Sou de uma geração que cresceu lendo Monteiro Lobato.
Seus livros ajudaram a despertar o gosto pela leitura e, quem sabe,
o estímulo para escrever. Quando os gênios passam pelas
nossas vidas, nunca mais seremos os mesmos.
No início de 1945, enchi-me de coragem e escrevi uma cartinha
ingênua, na qual lhe pedia um autógrafo. Respondeu-me
enviando reprodução de seu retrato pintado por J.U.
Campos.
Anos mais tarde, mandei-lhe um escrito meu. Respondeu-me novamente.
Sentia-se feliz por haver contribuído para nos ensinar a pensar
e achava que, num país de ideias erradas, as minhas estavam
certas. Aprovava, portanto, meus modestos sonhos de uma sociedade
mais humana. Recomendava-me a leitura do livro Progresso e Pobreza,
de Henry George, do qual me enviou um exemplar. O pensador americano
propunha, entre outras coisas, que se tributasse não os que
produzem, mas a terra ociosa. Era o precursor de uma reforma agrária
inteligente, sem conflitos ou pressões sociais. Preferia acabar
com a pobreza antes que ela surgisse. Outro sonhador, como nós.
Estava, no entanto, amargurado, indignado mesmo. Com o país,
a política, a vida, a morte, tudo. Chegou a mudar-se temporariamente
para a Argentina, onde esperava encontrar um pouco mais de sossego.
O pessimismo tornara-se a tônica de sua vida e, naturalmente,
projetou sombras em sua carta de 20 de janeiro de 1946. Ao falar de
minhas ideias, estimulava-me a continuar sonhando porque, mais tarde
– acrescentava –, nem sono eu teria. “Esta noite
– confessava – tive de tomar uma cápsula duma infâmia
chamada Nambutal, ou coisa assim, para dormir alguma coisa –
e se sonhei não me lembro. Amanheci tonto e embrutecido.”
Tinha, porém, suas alegrias no testemunho vivo de “suas
crianças”, “filhos intelectuais”. “Dois
milhões de livros, dois milhões de amigos” –
escreveu na carta de 20 de março de 1945. Disse mesmo que poderia
fazer um lindo livro com esses depoimentos e que eram especialmente
comoventes os das meninas. Tudo o mais era desencanto e pessimismo.
Nunca se recuperou da perda de seus dois filhos, Guilherme aos 26
e Edgard aos 32 anos de idade.
Quanto ao mais, contudo, Lobato encontrara no Espiritismo, senão
o consolo para suas angustiadas amarguras, pelo menos a convicção
de que a vida continua e que os filhos queridos e os amigos lá
estariam na dimensão invisível à sua espera,
quando chegasse sua vez de partir.
“A vida que anima meu corpo
- lê-se em transcrição de Cavalheiro, vol. II,
pág.259 - percebe as manobras do prisioneiro – alma
– para fugir, e em desespero, agarra-o pelo rabo e puxa-o
frenética e desesperadamente para dentro da prisão
– o corpo.”
Mais adiante, zombando por antecipação de seus próprios
necrológios, escreve Lobato:
“Mas eu, o Ego que não
morre, porque não pode morrer, porque nada morre, nem o mais
miserável átomo, estarei a rir-me da inópia
dos jornalistas; e “na rua”, livre da casa velha que
já estava inabitável, assistirei à sua demolição
lenta pelos pequeninos obreiros chamados Vermes, a fim de que com
o material velho, o mestre-de-obras vida construa suas casas novas.”
“Minha ideia – expõe o escritor, adiante –
é que morrer significa passar do estado sólido para
o gasoso, como o bloco de gelo que com a mudança de temperatura
derrete e se transforma em vapor. O vapor é invisível
e tem propriedades totalmente diversas das do bloco de gelo, e no
entanto é o próprio bloco de gelo reduzido a estado
de vapor. E se resfriamos o ambiente onde está o vapor, o
vapor invisível condensa-se, vira líquido e depois
vira o mesmo gelo que era no começo da experiência.
Eis a Reencarnação! Vapor condensado!...”
À sua maneira peculiar, parecia estar, pacientemente, explicando
a reencarnação à petulante e irreverente Emília.
“No dia 4 de julho de 1948
– conta Cavalheiro, pág. 272 – almoça
em casa de Yan de Almeida Prado, com o Otales Marcondes e outros
amigos.” Ao despedir-se do grupo, uma senhora perguntou-lhe
se poderia visitá-lo no dia seguinte. “Amanhã,
em minha casa? Não pode ser – respondeu. Encontrará
apenas um cadáver.”
Acertou. Morreu às quatro horas da madrugada, aos 66 anos de
idade. Dias antes dissera a um jornalista:
“Meu cavalo está cansado,
querendo cova, e o cavaleiro tem muita curiosidade em verificar,
pessoalmente, se a morte é vírgula, ponto-e-vírgula
ou ponto final.”
Há cinquenta anos, portanto, José Bento Monteiro Lobato
conferiu a vida do lado de lá e viu que a morte é um
mero ponto-e-vírgula. Mais cedo ou mais tarde, o vapor se condensa
outra vez e a gente volta para dar continuidade às tarefas
evolutivas.
Lemos, não obstante, na excelente biografia escrita por Edgard
Cavalheiro (Monteiro Lobato – Vida
e Obra, Cia Editora Nacional, 1956, São Paulo),
o texto com o qual procura consolar a nora:
“Não cultive tristezas
– aconselha –, porque não vale a pena. Edgard
não morreu. Foi promovido do estado sólido, que é
estúpido, para o gasoso, muito mais interessante –
e a estas horas há de estar lamentando a tolice dos que o
choram.”
Só que, entre os que choravam
estava ele próprio, o pai agoniado, cabisbaixo, silencioso,
a caminhar pelas ruas mais quietas de São Paulo.
“A correspondência com
(Godofredo) Rangel – escreve Cavalheiro, II vol. pág.
258 – após a publicação de A Barca de
Gleyre – particularmente nos dois últimos anos de vida,
deixa-nos a impressão de que o escritor não faz outra
coisa senão preparar-se para a morte.”
Convencido da realidade espiritual,
já não vivia, segundo Cavalheiro, a procurar “provas
da sobrevivência em sessões espíritas”.
Ainda questionava, porém, as entidades manifestantes, e não
lhes permitia que lhe pregassem sermões.
“Proponho perguntas curiosíssimas
– explicou – e obtenho respostas preciosas.”
Encantara-se com “A Grande
Síntese”, de Pietro Ubaldi. Apontava na excelente
tradução do Dr. Guillon Ribeiro apenas um “defeito”:
“excesso de bom português”
Foi por esse tempo, ou mais precisamente, em 10 de novembro de 1947,
cerca de oito meses antes de morrer, que escreveu para Afinal,
Quem Somos?, do amigo Pedro Granja, o conhecido
prefácio que Edgard Cavalheiro caracteriza como síntese
do que Lobato pensava do assunto.
“É a sua idéia
de Deus – escreve o biógrafo (vol. II, pág.258)
–, aceitável pela ciência e muito lisonjeira
para os espíritas.”
“Muito mais decente –
comentava Lobato, alhures – o meu Deus que o de Kardec, que
é o mesmo Jeová com uns enfeites novos – antropomorfíssimo
puritano e exigidor de coisas.”
É possível que o seu
Deus seja aceitável a certas áreas do pensamento científico,
como informa Cavalheiro, mas dificilmente seria uma ideia “lisonjeira
para os espíritas”. Na Doutrina Espírita, Deus
é “inteligência suprema, causa primária
de todas as coisas” e nada tem de antropomórfico. Tanto
que, na primeira pergunta aos seus amigos espirituais, Kardec quis
saber o “QUE” era Deus e não “QUEM”.
Não nos esqueçamos, contudo, de que, para nos levar
a um mínimo de compreensão do incompreensível,
Jesus O chamou de Pai.
Apesar de me haver prevenido quanto à inconsistência
dos sonhos, ele nunca deixou de sonhá-los. (E nem eu). Se algum
dia se reencarnasse – declarou certa vez –, voltaria a
fazer o que sempre gostou, ou seja, escrever para crianças.
Também ele se sentia feliz junto aos pequeninos de que falou
o Cristo. Escrever para os adultos, no seu entender, foi pura perda
de tempo.
Natural de Volta Redonda (RJ), Hermínio
Corrêa de Miranda, ou Hermínio C. Miranda, como também
ficou conhecido, nasceu em 5 de janeiro de 1920 e se tornou um dos mais
respeitados pesquisadores e escritores espíritas. Por décadas
deu sua colaboração à centenária revista
“Reformador”, da Federação Espírita
Brasileira, e ao “Serviço Espírita de Informações”
(SEI), através de artigos sempre judiciosos e de estilo inconfundível.
Em homenagem ao Prof. Hermínio, que fez sua passagem no dia 8
de julho, aos 93 anos de idade, no Rio de Janeiro, o SEI, ao invés
do clássico obituário, decidiu republicar texto no qual
o já saudoso professor, por ocasião dos 50 anos da desencarnação
de Monteiro Lobato, relatou seus contatos com o famoso escritor, cujas
linhas lhe inspiraram no labor da escrita, labor este que resultou numa
vasta gama de artigos para a imprensa espírita e leiga e em mais
de 40 livros publicados, dentre os quais figuram “As marcas do
Cristo”, “Diálogo com as sombras”, “Diversidade
dos carismas”, “A memória e o tempo” e o clássico
“Nossos filhos são espíritos”.