Não deve, assim, causar
mal-estar a existência, no meio espírita, de diferentes
enfoques do paradigma espírita, assumidos por grupos que
se fortaleceram na última década e que, mesmo, eventualmente,
fora dos centros espíritas e suas estruturas hierárquicas,
alimentam e revigoram o pensamento espírita valendo-se, preferencialmente,
da moderna comunicação eletrônica. A eles deve-se
a eclosão de um novo e interessante capítulo da história
do Espiritismo.
Tenho visto companheiros espíritas
muito preocupados. A causa vem de anos. Mas, dois fatores bastante recentes
terminaram por ampliá-la exponencialmente: a pandemia e o consequente
debate maciço de ideias via redes sociais.
Nasceu daí e se intensificou
a diversidade de interpretações acerca de aspectos de
certa relevância doutrinária. Enquanto o Espiritismo foi
tido e organizado como um movimento praticamente monolítico,
com um sistema federativo “oficial” a ditar normas de organização
e interpretações doutrinárias, divulgadas como
orientações emanadas “do Alto”, parecia reinar
a paz. Havia algumas dissidências, que corriam marginalmente e
eram apontadas como obra das “trevas”, vinda dos “inimigos
internos no Espiritismo”. Mas eram quase invisíveis e inaudíveis
pela grande massa formadora da “religião espírita”.
Kardec era, então, uma referência
bastante remota, estudado por alguns “intelectuais”, distanciados
do “Espiritismo cristão e evangélico”, alimentado
e sustentado este pela produção mediúnica de um
ou dois médiuns, intérpretes do pensamento de dois ou
três Espíritos de forte impregnação católica.
A Descoberta de Allan Kardec
Tudo começou a mudar com a implantação
dos programas de estudos nas casas espíritas.
Mesmo que, nas cartilhas oficiais, fossem recomendadas
preferencialmente fontes de estudos provindas da mediunidade “à
brasileira”, modelo “emmanuelino”, “andreluizista”
e “bezerrista”, era impossível, num estudo sério,
patrocinado pelas federações, deixar de lado os pressupostos
básicos de Kardec. Uma mensagem mediúnica de Chico Xavier,
atribuída a Bezerra de Menezes, propunha, então: “Kardequizar
é a legenda de agora”, como a anunciar uma nova etapa para
o Espiritismo brasileiro, a partir dos pressupostos básicos de
seu fundador.
O movimento espírita qualificou-se
com a “descoberta” de Allan Kardec. Mas, ao mesmo tempo,
passou-se a atribuir a ele uma aura de infalibilidade. Expressões
como “todo o Espiritismo está em Kardec” ou “fora
de Kardec não há Espiritismo” fortalecerem os grupos
da chamada “ortodoxia kardeciana”. Escritores lúcidos
e conferencistas ilustres corajosamente criticavam a produção
mediúnica, de caráter evangélico, tão abundante
em nosso meio, mas não ousavam criticar Kardec. Dir-se-ia, hoje,
que “passavam pano” em eventuais incongruências kardecianas,
evidenciadas pelo avanço do conhecimento ou evolução
cultural, social e política.
Quando a CEPA, em seu Congresso do ano
2.000, em Porto Alegre, acenou com a indagação: “Deve
o espiritismo atualizar-se? ”, abriu-se uma nova e promissora
fase ao movimento.
Atualizar o Espiritismo implicaria não
apenas em contextualizar a obra de seu fundador, escrita em meados do
Século 19, como também apontar eventuais equívocos,
incompatíveis com a cultura e os conhecimentos atuais. Tratando-se
de uma obra humana, fruto do diálogo entre a humanidade encarnada
e humanidade desencarnada, é evidente que não conteria
ela toda a verdade. Seus princípios fundamentais, muito bem deduzidos
na literatura kardeciana, escorados na “lei natural, eterna e
imutável”, exigiam, no entanto, permanente adaptação
à evolução do conhecimento. A lei natural tem diversificadas
aplicações e diferentes níveis de compreensibilidade
no tempo e no espaço.
Um novo paradigma de conhecimento
O Espiritismo, bem visto, propõe
um novo paradigma de conhecimento, a partir da realidade do “Espírito”,
definido na questão 23, de “O livro dos Espíritos”
como “princípio inteligente do universo”. Sua abrangência,
pois, tem a dimensão do universo. Tal amplitude torna possível
diferentes formulações, a partir de diversificadas perspectivas.
Não deve, assim, causar mal-estar
a existência, no meio espírita, de diferentes enfoques
do paradigma espírita, assumidos por grupos que se fortaleceram
na última década e que, mesmo, eventualmente, fora dos
centros espíritas e suas estruturas hierárquicas, alimentam
e revigoram o pensamento espírita valendo-se, preferencialmente,
da moderna comunicação eletrônica. A eles deve-se
a eclosão de um novo e interessante capítulo da história
do Espiritismo.
Vale, ali, a crítica ao próprio
Kardec, preservando-se e revalidando-se, embora, os princípios
da filosofia que nos legou. Kardec nos autorizou a tanto. Mais do que
isso: estimulou que seus pósteros atualizassem e contextualizassem
sua obra, à luz do progresso das ideias e pelo exercício
do livre pensamento. É isso, fundamentalmente, que nos diferencia
das religiões. E é justamente a essa postura que está
condicionada a própria sobrevivência do Espiritismo.
Inconformismo
Uma proposta paradigmática da
dimensão do Espiritismo não cabe, assim, numa fôrma
na qual o prenderam, por décadas, notadamente no Brasil, onde
se desenvolveu sua perspectiva “cristã e evangélica”.
Era natural que surgissem e se ampliassem, graças, principalmente,
à explosão das redes sociais, pessoas e grupos “inconformados”.
Isto é: aqueles cujas ideias não mais cabiam na fôrma
onde o acomodaram.
Esses grupos podem não constituir
um segmento monolítico, mas seus integrantes são livre-pensadores,
terreno, onde diferentemente do universo dos crentes, está situado
o espiritismo. Eles delineiam, quiçá, o futuro do Espiritismo
que, como teoriza Marcio Sales Saraiva, em “Espiritismo hoje:
breve introdução” (Editora Comenius, 2024) “talvez
não tenha o nome ‘espiritismo’ e as referências
explícitas a Allan Kardec sejam ralas e distantes”. Entretanto,
como ainda assinala Saraiva, temas como “Deus […], reencarnação,
comunicações extrafísicas, pluralidade de mundos
habitados, infinitude, relativização da morte física,
terapias alternativas”, poderão “forjar um pacote
de crenças e práticas para este mundo pós-religioso
do século 21”.
Mesmo que assim seja, presumo eu, Allan
Kardec terá um lugar de destaque nessa história.
E o Espiritismo será lembrado
como a mais forte referência pela semeadura de um novo paradigma
de conhecimento, em período onde o mundo ainda transitava da
Idade Moderna à Contemporaneidade.
Nota do ECK:
Artigo publicado na edição de dezembro/2024
do jornal ABERTURA, do Instituto Cultural Kardecista de Santos.
Milton Rubens Medran Moreira Ex-presidente
da CEPA (2000/2008) *Procurador de Justiça aposentado e jornalista
Fonte: https://www.comkardec.net.br/diversidade-por-milton-medran-moreira/
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