Espiritualidade e Sociedade



Jaci Regis

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O comportamento é a expressão do caráter.
O caráter é a expressão da realidade da pessoa.
A pergunta crucial é, porque decidimos por esse ou por aquele comportamento?
A resposta é porque temos livre-arbítrio. Ele nos identifica como ser inteligente, com vontade e liberdade. Entretanto, o que nos motiva para tomar esta decisão e não outra? Que mecanismos nos permitem escolher entre as alternativas propostas? Que motivações movem nosso comportamento?
E ainda mais: como nos estruturamos, como formatamos o caráter, quais as condições para julgar, escolher e decidir para usar o livre-arbítrio?
Essas são as questões que vamos estudar, embora reconheçamos que saber o porquê da escolha é tarefa bastante complexa.

Nosso objetivo, porém, é examinar como podemos mudar o caráter, para torná-lo mais satisfatório, mais produtivo e nos fazer mais felizes.


A FORMAÇÃO DO CARÁTER
A formação do caráter é um processo acumulativo, de inclusão e exclusão de fatores que o Espírito realiza no seu desenvolvimento. Na vida corpórea, o caráter define a personalidade que nos caracteriza e que nos permite a inclusão na sociedade.
O Espiritismo, considerando a Teoria Espírita da Evolução, define o ser humano como o ápice da caminhada evolutiva do Princípio Espiritual. Para o Espiritismo, somos um Espírito imortal ligado temporariamente a um corpo somático.
Ao longo do caminhar evolutivo, nos tornamos um ser desejante, isto é, estimulados sensivelmente pelo desejo. Em torno desse núcleo desejante, vão sendo desenhados os horizontes e a participação no mundo externo.
Por detrás de qualquer decisão, tomada conscientemente ou apenas impulsionada pelas circunstâncias, está o caráter que estamos construindo e que especifica o nível de desenvolvimento mental e espiritual que alcançamos.
Se considerarmos que a Lei Natural é a plataforma que determina as diretrizes do Universo, veremos que ela estabelece três vetores como fundamentos básicos para a vida: sobrevivência, convivência e produtividade. No desenvolvimento do Princípio Espiritual e na vida do Espírito, esses três vetores impulsionarão os passos da evolução pessoal e grupal.

Inseridos no processo, como a Esfinge na fábula do Rei Édipo, a vida nos declara: “decifra-me ou te devoro”. Logo, a sobrevivência é a primeira necessidade fundamental.
A transformação do Princípio Inteligente em Espírito começa com a autoconsciência, isto é, a percepção de si mesmo. E a descoberta de que dispõe de energia própria, a agressividade, sua força interior que lhe garante a sobrevivência.

Todavia, o reconhecimento de si mesmo leva ao reconhecimento do outro, gerando o conflito da relação eu-tu. Então, descobrimos que possuímos uma liberdade essencial que, em tese, nos torna senhor de nós mesmos. Ilhado no seu isolamento e na sua solidão, o Espírito é compelido a olhar para fora e é tangido a procurar o outro, atendendo à necessidade constitucional de relacionar-se, seja para garantir a sobrevivência ,seja para angariar suprimentos afetivos.

 

O TEMPO DA CONVIVÊNCIA
Pressionados pelas realidades externas, somos sujeito e paciente do processo vivencial. Determinamos e somos, em termos, determinados. Desenvolvemos uma visão interna, própria, real e no imaginário. É a partir desse referencial que olhamos o exterior, que nos atrai e nos faz temer.
Surge o conflito latente sob a pressão do desejo, que é a mola propulsora da ação e a confrontação com o ambiente. Para manter relativo equilíbrio entre as pressões internas e externas, desenvolvemos percepções específicas, por vezes distorcidas de nós mesmos e do mundo.
A construção do caráter é um processo complexo, misturando, em proporções desiguais, os fundamentos morais, o desejo, os sentimentos controversos, pendulando entre o ódio e o amor e as pulsões instintivas. A religião, a realidade social e familiar definem a filosofia de vida, que se transforma nos comportamentos. Essa filosofia é a síntese do sentir do ser. O sentir-se amado, desejado, rejeitado, excluído das relações sociais e afetivas, cria nosso perfil pessoal único, embora não necessariamente exclusivo. Ao contrário, a maior parte das reações comportamentais reflete a absorção de usos, costumes, condicionamentos e exemplos hauridos na convivência, desde a infância.
Todavia, o caráter será formado a partir do acervo que trazemos, como uma personagem em trânsito reencarnatório, que será o pano de fundo a que se somam esses ingredientes vivenciais. Essa combinação de fatores nos faz uma personalidade específica, com um perfil diferenciado, mais ou menos distante ou absorvido pela cultura.

Todavia, em muitas ocasiões, surpreendemos e nos surpreendemos por decisões muito diferentes do esperado.


AS OSCILAÇÕES COMPORTAMENTAIS
A evolução de modo algum é retilínea. É feita de oscilações, de paradas e avanços. Não de retrocesso. Pode haver momentos em que a pessoa supõe ter avançado, entretanto, é uma projeção que, quando testada, pode sugerir retrocesso, mas, na verdade, é a revelação da verdadeira situação.
As variações de comportamentos refletem as dificuldades da formação de nosso caráter. Encontramos para seguir um roteiro mais ou menos equilibrado, se considerarmos que nosso caráter é, por hora, muito imaturo e inseguro.
Nosso caráter compõe-se de vários níveis. O nível de conservação é formado pelas pulsões instintivas, a agressividade da força interior, que garantem a sobrevivência. O nível intelecto-afetivo consolidado define o acervo das conquisdas definitivas da inteligência e dos valores incorporados. O nível instável é a realidade atual, cambiante, do caráter, com composição em parte bastante fluida, sem consolidação, correspondendo ao estágio de maturidade alcançado.

Essa realidade explica os conflitos entre o que desejaríamos ser, ou que imaginamos que somos e o que somos. Por isso, em termos gerais, o caráter está em constante revisão. Quando nos recusamos a atualizar nossa “filosofia de vida”, quando no cristalizamos em comportamentos repetitivos, que não nos trazem satisfação, criamos um modelo de vida deficitário e litigioso.
Na relação conosco mesmo, criamos fantasias sobre nossa imagem, ora diminuída, degradada, ora inflada, superdimensionada. Não é raro o surgimento de sentimentos de baixa estima e de autodestruição. Esse fluxo incerto cria problemas de afirmação e o desenvolvimento de patologias que podem evoluir para fases mais graves.
Manter um nível mental satisfatório, adequado, é básico para comportamentos equilibrados que produzem respostas compensatórias. Além desse nível de excelência, pouco alcançado, temos um largo espaço de comportamentos que oscilam entre atitudes que, embora nos tragam poucas respostas compensatórias, a mente segue mais ou menos sadia. Outros comportamentos, porém, são basicamente insatisfatórios e não nos trazem respostas compensatórias. Principalmente quando enfrentamos desafios que não conseguimos compreender e superar.

Nesse caso, nosso “eu” se traumatiza e podemos enfermar nossa mente.
Enfermar indica distúrbios graves, com patologias psiquiátricas, transtornos neuróticos e desvios de procedimentos, refletindo conteúdos negativos. Depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno bipolar, esquizofrenia, estabelecem motivações comportamentais típicas, em que o livre-arbítrio funciona sob condições específicas.
Num nível menos patológico, há formas de responder aos estímulos que denotam certos desequilíbrios, cuja repercussão nem sempre é demasiado funesta, mas que, de qualquer forma, criam situações constrangedoras, desconfortáveis, atritos e confrontos pessoais que podem resultar até em crimes.
Tais componentes evidenciam o que a psicologia define como perversões, manias e fantasias que motivam comportamentos desequilibrados.

 

TIPIFICAÇÃO GENÉRICA DOS COMPORTAMENTOS

Pode-se dizer que a motivação básica do comportamento é a manutenção da integridade pessoal. Isto é, cada pessoa, a partir de seu “mundo próprio” constituído de ideias, crenças, sentimentos se defende, pela agressão, pelo medo ou omissão.
Esse “mundo” constitui a filosofia de vida que comanda as reações que supostamente mantém ou defende a integridade da pessoa. Ou o medo de perder a si mesmo, tornando suas reações não necessariamente racionais ou adequadas, mas convenientes ao momento. Enfim, há uma infindável gama de razões e motivações. Mas, como frisamos, a raiz está no livre-arbítrio.
Mas o livre-arbítrio é a instância da decisão. O que nos preocupa é a motivação da decisão. Criamos motivações positivas ou negativas, conforme nos sentimos ameaçados ou recompensados. Há, sem dúvida, pessoas que estagiam em planos morais bastante inferiores e podemos afirmar que são perversas, porque envoltas no mais espesso manto de egocentrismo, revoltadas, infelizes, tendo como objeto atritar-se, machucar, caluniar, apropriar-se de pertences e até matar o seu semelhante.
A imensa maioria, estagiamos em motivações comportamentais eventualmente boas ou más. Os dois segmentos mostram as dificuldades de manter-se um padrão ético relativamente constante. Podemos listar algumas reações comportamentais típicas:

1. Manifestações Negativas
• Ansiedade
• Ódio
• Medo
• Agressividade
• Violência
• Síndrome de Morte
• Angústia
• Insensibilidade diante da dor ou do sofrimento de outros
2. Manifestações Positivas
• Fé
• Fraternidade
• Ponderação
• Ajuda
• Decisão racional
• Solidariedade

Esses valores positivos e negativos fazem parte da maioria das pessoas. Há, sem dúvida, as que possuem um coeficiente de bondade real que as faz praticar o bem e manter uma relação de respostas compensatórias.
O que se pode afirmar é que todos, em sua existência, têm possibilidades de construir uma relação compensatória com a vida.
Isso é conseguido pela absorção e consolidação de valores éticos e morais superiores. A lógica do comportamento positivo está baseada nesses valores, que garantem certa coerência na relação social e são a base para a definição do certo e do errado.
A ética é de solidariedade, parceria e conjugação de esforços.
A moral estabelece as regras. Romper, subverter essas regras, produz sentimentos pessoais e repercussão coletiva.
No primeiro caso vem a culpa e, no segundo, a punição.
A culpa pessoal é gerada pela consciência ética que se estabelece conforme as crenças pessoais. A punição é o instrumento para manter a moral coletiva.
A transgressão da moral social nem sempre corresponde à transgressão ética. De qualquer forma não conduz à imolação. Instintivamente, o individuo quer manter sua integridade.
Para compreender a manutenção da ética e a transformação da moral social lembremo-nos de que a ética cristã, cuja base é o amor ao próximo e a equidade nas relações humanas, através da fraternidade e da solidariedade, sobrevive na formação da estrutura mental dos Espíritos que se desenvolvem na área de predominância da ideia cristã.
Já a moral cristã foi instituída pela Igreja, como norma de comportamento pessoal e social, atendendo à interpretação que fez da ética cristã.

Em decorrência, criaram-se normas sobre o que se podia ou não podia, tentando regular a vida cotidiana, dentro de um horizonte definido: de um lado a existência de um pecado original que tornava todos culpados natos; de outro, o esforço de salvação como caminho para a felicidade futura, eterna ou o sofrimento eterno, depois da morte.
Esses parâmetros estabeleciam os modos como cada pessoa deveria pensar e agir, na sua privacidade — onde o olho de Deus estava invariavelmente presente — na sociedade. Nesses casos o acessório muitas vezes se impunha ao essencial.
Afirmamos isso porque, os eventos que se sucederam depois do Renascimento, com a derrubada das normas da sociedade cristã, determinando profundas mudanças no cenário e no comportamento, não aboliram a ética cristã, pois seus fundamentos permanecem na consciência coletiva espiritual, através dos tempos e encarnações, mesmo quando a moral e as regras mudam ou são desprezadas.

 

AS MUDANÇAS DO CARÁTER

Construímos um caráter provisório. Todavia, muitas vezes tendemos a considerá-lo definitivo, o que motiva atritos, infelicidade e tensões. Agarrados a um modelo temporário que julgamos permanente, temos dificuldades em reciclá-lo, aparando arestas ou modificando motivações. Mas, a necessidade de ser feliz move as pessoas para se transformar.
Essa necessidade e as experiências nas relações humanas exigem permanente adequação das motivações do comportamento, de modo a possibilitar segurança e bem-estar.
A reposta é que isso não é apenas possível, mas necessário. As transformações do caráter de modo algum ameaçam a integridade. Ao contrário, a unidade espiritual que somos é sempre enriquecida quando avançamos positivamente na apreensão de valores que aumentem nossa percepção, nosso bem-estar e a capacidade de relacionamento.
A manutenção de um caráter intolerante, inseguro, vulnerável, de fundo maldoso ou dominado pelo ciúme e inveja motiva comportamentos prejudiciais, que trazem sofrimento, isolamento, desamor e levam a sintomas mentais e corporais danosos.
As mudanças do caráter são feitas, principalmente, pela reformulação da filosofia de vida. Isto é, pela renovação moral, ética e pela compreensão dos fatores ambientais.
Tolerância, reciclagem de ideias, mobilização das energias, de forma produtiva e atuante.
Humildade suficiente para reconhecer desvios.
Respeitar a integridade do próximo.
Não é artificializar o comportamento, hipocritizando o viver. É decidir e buscar novos sentimentos, ideias, relações positivas.
Entretanto, as mudanças reais do caráter, num plano mais amplo, deverão ser alicerçadas na espiritualização das relações humanas.
Não se trata de uma solução ingênua. O processo evolutivo não se faz por mero desejo, mas pela árdua renovação de horizontes, reformulação de princípios, ideias e novas relações entre as pessoas.
É complexo, mas de modo algum complicado. É difícil, mas perfeitamente alcançável e vai produzindo bem estar, paz de consciência em crescente escala, conforme as etapas vão sendo superadas.
Pois somente a visão da natureza espiritual do ser humano dará uma luz no escuro caminho da sociedade contemporânea. Nela a mente se libertará de alguns paradigmas estatuídos e superará paulatinamente o medo e saberá direcionar o desejo de forma produtiva.
Será a fase da produtividade, que sancionará a existência do ser, sobrevivente, convivente e produtivo.
Sem que a visão espiritual da natureza humana prevaleça, as soluções serão precárias e incompletas. Na verdade, será o ponto decisivo e moldará o pensamento humano de maneira a transformar a relação entre as pessoas.
A espiritualização é mais do que crer; é dar um sentido humanista, livre e aberto à vida. Será baseada na imortalidade e na reencarnação, como base da própria segurança interna e como explicação para os processos ondulatórios da evolução pessoal e coletiva.
O Espiritismo, como preconizado por Allan Kardec, no início da criação da doutrina, poderá ser um canal válido no caminho da espiritualização humana. Todavia, a espiritualização, dando um novo sentido à existência da pessoa e da vida terrena, não significará a unanimidade ou a homogeneização psicológica das formas de ver. Por isso, poderá admitir várias formas de crenças, como visões particulares, conforme as necessidades de pessoas e grupos, que se acomodam ao nível evolutivo de cada um.

Fonte: Ensaio apresentado no 10º Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, realizado de 11 a 14 de outubro de 2007, em Santos-SP.

- http://www.viasantos.com/pense/arquivo/1363.html

 

Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.

 

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