso de polícia" até os anos
50. Por outro lado, a aceitação do transe foi facilitada
pela concepção popular de reencarnação,
além das noções de contato com o sobrenatural,
tão difundidas, em geral, na cultura brasileira. A
Umbanda beneficiou-se desse trunfo cultural e se aproximou do seu
lado kardecista, organizando federações para fins de
proteção jurídica e praticando a caridade para
obter uma legitimidade moral. Enfim, em detrimento da magia de origem
negra, ela racionalizou-se à moda branca (Ortiz, 1990;
Prandi, 1999).
Ser filho-de-santo na sociedade pós-industrial
moderna ainda não significa estar totalmente isento do estigma,
mas já é, sem dúvida, exercício de uma
prática religiosa qualquer em meio a tantas outras opções.
O homem e a mulher modernos estão em busca do carisma que lhes
conceda segurança e bem-estar. Há uma liberdade legítima
para fazer experiências místico-devocionais e passar
de uma religião à outra sem se sujeitar a constrangimentos,
pois, afinal, na sociedade contemporânea acaba por prevalecer
o dito popular "cada um, cada um", a liberdade de escolha,
a diferença entendida como um direito, o direito à
diferença. (Pierucci, 1999).
Um misto de curiosidade, medo e fascínio,
além da busca de solução de algum infortúnio,
na base do "quem sabe dá certo", faz as pessoas irem
a uma gira de Umbanda. Um convite de amigo, evidentemente, tem maior
força quando a pessoa está vivendo alguma dificuldade
significativa. Quando o problema íntimo é dito (ainda
que de uma forma genérica) pela boca do "próprio
espírito incorporado" tem-se aí uma surpresa e
de imediato a relativização do preconceito inicial.
Vejamos, nesse sentido, o depoimento de Carla, 23 anos, ex-católica.
Eu estava chateada com um monte de
coisas, as brigas em casa, o fim do meu namoro... Um dia a Fátima
me convidou para ir na sessão do centro dela e eu fui...
Eu achava uma farsa, como boa católica,
mas comecei a acreditar quando o Zé do Coco falou exatamente
o meu problema.
O contato inicial com a religião,
em que o espírito fala, ainda que indiretamente, do problema
que a aflige a pessoa, pode ser considerado o primeiro passo de uma
eventual conversão. Depois, seguindo os conselhos e prescrições
de banho rituais ou alguma outra "obrigação"
(oferenda, despacho) recomendados pelo guia, muitos consulentes sentem
ter alcançando a ajuda procurada, tendo para si a prova da
eficácia religiosa. Daí para tornar-se um membro da
assistência é um passo, que pode em seguida resultar
em mais um "filho da casa". Nesse processo é relevante
a acolhida dos cambonos, que são os assistentes dos guias,
mas o decisivo é o atendimento dos preto-velhos, caboclos e
outras entidades espirituais, de quem o consulente logo se torna amigo
íntimo. Observa-se grande fidelidade do consulente para com
seu guia predileto, com o qual em cada sessão busca conversar
longamente. Os baianos parecem privilegiados no estabelecimento dessas
relações de intimidade e espontaneidade, sempre com
a exteriorização de muita alegria, tendo assim grande
facilidade para conquistar novos adeptos para a religião. A
mesma neo-umbandista Carla, afirma que sua adesão à
Umbanda se deu em grande parte pela ação de um baiano:
Eles te ajudam a resgatar a auto-estima
que você perdeu em algum lugar.
Eles te dão uma sacudida, os
guias em si, principalmente o Zé do Coco, ele tem uma forma
carinhosa de lidar com com as pessoas...
Como uma religião afro-brasileira,
a Umbanda requer tempo de aprendizado dos mistérios do panteão,
do ritual, do receiturário mágico. A jovem umbandista
ainda está iniciando-se na religião e explica que deverá
passar por um "aprimoramento mediúnico". Feito isso
ela estará apta a ser "cavalo" para um guia dar consulta,
talvez também um baiano, como seu querido Zé do Coco.
Quem é o baiano
Entre os anos 50 e 60, quando a Umbanda
se firma em São Paulo, a capital paulista assiste a um grande
fluxo migratório, que a torna uma das maiores metrópoles
do mundo. Pela grande quantidade, destacam-se os nordestinos, que
vêm em grande parte para trabalhar nas obras de construção
civil, como os "peões" urbanos, assim como nos mais
diferentes ramos da indústria automobilística então
em expansão, especialmente ocupando os postos de trabalho não
qualificado. No imaginário popular dessa cidade o nordestino
é portanto associado ao trabalho duro, à pobreza, ao
analfabetismo, aos bairros periféricos, à vida precária,
de um modo genérico, a tudo que é considerado inferior
ou brega. Com o inchaço populacional e os crescentes problemas,
inerentes ao processo de metropolização, o senso comum,
marcado pelo preconceito, passa a procurar o "culpado" pelo
ônibus lotado, pela falta de emprego, enfim pelas mazelas da
cidade. E a culpa é recorrentemente atribuída ao "intruso",
o "cabeça chata ignorante", o nordestino.
Assim como o oriental é
indiscriminadamente rotulado de japonês, o nordestino é
o baiano. Na vida cotidiana da cidade se percebe o caráter
negativo dessa designação: "isso é coisa
de baiano", "que baianada você fez" etc. Ainda
que elementos culturais originários da Bahia e do Nordeste
tenham sido valorizados pela mídia (no carnaval, na música
popular), fenômeno de alguma forma expresso na proliferação
dos candomblés em São Paulo (Prandi, 1991-a), o termo
"baiano" (nordestinos, em geral) ainda continua sendo pejorativo.
Não obstante, o baiano alcançou grande popularidade
na Umbanda, tendo já superado o preto-velho na composição
dos nomes que são dados aos terreiros paulistas, ficando atrás
apenas do caboclo (Negrão, 1996).
A Umbanda caracterizou-se
por cultuar figuras nacionais associadas à natureza, à
marginalidade, à condição subalterna em relação
ao padrão branco ocidental. O nordestino é
o "subalterno" da metrópole, o tipo social "inferior"
e "atrasado", e por isso objeto de ridicularização,
mas também de admiração, pois igualmente representa
aquele que resiste firmemente diante das adversidades. O baiano representa
a força do fragilizado, o que sofreu e aprendeu na "escola
da vida" e portanto pode ajudar. O reconhecido caráter
de bravura e irreverência do nordestino migrante parece ser
responsável pelo fato de os baianos terem se tornado uma entidade
de grande freqüência e importância nas giras paulistas
nos últimos anos.
De um modo geral, baianos são
tidos como pessoas alegres e teimosas em afirmar sua identidade cultural.
Os baianos da Umbanda, entretanto, são pouco presentes
na literatura científica. Sabe-se que eles são guias
que mesclam características da direita e da esquerda, como
exus transfigurados em "espíritos de luz"
(Prandi, 1996-a). Nas giras ele se apresenta com forte traço
regionalista, usando chapéus de palha ou de couro, às
vezes lembrando os cangaceiros. Eles são "do tipo que
não leva desaforo pra casa", como define a filha-de-santo
de um terreiro situado num bairro da periferia, acostumada ao jeito
valente do nordestino:
Baiano é encrenqueiro. Quando
é pra xingar ele xinga mesmo. Trabalha mais na direita, mas
à vezes também na esquerda. Depende do grau de evolução,
do estudo do guia.
Por outro lado, no terreiro de um
bairro situado na área central da cidade, os freqüentadores
da casa afirmam que gostam dos baianos por sua capacidade de ouvir
e aconselhar.
Os baianos têm paciência
para ouvir e dar conselhos.
Eles são carinhosos e passam
segurança.
Num outro terreiro, com semelhante
formação social (de classe média) os baianos
também conversam bastante, dão conselhos e falam baixo,
mansamente. Eles usam essências aromáticas, ervas, flores
e velas coloridas em seus "trabalhos". Este terreiro, cuja
arquitetura é de um moderno templo, recebe o nome de Glauco
e Rosa, respectivamente os nomes do exu e da baiana de Dona Dagmar,
a mãe-de-santo, conquanto a distinção entre as
duas entidades espirituais seja bem demarcada, como explicita uma
cambono da casa:
Aqui os baianos não bebem bebida
alcoólica, só os guias da esquerda bebem, mas esse culto
é fechado.
Nestes dois terreiros os baianos são
"doutrinados", apresentando um comportamento comedido, o
que significa não beber álcool, preferindo água-de-coco
ou refrigerante, não xingar, nem provocar os presentes em voz
alta, não sendo enfim zombeteiros como outros baianos.
Há portanto diferentes
modelos de baianos, os quais têm em comum uma grande
popularidade. Trazendo em si faces marginais, familiares, irreverentes,
complacentes o baiano faz sucesso em realidades sociais distintas.
Analiso mais detidamente o culto aos baianos em dois terreiros paulistanos,
da classe média e do bairro popular, respectivamente.
A tenda que virou templo
O Templo Espiritualista Marco Antônio,
que até quatro anos atrás chamava-se Tenda Umbandista
Marco Antônio, funciona há 23 anos no número 781
da avenida Cantareira, no Alto de Santana. Seu líder, proveniente
de família kardecista, parece bastante influenciado pela origem
religiosa familiar e pelo meio social em que vive, imprimindo forte
traço kardecista a seu terreiro. Semanalmente ministra palestras
e convida pessoas para dar cursos sobre temas que considera de interesse,
como espiritualidade, depressão, meditação, relaxamento,
evangelho e espiritismo etc.
Nas religiões afro-brasileiras,
em que cada terreiro é autônomo em relação
aos demais, o estilo do terreiro é em grande parte decorrência
da personalidade e da cosmovisão do pai-de-santo, que exerce
em sua comunidade autoridade incontestável. Na referida casa
de culto, cujo líder é reverenciado pelo modo elaborado
de se comunicar, ocorre uma valorização da palavra,
do discurso racional. O destaque fica para seu "guia de frente",
Marco Antônio, espírito de um menino baiano de oito anos
de idade, cuja fala intelectualizada, segundo os adeptos da casa,
se deve à "luz" que alcançou em suas vidas
pregressas. Valoriza-se também, neste terreiro, as práticas
esotéricas e terapêuticas ensinadas e empreendidas por
médicos, astrólogos e outros intelectualizados filhos
da casa.
A entidade espiritual mais frequente
nas giras é o baiano, reconhecido por seu "poder de bênção".
As sessões acontecem quinzenalmente, pois há outras
atividades na casa, e às sextas-feiras, porque segundo o pai-de-santo
é um dia de "intenso magnetismo e vibrações
energéticas".
O espaço físico que
comporta o templo é típico de uma área comercial
de grande cidade: salão de tamanho médio (mais ou menos
40 m2) bem instalado no andar de acima de uma loja de roupas, numa
avenida bastante movimentada. Ao chegar ao terreiro, subindo a escada,
logo se depara com uma mesa receptora que distribui senhas para os
passes e consultas, um marca da burocracia idealizada e valorizada
pela Umbanda. Quem vai para se consultar apanha, ao entrar, sua senha,
que marca sua ordem de atendimento com o guia desejado, e aguarda
o começo da gira aproveitando para pôr as conversas em
dia com os demais presentes, amigos e iniciados.
Em geral, uma gira de Umbanda segue
a seguinte ordem: canto de abertura dos trabalhos, que pode ser o
hino da Umbanda; orações, às vezes de acentuada
conotação sincrética, e defumações;
saudação inicial do sacerdote, dos médiuns e
dos cambonos; pontos cantados de descida; pontos cantados de subida
e saudação final (Magnani, 1986). A gira do terreiro
Marco Antônio não foge à regra, mas tem suas peculiaridades.
A oração inicial é uma espécie de credo
católico com alguns termos adaptados: "Oxalá todo
poderoso, criador do Astral e da Terra"; "comunhão
dos orixás"; "santa doutrina espiritualista".
Outros pontos de destaque são a complexidade das falas do pai-de-santo
e de seu guia e a maneira serena dos baianos atenderem ao público.
A gira dessa casa umbandista surpreende
pela mistura de elementos de culto, pelo clima de espetáculo
que se cria e pela ênfase na prática discursiva. Antes
da abertura das cortinas para o início da sessão, ouve-se:
uma mensagem em off sobre as recomendações da casa (desligar
aparelhos eletrônicos, observar precauções contra
incêndio), em seguida uma canção relacionada a
orixás (Tenda dos milagres, de Caetano Veloso, por exemplo),
dois toques de campainhas; e só então começa
a sessão. Os atores entram em cena. Há atabaques de
verdade, mas todos os filhos da casa vestem calças e tênis
brancos e dançam de modo contido para a vinda dos guias. As
pessoas vêm de lugares distantes, inclusive outras cidades da
Grande São Paulo. Essa distância que traduz-se em comunidade
só de encontros — não de convivência —
se apresenta como vantagem para quem não quer expor a vida
privada. A maioria dos freqüentadores é formada por "gente
bem situada", cujos carros estacionados à porta apontam
o status social. Mas todo mundo reverencia e pede conselhos ao estereótipo
ainda ridicularizado no cotidiano paulistano, o arretado baiano.
Os pontos cantados chamam o elenco
protagonista da gira para "trabalhar, praticando a caridade e
trazer os ensinamentos de Oxalá". E os baianos vêm
com jeito manso, preguiçoso. Essa tranqüilidade, segundo
o povo da assistência, os faz "transmitir muita paz".
Usam chapéu de palha, só alguns fumam, mas todos têm
um assistente que conduz uma maleta contendo velas brancas, açúcar,
mel, fitas de cetim coloridas e perfume, entre outros utensílios
e ingredientes mágicos do guia. Os baianos bebem refrigerante,
sobretudo o brasileiro guaraná, por vezes diet. Com seus acessórios
e o auxílio dos cambonos, os guias consultam, levando em geral
muito tempo com cada pessoa. Eles ouvem bastante e falam em "firmar
a cabeça", "buscar paz espiritual". Buscam enfaticamente
acalmar e alentar as pessoas que os procuram. Esses são os
baianos pacientes para ouvir e aconselhar, uma versão light
desta entidade.
O terreiro de fundo de
quintal
O Abaçá Caetés
Girassol situa-se à rua Ouvídio José Antônio
Santana, 233, Vila Nova Cachoeirinha, periferia norte da cidade. É
um terreiro já antigo no bairro, com cerca de 30 anos, localizado
no quintal da residência de dona Eudóxia, a mãe-de-santo.
O local de culto é pequeno, tendo no máximo 20m2, repleto
de imagens de santos católicos. Numa das paredes há
um quadro de avisos, no qual chamam a atenção os convites
para uma excursão ao litoral paulista e para uma feijoada,
com o fim de arrecadar recursos para o terreiro. As mulheres usam
saias compridas e vestidos e calçam chinelos, quando não
estão descalças.
O guia mais reverenciado é
o caboclo Caetés, o "chefe da casa", incorporado
pela mãe-de-santo. Há periodicamente giras dedicadas
aos espíritos da esquerda, lideradas pelo Exu Sete Encruzilhadas.
Os baianos também têm muito prestígio e participam
da gira juntamente com os caboclos. As sessões acontecem todos
os sábados, às 20 horas.
A gira no Abaçá começa
com uma breve oração à Nossa Senhora Aparecida,
liderada pela mãe-de-santo. Não há discursos
e a fala da sacerdotisa é bastante simples. Um ponto cantado
anuncia o início dos "trabalhos" e logo em seguida
ela incorpora o seu caboclo, logo seguido de outros que vêm
para ajudar no atendimento à assistência. Grande parte
dos consulentes está em busca de cura, pois a fama de curandeiro
do caboclo de frente da casa é notória nas vizinhanças.
Feitas as consultas, os "médicos" vão embora
para a vinda dos "advogados". É a vez dos baianos.
Andando lá na rua
Eu pisei numa macumba
Mas não adianta não
Porque lá vem o baiano
Pra demanda desmanchar
Lá vem o baiano feiticeiro,
O baiano macumbeiro,
Vem aqui pra trabalhar
Este é o ponto cantado para
a vinda dos baianos. Eles já chegam dando altas gargalhadas,
brincando com os filhos da casa e com a assistência. Nesse terreiro
os baianos são muito animados, gostam de contar piadas e de
dançar. Usam chapéus de palha amassados e rasgados e
todos fumam, às vezes charuto. Os poucos cambonos que os assistem
logo levam cachaça e batida de coco, de preferência servida
na própria casca. E eles, tirando sarro, não demoram
a pedir mais. O atendimento começa e percebe-se que enquanto
os caboclos são mestres na cura de males do corpo, os baianos
são especialistas em resolver questões financeiras e
problemas ligados à intimidade, como adultério, desavenças
por maledicência etc. Diz-se que os baianos são mais
afeitos a solução de problemas "da terra".
Eles fazem os consulentes beberem de sua bebida, enquanto os cambonos
anotam em folhas de papel suas receitas de "obrigação".
Álcool e fumo são ingredientes mágicos indispensáveis
para a intervenção do baiano nas coisas do mundo profano.
Os principais atributos do guia que atraem os clientes parecem ser
a objetividade e a ousadia, conforme diz uma das pessoa da assistência:
Ah, eu gosto mesmo é do baiano!
Ele vai direto ao ponto, o que tiver que falar ele fala mesmo. Se
for preciso xingar, ele xinga!
Os pontos cantados falam de "velho
feiticeiro", "viajante da Bahia que abre caminhos",
ou seja, se referem a alguém que conhece mandingas, os segredos
da magia e usa isso para ajudar. Enquanto os pretos-velhos e caboclos
mostram limitada disposição para trabalhos moralmente
duvidosos, os baianos não vacilam em aceitar tal tipo de empreitada.
Por vezes eles surgem "virados" para atuarem juntos com
os exus na esquerda. Afinal, em sua vidas pregressas, eles não
foram médicos nem cientistas, mas sim nordestinos pobres, brigões,
pais-de-santo, "macumbeiros" etc. Para enfrentar as dificuldades
do dia-a-dia, o que é genericamente julgado certo ou errado
se confunde nas atitudes concretas para o alívio imediato.
Estes são os baianos arredios e justiceiros, a versão
cabra da peste.
Os baianos no panteão afro-brasileiro
As figuras centrais da Umbanda são,
por um lado, o caboclo e o preto-velho e, por outro, o exu e a pombagira.
Essas entidades espirituais são recuperadas de matrizes e estereótipos
presentes na formação do povo brasileiro, fazendo aparecer
no centro do culto tipos sociais, tradicionais ou contemporâneos,
que podem ser pensados como pertencentes a categorias sócio-culturais
"inferiores" e "subalternas", o que é distintivo
desta religião em relação ao kardecismo, que
prefere o contato com os considerados espíritos evoluídos,
cultos e escolarizados. No desenvolvimento da Umbanda, associado às
transformações de seu meio social nos grandes centros
urbanos, outros personagens foram surgindo, como o boiadeiro, o marinheiro,
o cigano, o baiano etc. Os boiadeiros podem ser considerados um tipo
de caboclo, associado ao sertanejo, ao trabalhador rural que vive
da lida com o gado no sertão, em condições duras
que requerem muito esforço e determinação. Há
portanto proximidade entre o boiadeiro e o baiano, sendo este, no
entanto, o nordestino do meio urbano. Em termos de mestiçagem,
o boiadeiro remete ao mundo do caboclo indígena, enquanto o
baiano ao negro africano. Em outro plano, enquanto o boiadeiro representa
o trabalho e a sisudez, o baiano é a festa, a alegria, a malandragem
do negro. (Concone, 1988, reeditado neste volume). O baiano é
o negro ou o mulato das cidades litorâneas da Bahia, embora
os baianos cultuados no tambor-de-mina maranhense, igualmente negros,
não sejam considerados originários da Bahia, mas sim
de alguma baía mítica em que teriam se encantado (Ferreira,
1999).
Ao baiano da Umbanda é atribuído
grande fama de "macumbeiro", pois, segundo a concepção
popular, ele é capaz de fazer ou quebrar as chamadas "demandas",
as temidas magias maléficas, por isso atuando às vezes
também na quimbanda, em meio aos exus e pombagiras. O ponto
cantado no terreiro Lodê Oiá de Dona Maísa, da
periferia norte de São Paulo, ilustra tal ambigüidade:
Aê baianinha
Da sandália de ouro
Venha ver seu povo baianinha
Que vale um tesouro
Aê baianinha
Da sandália de pau
Onde ela bate o pé baianinha
Faz o bem, mas também faz o
mal
Ela é da Bahia
Cidade Santa
Terra da Magia
A baiana desse terreiro, Dona Maria
de Nagô, é uma mulher idosa considerada meiga e astuta.
Segundo a chefe da casa, ela foi uma mãe-de-santo da Bahia,
"filha de Nanã". O baianos da Umbanda foram ou pais-de-santo
do candomblé baiano ou então negros ou mestiços
de africanos com grande experiência de vida. Nesse sentido,
em termos de senilidade, os baianos se aproximam dos pretos-velhos.
Em alguns terreiros sobressai o lado arredio e feiticeiro, noutros
o sábio conselheiro.
Conclusão
A Umbanda assimilou a lógica
da oferta de bens simbólicos para a conquista e manutenção
de seu espaço no campo religioso contemporâneo, marcado
pelo pluralismo cultural pela competição por adeptos.
Para tanto ela mantém os antigos traços do catolicismo
popular, do ritualismo mágico, do atendimento direto às
aflições das camadas populares. Aí o terreiro
é referência no bairro pobre e tem um caráter
de agregação comunitária. Os guias são
reconhecidos como benzedores, "milagreiros", defensores
por "quebrar demandas e abrir caminhos", enfim agentes solucionadores
de problemas diversos da população local.
Num outro contexto, porém,
a religião associa a racional ênfase na palavra com traços
atuais de espiritualismo da chamada Nova Era. A Umbanda aproveita
elementos esotéricos presentes nos hábitos de consumo
e se mostra "atualizada". Aí o templo é uma
casa de prestação de serviços, que acentua o
anonimato da vida na grande cidade. A religião assume um caráter
terapêutico, constituindo-se em mais uma opção
para o indivíduo na sociedade urbana secularizada.
O baiano constitui um importante
componente de síntese da Umbanda para que ela se afirme na
sociedade contemporânea. Em termos morais, esse guia,
que atua também na quimbanda, representa o esforço que
a religião vem fazendo ao longo do tempo para apagar a dicotomia
o bem e o mal, que a caracteriza historicamente. Mas além de
ajustar-se à direita e à esquerda (caridade e demanda),
o baiano associa a mensagem moralizadora ao ritual mágico.
Isso é bastante relevante, pois essa religião tem um
pé na magia afro-indígena e outro na racionalidade cristã.
Mais que qualquer outra entidade do panteão, o baiano alia
a orientação de conduta à manipulação
do mundo. Por isso tem prestígio junto às classe médias
e aos segmentos populares, pois ajusta-se tanto ao estilo sério,
manso, sábio quanto ao zombeteiro, arredio, valente. O baiano
pode ser o generoso conselheiro ou o arretado comprador de brigas
alheias. Ele pode ser associado à água-de-coco com a
rede de dormir ou à peixeira com cachaça, ao velho pai-de-santo
"evoluído" ou ao "cangaceiro" destemido,
à MPB cult ou ao forró brega, aos personagens sedutores
de Jorge Amado ou ao Zeca Diabo de Dias Gomes. Enfim, entre terapeuta
moderno e xamã tribal, essa entidade espiritual, como um camaleão,
representa de fato um trunfo considerável para a versatilidade
da Umbanda.
BASTIDE, Roger. As religiões
africanas no Brasil. São Paulo, Pioneira, 1975.
CAMARGO, Cândido Procópio
Ferreira de. Kardecismo e Umbanda. São Paulo, Pioneira,1961.
CONCONE, Maria Helena Vilas Boas e
NEGRÃO, Lísias Nogueira. Umbanda da repressão à
cooptação. In: Umbanda & política. Cadernos
do ISER, 18. Rio de Janeiro, ISER e Marco Zero, 1987.
CONCONE, Maria Helena Vilas Boas. O
ator e seu personagem. In: CONSORTE, Josildeth Gomes e COSTA, Márcia
Regina. Religião, política, identidade. São Paulo,
Educ, 1998.
FERREIRA, Francelino de Shapanan Vasconcelos.
Caboclos e encantados no tambor-de-mina e outras religiões afro-brasileiras.
Texto apresentado no Primeiro Congresso de Umbanda e Candomblé
de Diadema (mimeo). Diadema, 28 de fevereiro de 1999.
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